quarta-feira, 30 de março de 2011

Bolsonaro, ainda



O vídeo acima é do humorístico CQC. Ainda que não seja o meu humorístico favorito - ao contrário, me parece mais um exemplo da decadência do humor brasileiro -, ele vez ou outra, acidentalmente, cumpre algum papel - como nessa entrevista com o deputado de extrema-direita Jair Bolsonaro, alguém suficientemente polêmico para "dar ibope" e que acabou até soltando uma manifestação racista no final dela, gerando grande repercussão na mídia. Bolsonaro, para quem não conhece, é ex-militar e construiu sua carreira política em cima de uma retórica agressiva que apela para todos os clichês possíveis que um político de extrema-direita poderia pensar em usar: Defesa da pena de morte, da Ditadura Militar - e, por tabela, da "moral", dos "bons costumes" e da "família" -, do policialismo como forma de combater a violência e o desrespeito permanente às minorias são itens presentes em seus discursos. Em entrevista nos anos 90, ele chegou até a sugerir o fuzilamento do então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso

Na resposta à cantora Preta Gil, nessa edição do CQC, ele chegou a se referir à possibilidade de um relacionamento entre um filho seu e uma negra como "promiscuidade", o que provocou um massivo repúdio e deu início a uma mobilização intensa para cassá-lo. Não me surpreende que alguém como Bolsonaro seja deputado, afinal, ele explora muito bem um senso comum extremista muito presente na nossa sociedade. O fato é que no Brasil, diferentemente de muitas democracias mais antigas e melhores do que a nossa, não existe uma extrema-direita organizada porque o atual equilíbrio de forças partidário tem neutralizado isso com certo êxito, o que relega a defesa dessa linha a algumas poucas figurinhas carimbadas - de forma atomizada ainda por cima. 

A primeira vez, em anos, que isso pareceu ser abalado foi na última eleição presidencial, quando  o candidato presidencial José Serra - um intelectual de porte oriundo da centro-esquerda - surfou na onda de uma pauta ultraconservadora - e agressiva - quando se viu derrotado, criando uma atmosfera irrespirável que arranhou irremediavelmente sua biografia. Por isso, mais do que nunca, a manifestação de Bolsonaro ganha uma conotação perigosa. Também não é o caso de ignorarmos que suas falas têm se radicalizado mais e mais - assim como voltou a ganhar certo espaço na mídia -, principalmente, porque estamos na iminência de um duro debate sobre o desarquivamento dos arquivos da Ditadura e da instituição de uma Comissão da Verdade. 

Seja como for, essa fala de Bolsonaro no CQC, por si só, já é das coisas mais graves que ele disse. Liberdade de expressão tem limites, ainda mais quando alguém exerce mandato eletivo e se usa disso para incitar o ódio. Ainda que o deputado seja muito mais alguém dotado de um senso de oportunidade único do que um ideólogo de qualquer coisa, esse tipo de comportamento não é admissível e não pode ser tolerado. É demais pagarmos o salário de alguém que se usa da democracia para ser eleito, mas usa de seu mandato para atacá-la ou mesmo que, vejam só, lança pesados ataques às minorias, mas é (acredite se quiser) membro da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara. Ainda que a democracia seja dos poucos sistemas que admita a crítica a si mesmo de dentro de suas instituições, há limites para o cinismo alheio e para o grau de ameaça que seguidas e sistemática declarações irresponsáveis podem representar. Espero não estar postando por aqui algo como este "Bolsonaro, ainda" - pelo menos não sobre ele como deputado -, acho que já deu e um ato racista é um bom limite.

terça-feira, 29 de março de 2011

A Morte de José Alencar

"Zé, nós subimos a rampa juntos, vamos descer juntos" -- foto de Ricardo Stuckert de Outubro último



Faleceu hoje, por volta das 14 horas, o ex-vice-presidente da República José Alencar. Ele enfrentava o câncer há anos e o agravamento do caso o deixou hospitalizado no hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, por um bom tempo, onde entrou em óbito. Zé Alencar foi um vice-presidente atuante no debate público nacional, sua presença na chapa lulista simbolizou a aliança que seria a própria espinha dorsal do Governo Lula: A união entre o operário e o industrial desenvolvimentista - em outras palavras, a articulação política entre Trabalho e Capital em um caráter não apenas policlassista, mas também popular e nacional, o que já estava delineado na Carta ao Povo Brasileiro, o marco de nascimento do Novo Petismo. Alencar era um político mineiro apaixonado, conservador nos costumes e defensor de um nacional-desenvolvimentismo com face social em oposição ao privatismo dos anos 90 e, ainda, forçou à esquerda o debate sobre a política econômica por diversas vezes, batendo de frente com o capital financeiro - cuja presença também não esteve ausente nessa grande articulação que governa o país há mais de oito anos. A aliança PT-Alencar foi parte relevante da guinada dada pelo partido da estrela - e depois de uma guinada do próprio país -, uma mudança de rumo que transformou para sempre os rumos da esquerda nacional. Lula e Dilma, que se encontram em viagem pelo turbulento Portugal, retornarão amanhã ao Brasil para a cerimônia fúnebre de Alencar, que será enterrado com honras de chefe de Estado.


