quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Nassif, Anistia e Bloguismo

Nem pretendia postar nada entre a Retrospectiva 2009 e alguma coisa desejando votos de feliz ano novo aos leitores/comentaristas, mas acabei me inteirando de um debate curioso por meio de um post do excelente Animot do César S, no qual era feita uma crítica ao blog do Nassif pela publicação de um post, de autoria de um comentarista, que trazia aquele recorrente sofisma da direita pró-ditadura em relação à Anistia: A história de que caso a Lei de Anistia fosse revogada, o mesmo, em termos de punição, deveria ser aplicado aos guerrilheiros que combatiam o regime. Fiz um comentário razoavelmente ácido lá pelo Animot mesmo, enquanto a coisa fervia na caixa do blog do Nassif:

Cesar,

Excelente post. Ainda usando argumentos dentro do comezinho do liberalismo, existem pontos como o princípio de resistência à tirania, algo que já está, veja só, em Hobbes, quando ele fala que é possível desobediência civil quando o súdito tiver a vida ameaçada pelo Soberano. Kant, esse notório teórico do Leviatã - que mais tarde veio a ser parido por Napoleão - dirá algo num sentido até mais profundo. Ademais, temos, no mais elementar da teoria do direito privado, que crimes contra a humanidade, inclusive tortura, são imprescritíveis pois ferem direitos personalissímos. Ademais, quem rompeu com a Ordem vigente foram os militares levando um país que era um Estado de Direito a uma situação de mera faticidade.Trazendo esse debate para exemplos históricos mais recentes, suscitar que alguém que lutou contra a Ditadura precisasse de anistia e, pior, que se essa lei fosse revogada, acabaria sendo punido, é o mesmo que dizer que os combatentes da Resistência Francesa ainda vivos deveriam ser julgados ou seus congêneres na Itália - pois os primeiros não combateram apenas o invasor nazista, mas também seu próprio governo que colaborou com aquela invasão e, no caso do segundo, tais resistentes não apenas combateram seu próprio governo como fuzilaram seu ditador. De tal modo, a nossa anistia acabou sendo o que todas anistias são: Uma mera lei que o Estado criou para se perdoar pelos crimes que cometeu - e que no nosso caso sequer admitiu, o que torna tudo mais inconsistente ainda à luz de elementar exame lógico.Isso tudo, em termos liberais. Se formos podenderar as questões de classe envolvidas em todo esse fenômeno e o que esteve em jogo em termos históricos, vamos ver que a discussão é mais profunda ainda. Nassif, nessa ocasião, tropeça em um de seus velhos defeitos: A crença em um tecnicismo não muito diferente daquele que ele tanto critica em seus adversários no campo da análise política e econômica, o que o leva a cair num realpolitikismo normalmente inofensivo, mas que, não raro, bate em signos cujos significados [corrigi agora, estava errado no original] é bem mais profundo do que ele percebe. A ele se somam alguns setores da esquerda brasileira mais preocupados com a governabilidade de hoje do que com as torturas que muitas vezes eles próprios sofreram ontem. Se existe uma ameaça à esquerda brasileira - ou mesmo aos setores minimamente progressistas dentre os quais se enquadra o centrista Nassif - é justamente esse síndrome de pequeno Maquiavel que, ao que me parece, tornou-se um certo modismo.

abraços



Colocado isso, resta pouco o que postar aqui, só vale ressaltar que, evidentemente, trata-se de uma falácia ruim que dói, pois ela coloca os oprimidos no mesmo patamar moral dos opressores. É como se alguém suscitasse que está de acordo com a punição de maridos agressores se e somente se, as mulheres que apanhavam e que arranharam seus maridos tentando se desvencilhar, também sejam devidamente processadas. Nassif merece elogios em várias ocasiões, mas como qualquer um, ele não é intocável e errou nisso tudo, nada a ver com as desculpas de que não foi ele quem escreveu, afinal, o blogger é soberano em seu espaço - não, nós podemos usar isso como o sofisma do garoto mimado que fala a "bola a minha", não se trata de uma questão de poder, mas sim de dever e responsabilidade em relação ao que escrevemos aqui -, portanto, se publicou material de outrem, faça com um contraditório do lado com igual destaque ou defenda o que você mesmo publicou em seu blog com argumentos - o que nesse caso é um tanto complicado porque uma argumentação racional implicaria na negação do que foi escrito, mas vá lá...



7 comentários:

  1. Teu comentário é impecável, Hugo. Não há como aceitar a igual nivelação de quem luta contra a ilegitimidade e com quem pratica crimes oficiais. E Nassif não tem o direito de se esconder atrás da desculpa que não foi ele que escreveu, pois foi ele quem publicou, e não fez nenhum comentário, o que indica que ele considera tal posição razoável. Mas esse simplesmente não é o caso.

    Abraço!

    ResponderExcluir
  2. Argumentação brilhante, Hugo, tornada didática pelo exemplo da Resistência Francesa.

    Há de se punir os carrascos que torturaram e mataram em nome do Estado (temporariamente "raptado" através de baionetas).

    Aproveito para desejar ao amigo um EXCELENTE 2010!!!

    Um abração,
    Maurício.

