sexta-feira, 10 de setembro de 2010

A Constituinte Exclusiva

(A Quimera -- um pouco disso, um pouco daqui, um todo que não pode ser nada)

Recentemente, o NPTO fez um post a respeito de um debate travado entre o José Afonso da Silva e o Cláudio Couto sobre a proposta da "constituinte exclusiva", feita por Marina Silva, para realizar a Reforma Política. Participei do bom debate que rolou por lá e, hoje, me deparei com um post do Raphael Neves sobre a questão - que levanta boas questões, embora eu discorde dele mesmo. Estava com uma preguiça danada de postar algo aqui a respeito, mas resolvi fazer hoje. Trocando em miúdos, no debate em questão, José Afonso se põe contra à proposta porque (i) esse processo de reforma não existe; (ii) se essa ideia fosse, mesmo assim, levada à cabo, os riscos disso se materializar como a abertura de uma caixa de pandora é grande. O Cláudio Couto, por sua vez, discorda alegando que uma constituinte exclusiva simplificaria o processo de reforma política - o que é um argumento, a priori razoável -, mas logo depois recorre a um raciocínio um pouco confuso no qual, defende as várias emendas do Governo FHC - alegando que elas tiveram caráter democrático - ao mesmo tempo em que defende a necessidade da constituinte exclusiva porque ela seria um "instrumento poderosíssimo, único capaz de reformar a Carta, que, de outra forma, permaneceria intocada"  - ora, se já foi tão modificada e não houve problema nem na quantidade nem na qualidade, por que seria necessário subverter o processo de reforma?


Evidentemente, eu estou com José Afonso nessa história - embora tenha uma perspectiva um tanto diferente sobre o que é e para que serve a própria Constituição. Em um primeiro lugar, existe uma questão bastante óbvia nisso tudo que é o fato de que se estamos debatendo realmente Reforma Política, logo, propor uma "constituinte exclusiva" seria outra questão - na medida em que esse instituto não existe na nossa Constituição, logo, teríamos de tratar da sua inserção na Lei Maior, o que se daria hipoteticamente por meio de uma Emenda Constitucional; se um dos argumentos a favor da "constituinte exclusiva" é, justamente, que emendas constitucionais são lentas e seu processo tem problemas, então não faria sentido propor essa via para fazer a Reforma Política. Em um segundo lugar, as coisas ficam um pouquinho piores: "constituinte exclusiva" é um conceito absolutamente quimérico, afinal, o processo constituinte serve para o estabelecimento do estatuto de um Estado e não de partes dele - por analogia, "constituinte exclusiva" é uma ideia semelhante a de engravidar com a finalidade de dar à luz a um braço. Não preciso dizer que é impossível. O que está em jogo aqui não é constituir nada, mas sim reformar a Constituição - e isso já existe, a reforma da Constituição, disposta na própria Carta Política, se dá por meio de emendas (aquelas que  Couto diz que modificaram bastante a Constituição e de uma forma bacana, mas que estranhamente não servem agora para a tal Reforma Política), o que é realizado em ambas as casas do Congresso Nacional com quorum qualificado e aprovação de três quintos dos membros de ambas as casas. 


O que discordo do Raphael, fundamentalmente, é que  (I) o problema dessa proposta não está em alguma visão arcaica de direito constitucional que poderia ser abandonada - mas sim nas regras do Direito Constitucional propriamente ditas, justamente, aquelas que servem de sustentáculo do Estado de Direito, por qualquer perspectiva que se pense - e, acredite, a minha é consideravelmente diferente da do José Afonso. Não podemos tomar o que Bobbio escreveu na Teoria da Norma ao pé da letra, mas existe um ponto interessante que ele aborda que, desde que tomado enquanto regra lógica - e não como imperativo -, faz todo sentido: A diferença entre a normas constitucionais e as leis é justamente que a primeira, por tratar da forma do Estado, suas instituições, princípios e objetivos, destina-se a estabelecer e autorizar coisas - e tudo que não está nela, portanto, é proibido -, as segundas disciplinam, sob o arcabouço constitucional, as coisas da vida, logo, tudo aquilo que elas não prescrevem é permitido - se não fosse assim, eu poderia me proclamar Rei abolindo a República, haja vista que não proibição expressa para isso na Constituição; (II) O caso das constituições temporárias não se enquadra nessa história, haja vista que, em tese, ninguém está propondo uma Nova Ordem, mas sim um novo processo de reforma da Constituição para realizar uma reforma política.