domingo, 27 de março de 2011

Crise Mundial: Reino Unido e Portugal

Manifestação gigantesca em Londres contra política de socialização de prejuízos - The Guardian

Ontem, quatrocentas mil pessoas saíram às ruas de Londres para protestar contra o plano anti-crise elaborado pelo governo britânico. O plano do gabinete do premiê David Cameron não passa de mais uma repetição da manobra mais batida entre manobras batidas do nosso tempo; cortam-se verbas para o financiamento de serviços essenciais como Educação e Saúde para cobrir um rombo cuja origem está nas próprias incongruências do sistema capitalista. Sim, o Capitalismo, como pontificou Marx há séculos, também tem seu movimento de sístole e diástole: O mesmo sistema que privatiza os ganhos socialmente produzidos é também aquele que socializa os prejuízos individualmente gerados - e isso é cíclico. 

No entanto, hoje, mais do que nunca, a Vida está posta em função do Capitalismo, o que só é possível pela existência de um Estado gigantesco que nos envolve a todos com sua política de exceção. Vivemos na era do cinismo em pessoa: O mesmo Governo Britânico, que está em guerra na Líbia por razões essencialmente imperiais - como o faz no Iraque e no Afeganistão há anos - também é o mesmo que alega não ter dinheiro para custear hospitais e escolas. Nada muito diferente da República Portuguesa que assistiu a queda do Governo Sócrates, há seis anos no poder, depois do Parlamento ter rejeitado um plano de recuperação similar ao refutado pelos britânicos nas ruas - embora aquele Parlamento não tenha decidido (e tampouco o fará) sair também da zona do Euro, o que faz com que aquela decisão seja apenas um capítulo do impasse na vida daquela república ibérica.

Se do lado português, a crise suscita a existência de um arranjo delirante do sistema europeu, constituído no fato de que países periféricos compartilham da mesma moeda usada por países como França e Alemanha, podemos dizer algo parecido do lado britânico: A bomba relógio monetária também aparece aqui, mas o faz na forma da superavalorização da Libra Esterlina. Para os países periféricos da Europa, o fato de  pertencerem ao sistema do Euro os torna dependentes de um ciclo de endividamento infinito possibilitado por um sistema de crédito com limites - para não verem suas contas explodirem imediatamente pelo déficit em conta corrente via balança comercial, aqueles Estados foram se endividando massivamente nas últimas décadas, mas pelo jeito a corda estouro. 


Já o Reino Unido, a pátria do eurocetismo, mesmo que não tenha entrado na Zona do Euro, também caiu numa arapuca monetária - aliás, a peculiar arapuca monetária *e cambial* britânica é o que explica o país não ter aderido à moeda comum europeia; falo aqui da maneira como a economia britânica se tornou mais e mais financeirizada, criando uma elefantíase do mercado de seguradoras, o que fez com que seguidos gabinetes mantivessem uma moeda incrivelmente valorizada, fato que somado aos custos das guerras nas quais o país se envolveu, gerou um rombo incontrolável nas contas do país. É preciso cortar em algum lugar, mas o que fazem, diante disso, os líderes britânicos e portugueses? Cortam verbas que iriam para hospitais e escolas. 

Nada muito diferente de líderes alemães e franceses que, enquanto motores do sistema monetário europeu, se acham profundamente espertos ao jogarem todo o ônus da crise sobre os seus vizinhos mais pobres, fechando as torneiras do sistema de crédito que eles próprios apresentaram aos portugais e grécias da vida como a garantia inabalável - e inesgotável - de viabilidade do Euro  - como se isso pudesse evitar uma contaminação sistêmica, via Euro, causada pela provável quebradeira geral que se avizinha no horizonte.

Isso, claro, sem falar em como a crise social e política na periferia da Europa irá lhes afetar. Não à toa podemos dizer que essa é, seguramente, a mais limitada geração de líderes europeus desde os anos 3o, algo sintomático em um momento no qual os partidos estão engessados na mais pura falta de criatividade e desconexão com a realidade social - a crise da esquerda partidária europeia está aí para nos provar isso. Ou a Europa produz novas saídas políticas - e Ed Miliband é uma esperança no Reino Unido - ou irá ser engolida pela crise. A implosão da União Europeia que se desenha é dos mais graves eventos que se pode conceber.