    ResponderExcluir
  3. Cesar e Maurício,

    Em suma, não podemos mesmo aceitar esse tipo de argumentação, venha de onde vier, ainda mais porque coisas do tipo, de tempos em tempos, aparecem como verdadeiros balões de ensaio pela mídia adentro com o intuito de plantar teses que, no fim das contas, visam não apenas a não punição de torturadores do regime como também de seus respectivos mandantes e articuladores - pensemos numa Operação Bandeirantes, estamos falando de cidadãos, ainda vivos, acima de qualquer suspeita...

    Quanto ao Nassif, mesmo que ele passe ao largo de ser mais uma pitonisa da extrema-direita, não raro alimenta esse tipo de calculismo político - e a maneira como ele se defendeu no episódio foi, com efeito, lamentável e como eu coloquei na postagem e reitero: Na blogosfera ninguém está acima de crítica.

    Um abraço para os dois e um excelente 2010!

    ResponderExcluir
  4. Discordo, haviam outras formas de combater a ditadura. O regime militar não caiu por causa da luta armada. Aliás, a luta armada foi pretexto para o regime militar endurescer, fazer o AI 5 etc. Se é para abrir os arquivos da ditadura deve-se abrir para todos os lados, mas acho equivocada essa discussão, porque interessa a pouquíssimos brasileiros, até porque a ditadura aqui foi bem menos feroz do que no Chile e na Argentina e a lei da Anistia -- que tem mais de 20 anos -- passou a necessária borracha por tudo isso. O Brasil não pode ficar parado em cima do ressentimento do passado, tem que olhar para a frente e fazer o que efetivamente importa: dar educação e cultura a este povo.

    ResponderExcluir
  5. Carlos,

    Vamos por partes:

    1. Sim, haviam outras formas de combater a ditadura, o que não tornava esse meio moralmente inválido - reitero: Nem para Hobbes isso seria inadmissível.

    2. Onde, por um acaso, eu escrevi que a Ditadura Militar caiu pela luta armada?

    3. A Ditadura fez o AI-5 porque era um regime...ditatorial. Usar um argumento desses é o mesmo que dizer que o estuprado só matou a vítima porque ela gritou.

    4. Ótimo, abramos para os "dois lados" então. Honestamente, não vejo muitas pessoas que combateram o regime por via armada muito preocupadas com isso, quem não quer são as pessoas envolvidas no regime, nem para os "dois lados" ou para "um lado" porque eles sabem o que lhes aguarda.

    5. Pouco importa se a ditadura aqui foi mais ou menos feroz do que a do Chile ou da Argentina - ou da Conchichina -, não se mede a ferocidade de um regime usando como régua o que houve em outro país, mas sim o que ele fez ou deixou de fazer para com sua população.

    6. A Lei de Anistia não passou borracha em nada. Essas coisas aconteceram. É fato. Muitas famílias não sabem sequer onde estão os restos mortais dos seus filhos. Por que você não explica para a mãe de um desaparecido político que a Lei de Anistia passou uma borracha nisso?

    7. Um país digno não se constrói sobre uma pilha de mentiras, lamento. Se nós nem abrimos os documentos históricos da ditadura que tipo de educação você espera que nossas crianças tenham? Uma alienada da própria história recente?

    ResponderExcluir
  6. O universo de pessoas envolvidas é muito pequeno. Grande parte delas faleceram e outras estão indo para o túmulo logo logo. O certo é que passou muito tempo, a ditadura no Brasil (que eu ajudei a derrubar) já faz parte da história, o governo FHC e depois o governo Lula criaram comissões para indenização das famílias envolvidas. Não sou contra abrir os arquivos da ditadura, o que sou contra é remoer o passado para punir 2,3 ou 4 torturadores. É muito barulho por nada. E um dos grandes equívocos -- a história já mostrou isso -- é fazer política com rancor e ressentimento.

    ResponderExcluir
  7. Carlos,

    Sim, do mesmo modo que se A mata B, estamos falando de um "universo de pessoas envolvidas muito pequeno" também. Isso não quer dizer que isso deva ser tolerado, afinal, isso abre um precedente perigoso. Tolerar torturadores homocídas é abrir um precedente perigoso ao cubo. Fazer Política com ressentimento é dar um golpe de Estado, garantir a realização da Justiça é garantir a integridade da Política, evitando que certas condutas não se repitam. A alegoria de que construíremos baseados na farsa de que é possível passar uma borracha nos fatos é um dos entraves à Democracia - o "lixo autoritário" que alguns acreditavam que ia ser varrido por um milagre, continua aí e, detalhe, continua se reproduzindo.

    A História já mostrou os limites desse realpolitikismo, desvincular a Ética da Política para facilitar ações, só produz desastres porque quando cálculos de poder momentâneos são postos a frente da realização de um projeto eticamente fundado, perde-se o horizonte das coisas e o rsultado é ser carregado pelas onda direto para o rochedo. Isso tem um explicação simples, por si sós, esses cálculos são insuficientes para decifrar a dimensão da política - por isso a pragmática Alemanha de Bismark capitulou diante do Nazismo em poucas décadas.

    ResponderExcluir