O que se esconde por detrás dos argumentos dos defensores dessas mudanças varia entre um bem-intencionado desejo de fazer a Reforma Política sem os "políticos" - que poderiam corromper ou impedir o processo - ou mesmo usar-se disso para atingir outro fim - ou abrir um precedente perigoso para que algo mais seja mudado daqui para frente. Seja como for, o que está sendo proposto é ilegítimo e abre espaço para muita coisa ruim. Evidentemente, a Constituição não é nenhum texto sagrado, tampouco é uma convenção que serve como um grande acordos de vontades destinado a coordenar racionalmente a vida em coletividade - talvez o José Afonso pense algo parecido disso -, mas sim um discurso ficcional, de natureza neutralizante, destinado a organizar a atuação fatores reais de poder para que eles possam coexistir - e isso se dá na forma de um suposto acordo, entre atores que não são, realmente, simétricos; A Constituição não é a salvação dos nossos problemas, mas é um instrumento válido para construir condições para que isso um dia possa acontecer; como modalidade autônoma de discurso, sua narrativa possui regras próprias que lhe são inerentes que não devem ser ignoradas ou desrespeitadas, sob pena de abrir um flanco político que racionalize certos processos de dominação ainda piores do que os que ainda existem ao esvaziar uma narrativa que, bem ou mal, produz relações reais que limitam a possibilidade do arbítrio. O raciocínio confuso contido nessa proposta não me anima a pensar o contrário.

2 comentários:

  1. Hugo,

    Achei confusa esta afirmação: "se um dos argumentos a favor da 'constituinte exclusive' é, justamente, que emendas constitucionais são lentas e seu processo tem problemas, então não faria sentido propor essa via para fazer a Reforma Política".

    A questão de fazer as reformas política e tributária via Constituinte não tem nada a ver com lentidão. O problema é que as regras de Emenda e as regras de Constituinte são diferentes. A primeira é feita com o Congresso do jeito que está, com espaço para interferência do Executivo, governadores, (e por que não dizer PMDB?) etc. A segunda pode, ao menos em tese, restringir isso.

    Agora sobre o texto do Zé Afonso... pô, esse lero-lero de "espírito do povo se transmuda em vontade social" te convence?

    Abraço,
    Rapha

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  2. Rapha,

    O que eu quero dizer, em um primeiro lugar, é que para reforma a Constituição por um modo disposto - portanto, não existente - nela, seria necessário emenda-la mesmo assim - a menos que se espere que o Presidente eleito chute o balde e desrespeite o que que chamamos de Estado de Direito, o que, suponha, está fora de cogitação aqui. Em outras palavras, não faremos a reforma política por Emenda porque isso demandaria muito desgaste político, a ponto de corrompê-la, porém, para se quisermos aprovar o novo modo de reforma, mesmo assim teríamos de...emenda-la...

    Outro ponto, é que se esse novo modo de reforma constitucional fosse aprovado - e não poderia se chamar de "constituinte exclusiva", pelo próprio significado do termo -, de onde brotariam os reformadores exclusivos? Creio que da mesma sociedade de onde brotam os nossos atuais parlamentares. Não acredito que isso mudaria alguma coisa - para melhor.

    Sobre o que eu penso do José Afonso, como expus no post, não concordo exata e estritamente com ele, mas sim com os pontos centrais de sua crítica à proposta em questão. Sim, os riscos que ele aponta são reais. Não, não acredito que o "espiríto do povo se transmuda em vontade social" - ele, como boa parte dos constitucionalistas do Brasil (e do mundo) ainda se prende a muitos pressupostos do contratualismo hobbesiano (alterados pelos demais contratualistas, mas ainda hobbesianos).

    O Contrato social, no meu entender, não existe enquanto grande "acordo de vontades" político que leva a uma coordenação racional do nosso modo de viver, antes de mais nada ele é um acordo de poderes, por meio de um discurso ficcional, entre os atores múltiplos da coletividade - pelo menos, os dotados de poder político -, visando designar relações econômicas, sociais e políticas reais por meio de modo de organização - coercitivos ou não. A questão aqui é, para a construção de um projeto verdadeiramente emancipador, podemos prescindir, neste exato momento, do que está posto - e como está na posto - na Constituição de 88? Sim, é preciso ponderar as condições objetivas nesse momento e que, sim, essa mudança poria abaixo a ordem constitucional tal como ele é hoje.

    abração e obrigado pela visita

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