domingo, 20 de março de 2011

Quando Estamos Sós: Líbia

Retirado do excepcional Fractal Ontology
O filósofo lituano-francês Emmanuel Lévinas construiu sua vasta obra a partir de um diálogo permanente com a Tradição do pensamento ocidental, embora o fizesse construindo uma nova perspectiva segundo a qual a Filosofia Primeira foi reposicionada na Ética: A Filosofia - nascida enquanto discurso de dominação e fundada no Ser, uma unidade totalizante que desvaloriza as diversidades - deveria estar fundada na Ética, pois só assim a abertura em direção ao Outro seria possível e a vida poderia ser garantida. Reflexão natural de um homem que, como ele, sofreu na pele as agruras dos totalitarismos do Século 20º, seja quando vai para a França poucos anos depois da Revolução Russa - e as nuvens negras que se anunciavam para os judeus ainda não tinham precipitado, mas já se anunciavam no horizonte com o Stalinismo em gestação - ou mesmo quando é enviado como prisioneiro para um campo de concentração nazista na Alemanha depois da ocupação francesa - onde se depara com a expressão máxima da degeneração da máquina social humana, um sistema que além de opressor já tem como sua diretriz básica a eliminação prévia de determinados grupos como forma de atingir uma purificação geral.

Eu discordo de uma série de pontos da filosofia de Levinas, seja no que toca à influência da fenomenologia em sua obra ou sua concepção de infinito notadamente cartesiana, mas suas reflexões sobre a condição do homem diante da desdita, quando ele se vê abandonado diante da morte, me encantam - e o mesmo eu poderia dizer em relação à proposta central de seu pensamento. Existe uma passagem sua que me faz refletir profundamente à luz do clarão dos bombardeios que a OTAN promove, neste exato momento, sobre a Líbia"Deus que vela sua face não é, pensamos, uma abstração de teólogo nem uma imagem de poeta. É a hora em que o indivíduo justo não encontra nenhum recurso exterior, em que nenhuma instituição o protegeem que a consolação da presença divina no sentimento religioso infantil se nega também, em que o indivíduo apenas pode triunfar em sua consciência, ou seja, necessariamente no sofrimento" - sim, agora mesmo, essa é a situação na qual se encontra a multidão líbia, só a imagem de um Deus ausente lhes consola em meio ao fogo cruzado entre uma ditadura clinicamente paranoica e entre uma coalizão bélica com um senso de oportunidade único. A loucura do coronel Kadafi usada como trampolim da guerra justa que, em último caso, servirá para estacionar tropas no Magreb e frear manu militari o processo revolucionário que eclodiu na região. 

Dessa vez, não é o Stalinismo nem o Nazismo, apenas mais daquilo que assistimos reiteradas vezes desde 2001: O Estado contemporâneo, máquina de hemodiálise suprema e triunfante do Capitalismo atual - em relação ao qual a própria Vida está posta em função - e cuja face é um certo universal profundo; o sorriso largo de Obama esconde a formidável miragem na qual se constitui o Universal, posto como realidade apriorística, quando, concretamente, não passa do fruto de uma síntese passiva na qual certa força tornou um modo universalizável em um modo universalizado. O Universal que Obama ostenta enquanto hegemon é uma forma vazia na medida em que sua existência no discurso só serve para apontar o que ela mesma esconde, ou seja, sua própria causa determinante - isto é, a própria força causante. Para além desse raciocínio spinozano, basta voltarmos a Levinas e estamos diante de outro exemplo de Ser Totalizante. Nesse vazio cabe tudo exceto a diferença. Desde a reabilitação de Kadafi há poucos anos até sua nova transformação em tirano global - que ele nunca deixou de ser, ressalte-se.  Como se fará a Paz Universal das potências globais? Esse é o problema.

Em um situação onde os rebeldes se viam massacrados pela longeva ditadura Kadafi, quem se apresentou em sua defesa foram, ironicamente, aqueles que nos últimos anos financiaram e apoiaram aquela tirania - e fizeram o mesmo com todas as ditaduras vizinhas -, portanto, o alvo não poderia ser aquele regime, mas a própria mobilização contra sua existência moribunda. Não há salvação nem saídas fáceis. É provável que Kadafi - um peão nesse jogo todo - matasse todos rebeldes de forma cruel, portanto, não é possível torcer por nenhuma saída que não seja a sua derrubada - e dessa forma, eu não me ponho contra a resolução formal da ONU, cujo conteúdo material, claro, nada mais é do que a vontade e o poder da OTAN -, mas também não é possível ser favorável a ela de modo algum - nem ao que está acontecendo e, mais importante, ao que ainda vai acontecer. A luta agora é impedir mais mortes e garantir que a democracia não seja freada na Tunísia e no Egito ao menos. Quem o fará? Resta a questão. Em um mundo onde a anestesiado e em transe como o nosso, é difícil saber.


