sábado, 14 de fevereiro de 2009

Reflexões sobre o Direito Penal no Brasil

O recente caso do banqueiro Daniel Dantas trouxe à baila uma miríade de questões mal resolvidas em nosso país. Poderíamos agrupa-las no núcleo midiático - cobertura da imprensa, "imparcialidade" e como o discurso jornalístico esconde um poderoso discurso político - e no jurídico - debate sobre a realização da justiça, liberdades e garantias individuais, proteção da sociedade, qual a extensão do poder de polícia do Estado e daí por diante. Por ora, vou me concentrar nesse segundo.

À luz dos dias atuais, não resta dúvida que uma das questões mais discutidas no seio de nossa sociedade é aquela que toca a justiça e o sentimento popular em relação a sua não realização - diante de um quadro de criminalidade que, já há muito tempo, se materializa insuportável e mexe com razões e paixões dos mais ricos aos mais pobres, da direita à esquerda, dos mais cultos aos mais ignorantes e assim por diante.

A via de regra, nossa sociedade clama por justiça, mas isso não impede que ecoem de alguns setores um certo clamor de linchamento e de outros um certo clamor de impunidade - e ambos, antes de serem refutados precisam ser entendidos, haja visto que nem sempre eles são fruto de necessária desonestidade intelectual.

Antes de mais nada, é necessário ponderar o que seria o Direito Penal. Esse humilde escrevinhador o definiria como o ramo do Direito Público que se materializa como o conjunto de normas que visam manter a integridade dos princípios minimos éticos fundantes da sociedade, de cuja inobservância resulta seu esgarçamento - ou até desagregação - do tecido social. O fato é que a natureza do Direito Penal é profundamente coercível, logo não há ramo do Direito que traga tantos e tão acalourados debates quanto ele - dele podem decorrer sanções que implicam desde a perda da liberdade por longos períodos até a morte, dependendo do ordenamento em questão.

O Brasil, como sabemos, nunca presou muito por uma tradição democrática. Antes de 1988, ele teve um regime oligárquico até os anos 30, uma ditadura nos quinze anos seguintes - eu classifico a Era Vargas inteira como ditadura -, quase duas décadas de uma democracia um tanto frágil e, claro, vinte e um anos de uma Ditadura Militar onde garantias e direitos individuais foram esmagadas de maneira mais sistemática do que em qualquer outro período - por exemplo, com a democratização da tortura, antes privilégio dos mais pobres e dos negros.

A carta de 1988 foi feita sob o calor do fim de uma ditadura e expressava a necessidade da construção de instituições e bases jurídicas que impedissem a reedição do estado policialesco - logo, era necessário mais do que nunca positivar direitos e garantias individuais. Hoje, há um visível desalento em nossa sociedade diante da Constituição assim como diante dos direitos humanos e há até ecos do tipo "na ditadura isso não acontecia". Como explicar isso?

Em primeiro lugar, uma das reações mais comuns dos setores mais progressistas é o de apontar isso como decorrência da ignorância popular e da cultura reacionária fruto de duas décadas de ditadura militar. Isso é um equívoco muito grave. Olhemos para os índices de violência e pensemos quantas pessoas não perderam parentes e amigos queridos assassinados ou já não foram sequestradas, violentadas ou roubadas.

O enfoque de muitos setores socialistas é, curiosamente, liberal clássico: Busca-se a contenção do poder de polícia do Estado, esquecendo-se da obviedade de que não é apenas o Estado o único ente capaz de ameaçar as garantias e liberdades individuais, como se organizações no interior da sociedade assim como indivíduos não fossem plenamente capazes de fazer isso dependendo de seu poder.

O Estado policialesco é tão capaz de ameaçar as liberdades e garantias individuais quanto o Estado libertino, a diferença é que um o faz por meio da ação e o outro por omissão. No Brasil de hoje, apesar de passarmos ao largo de sermos um Estado policialesco, uma liberdade elementar como a de ir e vir está ameaçada - afinal, não resta dúvida que é no minímo arriscado andarmos em certos locais dependendo da hora do dia, assim como em outros tantos é impossível fazê-lo a qualquer hora.

Agora voltemos ao caso Dantas; Gilmar Mendes, um Ministro de claras inclinações conservadoras, após já ter concedido um habeas corpus, acabou julgando contra a jurisprudência firmada pelo próprio tribunal que preside e, sob a prerrogativa da defesa das liberdades e garantias individuais. Claro, a situação aqui é tosca na medida em que as provas sobre o suborno oferecido para os policiais federais é concreta, mas a alegação de Mendes mexe justamente com essa questão -até pelo motivo de que nos dias que se seguiram, o nobre Ministro se posicionou como guardião das liberdades e garantias individuais, encampando a infundada tese do Estado policialesco ecoada por muitos meios de comunicação, jogando o ônus de inimigos da democracia para cima de seus críticos.

Olhando em perspectiva, vemos que essa é uma das dicotomias falsas que são construídas no Brasil atual; uma delas é essa mesmo, a dos que se apresentam como amantes das liberdades e são favoraveis a um afrouxamento - não raro seletivo - das punições, tratando, ainda por cima, seus opositores como simpatizantes do totalitarismo; a outra, não menos comum, é a dos defensores do Estado policialesco que se apresentam como defensores da ordem e rotulam todos os outros como libertinos. A obviedade é que ambos estão errados, o modelo de Estado que eles estão propondo é um desvirtuado - seja por via ação total ou da omissão total.

O Estado ideal é aquele que busca incondicionalmente a Justiça e enxerga no Direito a ferramenta para se chegar a tanto. A idéia de ainda hoje buscar medidas que afastem o Estado policialesco das nossas vidas é válido e necessário, mas para funcionar deve ter obrigatoriamente um compromisso com a necessidade e punir daqueles que ameaçam a comunidade, do contrário, por meio de uma obsessão anti-ditatorial, pode se cair na libertinagem pura e simples, que é a mesma coisa, só que com sinal trocado - e, não raro, serve a interesses não menos escusos.

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