domingo, 6 de junho de 2010

Benjamin, a Europa e a Social-Democracia





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Os temas que as regras do claustro impunham à meditação dos monges tinham como função desviá-los do mundo e das suas pompas. Nossas reflexões partem de uma preocupação semelhante. Neste momento, em que os políticos nos quais os adversários do fascismo tinham depositado as suas esperanças jazem por terra e agravam sua derrota com a traição à sua própria causa, temos que arrancar a política das malhas do mundo profano, em que ela havia sido enredado por aqueles traidores. Nosso ponto de partida é a idéia de que a obtusa fé no progresso desses políticos, sua confiança no "apoio das massas" e, finalmente, sua subordinação servil a um aparelho incontrolável são três aspectos da mesma realidade. Estas reflexões tentam mostrar como é alto o preço que nossos hábitos mentais têm que pagar quando nos associamos a uma concepção da história que recusa toda cumplicidade com aquela à qual continuam aderindo esses políticos.


As teses sobre a História de Benjamin consistem em uma das críticas mais contundentes ao conceito de História linear e mecanicamente determinado, partilhado durante muito tempo no Ocidente, o que se materializa numa peculiar ideia de progresso. Sem entrar em pormenores da vasta e profunda obra desse ilustre mestre frankfurtiano - quer seja por uma questão de foco ou pelas limitações desse pobre mortal que vos escreve -, pegamos aqui um ponto específico e emblemático desse texto como mote de nossas reflexões, mais precisamente sua tese número X, que continua incrível - e tragicamente - atual. Analisemo-na pois, à luz do que se passa agorinha mesmo, no Velho Mundo - e não é porque se trata, por si só, da velha Europa, mas também e como isso implica nos nossos próprios destinos e de toda a humanidade.

A Europa, continente que desfilava, nos tempos da Guerra Fria, os chamados Estado de bem-estar social aos montes - usando a retórica do "nem comunismo, nem capitalismo" ou mesmo advogando uma espécie de "capitalismo civilizado" ou, simplesmente "sob controle"- encantava corações e mentes ao redor do planeta, inclusive na terra de Pindorama, em meio a sua potente inteligentsia. Era tudo bonito demais: A possibilidade de construção do socialismo pela "via pacífica", a existência de uma direita bonitinha que aderiu a um certo "pacto civilizatório" - a ponto de, deusmeu, dela ser até votável. 

Que dizer então do pós-Guerra Fria, quando a União Soviética, vítima de suas próprias maldades e o que resta é o projeto iluminado da Europa Ocidental que a tudo há de englobar, formando uma fraternidade de países civilizados e civilizadores, capazes até mesmo de superarem o incipiente atraso que eventualmente venham a existir nesse ou naquele rincão isolado. De repente socialismo torna-se um adorno intelectual - um ideal - e capitalismo se torna uma anomia controlável, um mal necessário.

As raízes de tal concepção repousam, é verdade, lá no século 19º. A somatória da aclamação da Ciência junto com uma concepção de História que aponta para o futuro, em suas mais variadas vertentes, como uma seta. Para além disso, resta o registro histórico da inversão dos pólos da social-democracia: Da intervenção subversiva do movimento proletário, na qual pelo uso de uma máscara burguesa qualquer - aqui, um partido -, se atuaria no palco do teatro onde se encenava a farsa da política burguesa para denuncia-la à plateia ignara e crente, viu-se a inversão de papéis, em um fenômeno metalinguístico único, onde o ator se torna a personagem e vice-versa; ao contrário da instrumentalização da ideologia como forma de destrui-la, os partidos social-democratas são instrumentalizados por ela e caem num casulo de auto-ilusão acomodação diante das benesses do poder, transformados pelo Estado que deveríam transformar e, por conseguinte, com seu poder de transformação anulado.

Um dos camaradas que, muito embora acusado pelos dedos indicadores da História como o responsável por tal desgraça, aparentemente apenas racionalizou tal fenômeno social e político - e falo aqui de um austríaco de nome confuso, talvez Kaustisko, Kakto ou Kautsky  -, ainda que o nosso Benjamin aponte para outro nome, o de um compatriota seu de nome Dietzgen. Acerta o mestre de Frankfurt ao determinar qual o ponto-chave desse processo - e aí voltamos à questão inicial, os equívocos políticos decorrentes de certa concepção de progresso técnico-científico, amparada, por sua vez, por aquele conceito de História ao qual ele crítica tão ferozmente.