sábado, 19 de março de 2011

Três Debates Estratégicos: Líbia, Comissão da Verdade e a Visita de Obama

Dilma e Obama em Brasília -- foto: Agência Brasil

Assim mesmo, tudo junto e misturado. Na última quinta-feirao Conselho de Segurança da ONU aprovou a Resolução nº 1.973 que, por sua vez, aprova o uso da força contra a Líbia, em virtude da violenta repressão da Ditadura Kadafi contra as forças rebeldes - o Brasil, enquanto membro eleito desse Conselho, se absteve junto com Rússia, China, Alemanha e Índia, sendo que os dois primeiros não utilizaram do poder de veto (que dispõem na medida em que são membros permanentes). Na última sexta-feira, o TUCA (Teatro da PUC-SP) recebeu a 48ª Caravana da Anistia, a primeira do atual Governo, contando, inclusive, com a presença do Ministro da Justiça José Eduardo Cardozo - também professor da Casa - que, após o evento, declarou à imprensa que o Governo está unido em relação à implementação da Comissão da Verdade - como este humilde redator testemunhou a alguns metros de distância. Hoje, o Presidente Americano Barack Obama, em visita ao Brasil desde ontem, discursou em Brasília ao lado da Presidenta Dilma Rousseff.

São três itens centrais que se relacionam entre si e dizem respeito ao novo momento do Brasil no mundo. Sim, o Brasil depois de Lula é um país importante, diferentemente do que era no fim dos anos 80 - quando México e Argentina ainda eram os países mais relevantes da América Latina - ou do que ele poderia já ter se tornado nos anos 90. Isso não quer dizer que nosso país não tenha problemas graves ainda: O fato de estarmos já na 48ª Caravana da Anistia e o legado da Ditadura não ter sido superado - diferentemente do que houve no Chile e na Argentina - é gravíssimo. Ainda assim, é preciso considerar que a fala de Cardozo durante sua exposição e, depois, na entrevista para os órgãos da mídia corporativa foi contundente e alentadora - além de suscitar certo respaldo do Palácio da Alvorada. Não, o Brasil não poderá ser o país importante que ele quer ser - e que o próprio mundo, neste momento crítico, demanda com urgência - se não superar de vez o legado presente de sua Ditadura, isto é, o que resta neste exato momento do refluxo reacionário que produziu o 1º de Abril de 1964 - tudo de ruim que a Ditadura poderia ter feito já passou, o que interesse são os efeitos presentes, a negação de abrir arquivos históricos, de punir torturadores etc. Isso não é revanchismo, dado que se refere a problemas que existem em ato. O mundo precisa de um Brasil forte, mas não de um Brasil covarde que se autoanistia de crimes contra a humanidade, é condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por conta disso e permanece inerte.

Por que o mundo precisaria tanto de um Brasil forte? Vejamos, a atual Crise Econômica Mundial expôs que o sistema econômico global é, na verdade, um gigantesco parque de diversões construído sob um pântano tenebroso, enquanto o fenômeno Wikileaks trouxe à luz, por sua vez, o fato de que o sistema político global, como não poderia ser diferente, é o Estado de Exceção de Agamben dito e feito. A União Europeia é um fracasso  - e a Rússia pós-soviética não é muito diferente, só que piorada -, o Japão se vê diante da iminência de uma hecatombe nuclear. O que resta ao mundo? Os EUA em crise, mas ainda imponentes com seu arsenal nuclear e sua presença imperial pelos quatro cantos - com algum eco libertário soterrado sobre os escombros do Iraque e preso entre as grandes de Guantánamo -, uma ascendente - e ditatorial - China, quem sabe a Índia e...o Brasil.

A humanidade, depois do Governo Bush Filho e da inércia de Obama vive a situação mais assustadora desde os anos 30. Ainda que se possa questionar bastante a atuação americana ao longo da segunda metade do século 20º, as atitudes tomadas nos últimos dez anos foram particularmente temerárias. A China, se muito, oferece apenas soluções para si mesma. O Brasil, portanto, é chave nesse processo em virtude de sua proposta de atuação não-belicista, favorável ao fortalecimento do sistema multilateral e cética em relação à gestão da economia mundial nos últimos trinta anos - o que produziu essa terrível crise econômica. Claro, a visita de Obama tem mais a ver com a necessidade dos EUA se apoiarem em um novo parceiro de peso - para sobreviverem - e, digo mais, com as próprias ambições político-eleitorais do Presidente americano - em suma, transformar essa aproximação com o Brasil em um fato político positivo para 2012, coisa que ele não foi capaz de fazer até agora por pura incompetência, sobretudo pela atuação ambígua de Washington no que se refere ao golpe hondurenho.

O Brasil precisa ser colocar como o fiel da balança da nova ordem, manter o diálogo produtivo e em posição de igualdade com os EUA - que não vai deixar de ser uma nação importante -, mas ao mesmo tempo manter a aliança com a China. O que nos interessa, enquanto brasileiros e seres humanos, é ver o Brasil contrabalanceando a China com o manutenção do diálogo com Washington e neutralizando os EUA com a manutenção da aliança com Pequim. Nesse sentido, a posição brasileira diante da invasão da Líbia - favas contadas desde que a insurgência contra Kadafi tomou corpo e ele preferiu destruir o próprio país a renunciar - foi correta; sim, Kadafi é um ditador insano e precisa cair; não, infelizmente, a intenção das potências que aprovaram o "uso da força" contra a Líbia são as mesmas que passaram os últimos anos alimentando toda sorte de ditaduras naquela região e, por sua vez, procuram neutralizar a todo custo as vitórias das mobilizações populares, grandiosas e intensas, que derrubaram as ditaduras de Ben Ali na Tunísia e a de Mubarak no Egito. Menos do que uma apologia à democracia, o Ocidente pretende estacionar tropas no Magreb para, digamos, negociar melhor a democratização da região. Nesse aspecto, refaço apenas as minhas críticas à posição tímida do Brasil frente à revolução tunisiana e egípcia. Agora, o álibi para a invasão ocidental na Tunísia é inevitável, o que resta é procurar a evitar que a futura presença militar da OTAN na Líbia não frustre a democratização de Tunísia e Egito.

É essa sensibilidade histórica que o Governo Dilma precisará ter: A luta pelo Brasil dar certo já não é mais apenas problema nosso, a humanidade toda depende disso.

quarta-feira, 16 de março de 2011

O Fim de um Ciclo na Blogosfera Brasileira

Idelber e eu - São Paulo, 2010
Na segunda-feira, Idelber Avelar encerrou as atividades do seu excepcional o Biscoito Fino e a Massa. Uma pena, afinal, falamos do melhor blog daquele que eu considero o segundo ciclo da blogosfera tupiniquim (justamente quando ela toma corpo mesmo): Se no primeiro momento - em uma época na qual a nossa Internet estava longe de ser acessível à população - a blogosfera era o lar de profissionais da área de TI e gente que, de alguma forma, era íntima da informática, este meio podia até ser mais divertida para os habitantes da Rede, mas não tinha densidade relevante junto ao debate público; isso acaba com o advento do Governo Lula, quando a blogosfera sofreu um boom por uma conjunção de fatores como (1) A massificação da rede, seja pelas novas tecnologias - que facilitaram a criação de blogs - ou pelo aumento da renda salarial durante o Governo Lula; (2) A crise na imprensa em papel, seja formal - a lentidão em difundir notícias e análises - ou material - a sua queda na qualidade por meio da sua panfletarização; (3) O aumento da complexidade do debate político brasileiro - a exemplo do que se passa no mundo -, o que exigia uma nova espécie de forma de se comunicar - interativa, de preferência. Foi nesse cenário que surgiu, há mais de seis anos, o Biscoito Fino e a Massa, um baita blog, seja pela sua densidade intelectual de seu editor ou por sua linguagem acessível - além de sua posição privilegiada do Idelber de morar nos EUA e voltar ao Brasil com frequência, o que lhe permitia ver o Brasil por fora numa parte do ano e, depois, vê-lo por dentro. Em seus arquivos, sobram excelentes postagens, sempre em um clima apaixonado - seja pela política, pelo futebol, pela música e pela literatura. O Idelber foi o primeiro blogueiro importante a ressaltar a importância do link na blogagem e, como nos lembra o Alexandre Nodari, a construir de forma orgânica uma comunidade de comentaristas.  Se as férias que ele tirou do blog entre 2009 e 2010 pareciam anunciar um iminente volta, agora, parece certo que o mestre tenha resolvido pendurar as chuteiras mesmo. Como na ocasião em que ele suspendeu as atividades do Biscoito, eu só tenho a agradecer o Idelber pela inspiração intelectual e o apoio como blogueiro, posto que sem ele, certamente, esta humilde Casa não existiria. Na minha perspectiva, parece certo que se trata de um corte na vida da blogosfera brasileira, cujos sinais do fim dessa segunda fase parecem ter se concretizado - e não falo, claro, sobre  questões pessoais que tenham levado esta ou aquela pessoa a parar de blogar, mas de uma realidade de debate que se estabelece com o fim da era da Lula: As coisas mudaram e não teremos mais o Biscoito neste momento, isso é um marco. Da minha parte, entendo perfeitamente a decisão do Idelber - que eu tive a honra de conhecer ano passado, em São Paulo - e torço, de coração, que seus novos projetos deem certo.