O partido social-democrata torna-se não mais o elemento revolucionário, mas sim a mola-mestre de um processo dessa forma de desenvolvimento, condicionado, ainda, por processos eletivos. Não devemos olvidar, claro, como um certo Senhor Ulianov, de ascendência russa talvez, se apropriou do que tão bem escreveu o Senhor austríaco de nome estranho e construiu uma organização técnico-burocrática, uma corporação destinada a ser total, e, apesar do rompimento posterior, não deixou para trás nem a burocracia, nem a técnica, nem  a ideia peculiar de progresso, nem o hábito de agir em nome do povo - mesmo tendo lá suas dificuldades para falar com os muzhiks, letrado que era ele e seus amigos. Vem o Fascismo, construído sobre o mesmo conceito de história e a mesma ideia de progresso. A desgraça. A guerra. 

Finda a guerra e o que temos de um lado da Europa é a falsa subversão social-democrata na peça burguesa, enquanto do outro, o script do Senhor Ulianov, que deveria se estabelecer enquanto monólogo denunciador, acaba tendo sua execução terminada por seus continuadores, com assassinato dos demais atores, deixando a plateia perplexa, muito embora, por prudência e comedimento, ela tenha resolvido ficar em seus assentos. Se os líderes social-democratas ocidentais dizem controlar o capitalismo local, tarefa hercúlea facilitada pela redução do referido sistema econômico a um eufemismo, do outro lado do muro, os líderes comunistas do leste dizem ter posto termo a tal ignominioso sistema, apesar de não terem subvertido de modo decisivo a sociabilidade do capital - e nesse ponto, Benjamin, apesar de ter criticado linha por linha do tremendo equívoco que se cometeu no Leste, acaba não explicitando sua crítica como fez com o Oeste.

A Guerra Fria termina no momento em que o velho ator caduco, que monologava para uma teatro vazio, é retirado de cena - não por piedade, mas para inaugurar a nova peça, a farsa da nova Rússia, também conhecida pelas esquinas de Moscou como "A Origem da Desigualdade entre os Homens de J.J. Rosseau em versão New Wave". Aí voltamos a velha Europa Ocidental, o que se fez sob os auspícios da civilidade, das luzes e da boa razão durante meio século? Nada senão a intensificação do Capitalismo local, dirimindo contradições de classe por meio de uma conciliação cuja conta normalmente foi paga pelos pobres diabos do terceiro mundo - não, caro leitor, lobo não come lobo na Antuérpia, mas o mesmo não se pode dizer do que fazem no Congo os belgas. Não seria isso o Éden dos países de classe-média que os liberais nos esfregam na cara, apesar da vaguedad desse conceito? 

Não escapou aos tentáculos desse magnífico projeto, nem ao menos, os países periféricos de tal região, fagocitados e transformados em colônias de consumo as quais foi concedido farto crédito e, pasmem, uma moeda forte. Isso, até que o sonho acaba, quando os déficits nas contas correntes detonam o futuro de tais periféricos e, sob o risco de contaminação sistêmica, tal fenômenos faz com que o potente motor franco-germânico lhes culpe pela própria desgraça e lhes obriga a executar um duro programa de ajustes - ao interesses de tal magnífica força motriz, claro, impondo cortes de gastos públicos, desde salários de servidores até em programas sociais, em caráter de exceção, como forma de adequar as contas dos pobres diabos a uma política cambial comum e que sempre favoreceu aos países centrais, tudo isso sob os auspícios, reitero, da culpabilização das vítimas.

Eis que voltamos ao velho Benjamin e vemos, nesse trágico enredo - pela repetição, talvez farsesco - os três aspectos que formam a mesma realidade e ele denuncia "a obtusa fé no progresso desses políticos, sua confiança no 'apoio das massas' e, finalmente, sua subordinação servil a um aparelho incontrolável" - e como tema de fundo, a História em forma de seta justificando exceções, enquanto corretivos de rumo, em um caminho para se atingir o ideal. Advertência feita, façamos um novo corte: O presente latino-americano, seus governos democráticos e suas novas constituições provocando melhoras substanciais, diretas e imediatas na vida de seus cidadãos - trazendo, inclusive, a promoção da propriedade comunitária bem como belos artigos sobre a proteção ao meio-ambiente, medidas interesantes, muito embora não rompam com o capitalismo enquanto sistema produção. Há quem seja entusiasta desse fenômeno latino-americano, que sopesando virtudes e defeitos é mesmo positivo, mas não caímos na mesma falácia que, por comodismo ou incompetência, caiu o movimento emancipador na Europa.

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