terça-feira, 15 de março de 2011

A PUC e a Nova Morte de Paulo Freire

Quinta última, aconteceu mais um episódio trágico na vida da Faculdade de Direito da PUC - uma tragédia anunciada, mas, ainda assim tragédia. Honestamente, eu me sinto bastante deprimido com o rumo que as coisas andam tomando não só lá como em toda PUC: De uma universidade vanguardista, capaz de criar mecanismos de eleição direta para Reitor nos anos 70 - e eleger, ainda por cima, uma mulher -, o que nos resta hoje é a expressão do mais cínico autoritarismo, o uso de um passado libertário e democrático como mote para vender sua marquinha no mercado e nada mais. A democracia universitária, longe de um delírio estudantil, é causa de excelência acadêmica como a própria história puquiana, para o bem e para o mal, prova: A democratização acadêmica dos anos 70 só produziu mais e mais qualidade no ensino e, hoje, seu esmagamento produz o efeito contrário. A relação intrínseca  entre liberdade e excelência acadêmica é algo que passa batido nas (raras) vezes em que se debate a problemática acadêmica no Brasil - e é isso que está em jogo aqui, o permanente diálogo entre criação e liberdade, ora interrompido. Segue a íntegra que redigimos em resposta ao ocorrido na semana passada: 

Manifesto de Março



A decisão tomada pelo Conselho da Faculdade na reunião da quinta-feira (10/03) em relação ao aumento da nota de aprovação de 5,0 para 7,0 em 2012 tratou-se, sem sombra de dúvida, de algo que vai para além de um grave erro pedagógico: ela foi um sintoma claro de uma crise muito maior, na qual, atentem para isto, a Democracia está gravemente ameaçada. Basicamente, as reuniões do Conselho deveriam ser ambientes democráticos de deliberação, mas a atual Diretoria as transformou – como evidenciado na última reunião – em um mero espaço de legitimação de decisões já tomadas e verticalmente impostas; ao aprovar o aumento da nota e indeferir autoritariamente a audiência pública sobre os problemas do curso, a Diretoria simplesmente passou por cima de um abaixo-assinado com mais de 1.600 assinaturas – isto é, mais de 50% dos alunos da Faculdade de Direito –, no qual os estudantes mostravam sua disposição em melhorar a relação educacional e, de forma justa e razoável, se posicionavam contra o intento da Diretoria em responsabilizá-los unicamente pelos problemas da Faculdade.

Pior, a multidão de estudantes que compareceu à reunião – a despeito de uma data curiosamente adversa – foi desrespeitada pelo atraso injustificado do início dos trabalhos – causado pela vergonhosa reunião a portas fechadas entre a Direção e a atual gestão do Centro Acadêmico, realizada em uma sala ao lado (que permaneceu trancada) – e, mais grave ainda, pela tentativa da Direção em impedir os representantes discentes naquele Conselho – todos eleitos e no gozo pleno do seu mandato – de se pronunciarem e votarem, dando mostras de truculência, desconhecimento do Regimento Interno da Faculdade e, até mesmo, dos mais elementares princípios democráticos. Em outras palavras, para além do equívoco material de decisão, a maneira como ela foi tomada ilustra uma crise muito maior do que se supunha.

Reiteramos: os problemas do nosso curso são responsabilidade não somente dos estudantes, mas sim, de uma crise na relação educacional que se precariza a cada dia, seja pelos problemas no ensino – a dificuldade em retirar maus professores, a falta de diálogo etc. –, pelo sucateamento da infraestrutura, pela desatualização da Biblioteca ou, não nos esqueçamos, pelo próprio descaso com projetos de pesquisa e extensão – que, conjugados com o ensino, são o tripé da Educação Superior nos termos da nossa Constituição. Também vale lembrar que a suposta instituição de mecanismos de recuperação e exame pela presente decisão do Conselho da Faculdade é enganosa, haja vista que tal direito do estudante já se encontra no atual texto do Regimento Interno da Faculdade (nos temos do artigo 88, de acordo com as formas de avaliação válidas, previstas no artigo 91, I e II), como, aliás, não poderia ser diferente, observado que tal direito já é previsto por força de Lei – especificamente, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei Complementar que regula a educação no nosso país.
Diante da gravidade da situação, nós, que participamos de forma independente na Frente Unificada Contra o Aumento da Média – mesmo não concordando seja com negociações a portas fechadas com a Direção, seja com extremismos e falta de diálogo –, resolvemos nos manifestar para propor, através do diálogo, um novo modo de atuação. Dessa forma, conclamamos a todos para se juntarem ao nosso Grupo e à Frente na elaboração de uma proposta pedagógica e na luta pela melhoria na qualidade do nosso curso, invocando os princípios republicanos, democráticos e sociais, além da excelência acadêmica que sempre caracterizaram a nossa Faculdade, mas que ora jazem pisoteados pelo autoritarismo.


Assinado: Grupo Disparada



*cujo link já está na lista desta Casa assim como o incentivo à sua leitura, seja para a comunidade puquiana ou para os interessados em questões acadêmicas.

domingo, 13 de março de 2011

O Desastre Japonês e o Destino Americano em Wisconsin

Miyagi destruída -- AP

Nos anos 80, a vitória dos Estados Unidos na Guerra Fria já se anunciava claramente em um horizonte próximo, diante de uma União Soviética presa no atoleiro do Afeganistão e, sobretudo, na própria camisa de força de sua economia hiperburocratizada, os americanos - que já tinham vencido a corrida espacial e tinham absorvido o choque da derrota no Vietnã - caminhavam a passos largos para a hegemonia não só do Ocidente como do Mundo. A Perestroika só foi o anúncio oficial para que os sovietistas ortodoxos pudessem acreditar no que seus olhos testemunhavam - mas fé é sempre um assunto complicado. O fato novo naqueles tempos era o Japão, um país situado em um arquipélago com uma cultura milenar e profundamente singular que, desde os anos 70, surpreendia o mundo seguidas vezes com suas inovações tecnológicas - os japoneses produziam uma tecnologia simples e eficiente que de fato melhorava a vida cotidiana das pessoas, o que era o exato oposto dos soviéticos que com sua tecnologia militar e espacial grandiosa eram, no entanto, incapazes de produzir bons liquidificadores. Os ganhos de produtividade dos japoneses assustavam o mundo e já o país já era colocado como futura maior potência econômica global. 

Tudo isso, claro, não passava de uma análise apressada, ideológica e deslumbrada. Os japoneses produziam avanços tecnológicos de forma paranoica porque não dispunham de recursos naturais e, principalmente, porque a derrota na Segunda Guerra os alijou não só do controle territorial da Ásia como dos meios para retoma-lo (ou mesmo instituir uma relação soberana e amistosa de intercâmbio político-econômico com os países da Ásia), cedo ou tarde o país bateria em um teto, ainda mais porque sua política externa estava (como ainda está) posta em função do interesse dos EUA que continua, curiosamente, a ocupar o país com gigantescas bases militares e uma presença ostensiva de sua Marinha em torno do arquipélago. Ademais, a problemática do sistema financeiro local nunca foi bem compreendida no Ocidente e isso foi dos fatores que mais expôs as próprias limitações do aparentemente bem sucedido sistema político japonês - no fim das contas, uma mistura de Capitalismo de Estado Ocidental com uma indisfarçável manutenção da máquina despótica asiática e sua oligarquia intangível: O Estado japonês nunca foi capaz ou teve o interesse em construir mecanismos que afetassem os privilégios que sua nobreza tinham a partir do controle do seu sistema bancário. A crise japonesa do final dos anos 80 ilustra a chegada ao teto do modelo instituído no pós-Guerra na medida em que o sistema política se mostra incapaz de enfrentar a sua elite e seus interesses específicos junto às finanças nacionais, resultando em uma socialização dos prejuízos que estagnou o país desde então.

Os Estados Unidos, como já largamente debatido neste espaço, perdiam a olhos vistos sua importância relativa junto ao Globo, mas a partir de Reagan passaram a insistir em compensar isso com o aumento do seu poderio militar e, mais grave ainda, partiram para uma jornada imperialista dezenovista com Bush Filho, algo cujas perdas sobre a economia é incalculável. O mundo globalizado usou a estrutura econômica americana como seu núcleo e seu ponto de apoio, mas não percebeu que aquele edifício nem tinha bases suficientemente firmes nem quem estivesse disposto a fortifica-las.  Para além disso, a própria problemática da realização do valor no Capitalismo acabou por vir à tona quando seus mecanismos de fuga passaram a falhar - o que cedo ou tarde aconteceria mesmo.

A tragédia profunda que se abateu sobre o Japão na última sexta - um formidável Sismo que produziu um tsunami, cujo resultado foi a destruição de cidades inteiras e a morte de milhares de pessoas - expôs o drama econômico e político de um país estagnado e, também, particularmente atingido pela Crise Econômica mundial. Pior, as inúmeras usinas nucleares do país, substitutivo arriscado para o petróleo e saída para o alto padrão de consumo energético do país, estão ameaçadas e o risco de se produzir uma tragédia maior com o envenenamento radioativo de vastas áreas é permanente. Analisar a atual situação pelo viés da tragédia pessoal ou mesmo do acaso natural é falso, é necessário pensar no caráter socioeconômico da crise japonesa e suas implicações - ou melhor, como as variáveis socioeconômicas não brotaram do nada e como o resultado de uma tragédia natural só pode ser pensado conjugado com elas. Por exemplo, o que dizer do fato do Governo Japonês ter ignorado os alertas sobre a segurança do seu sistema de produção de energia atômica? Em suma, isso só é uma página da história japonesa, mas que certamente tornará incontornável o debate sobre o sistema local. 

Do outro lado do Pacífico, a crise americana não é menor. A luta do Governo de Wisconsin contra os sindicatos - com direito a golpe do Senado local -, o que gerou essa resposta brilhante do cineasta Michael Moore: A América não está Quebrada - ou melhor, essa crise atual também não brotou do nada, mas tem origens muito claras, sobretudo nas causas da atual Crise e, principalmente, na forma como o Governo Obama tem enfrentado o quadro desde que assumiu, onde passar a mão na cabeça de executivos incompetentes e corruptos  com a injeção de uma massiva quantidade de dinheiro público, sem garantia de retorno algum em troca, tornou-se uma constante enquanto os trabalhadores perdem seus empregos - e veem agora, até mesmo, sua liberdade de organização ser atacada. O movimento de trabalhadores em Wisconsin é chave para o futuro dos Estados Unidos agora que o desastre Obama  prova que os problemas locais vão para além do Partido Republicano.

O momento atual em ambos os países é dramático e o resultado disso será fundamental não só para a sobrevivência, mas também para os rumos da humanidade que vive a agonia do Capitalismo tardio.



quarta-feira, 9 de março de 2011

Uma Esquerda para o Aqui-Agora

Retrato de um Sans-Culotte - Boilly
Pois, afinal de contas, não existe Amanhã. Sim, este post é uma pequena provocação ao nosso querido Murilo Corrêa, mais precisamente em relação ao seu Uma Esquerda para Depois de Amanhã- cujo tema, por certo, será recorrente nos anos Dilma. Sim, os anos Lula embaralharam a tradicional disposição dos espectros políticos no Brasil: Se por um lado, ele pôs em prática a maior política de inclusão da história deste país, por outro, ele o fez debaixo de uma retórica que, desde 2002, puxava o debate para o centro - e, cedo ou tarde, puxaria a prática também. A candidatura Dilma foi a expressão clara desse processo, bastava olhar para a própria espinha dorsal de sua própria campanha: Apresentar-se como a administradora do projeto de transformações iniciado em 2003, não como uma proposta assumidamente política da continuidade - embora deixasse no ar certa essência de politicidade, algo completamente ausente nas campanhas tucanas há muito tempo.

Nesse sentido, a reflexão de Murilo sobre a importância dos movimentos de Gilberto Kassab é perfeitamente válida: Como diabos pode ser sequer cogitado que o direitista prefeito paulistano irá criar "um novo partido de esquerda"? Ou mesmo, acrescentamos, como poderia estar se discutindo a ida de Kassab para o PSB, um partido histórico de esquerda brasileira? Cá da nossa parte, entendemos isso como um processo complexo, que envolve desde as peculiaridades brasileiras - a caminhada para o centro provocada pelo Lulismo, algo deflagrado agora, mas que nunca deixou de ser horizonte próximo de um país onde o cordialismo sempre imperou -, mas também da marcha de um fenômeno global, no qual a democracia representativa produz um descolamento das forças políticas organizadas do próprio solo social do qual são originárias - e no grande mundo da política, longe dos olhares e gritos plebeus, o Consenso se torna uma saída cômoda. Existe também, claro, a própria problemática da esquerda mundial.

Sem fazer um resgate histórico do que se passa, a redução da política nacional a esse caldo consensual pode ser até mesmo tomada como algo bom. O grande ponto é: Por que esquerda? Ou melhor, por que, algum dia, falou-se em esquerda? Como retomam Deleuze e Guattari no Anti-Édipo ao falarem sobre Plekhanov - o patriarca do marxismo russo -, a própria luta de classes é criação da Escola Histórica Francesa como forma de exaltar o papel da classe burguesa na Revolução. Isso que se chama de direitismo, portanto,  nasce do intento hegemônico burguês, uma forma de fazer uma particularidade da Revolução (a participação burguesa no processo de derrubada da aristrocracia) tornar-se seu universal (a participação burguesa, da maioria, do homem branco proprietário de terras e fábricas, ser a causa do processo, a despeito da atuação dos sans-culottes, mulheres e outras minorias). A esquerda não nasceu como o outro lado da moeda da direita, mas sim como a busca pelo reconhecimento de uma pluralidade alijada em prol de uma particularidade, cujo fim é a garantia da vida para todos.

Todas as vezes nas quais a esquerda colocou-se - seja pela afirmação ou pela negação - como o mero outro lado da moeda em relação à direita, algo de ruim aconteceu. A afirmação do binarismo produz o antagonismo paranoico, capaz unicamente de fazer a esquerda produzir uma saída semelhante ao que confrontamos, só que às avessas - e a União Soviética, o leviatã caiado de vermelho, foi um belo exemplo disso. Quando esse binarismo é reconhecido porém negado, reduz-se à política ao Consenso, uma anestesia geral no debate que veda indeterminadamente o questionamento da vida social - capitula-se, portanto, ao império do Normal. Não seria errado dizer que no momento atual, o PT aproxima-se perigosamente de se converter total e completamente à religião do Consenso, ao passo que a única força relevante assumidamente de esquerda, o PSOL, apenas afirma tal antagonismo binarista pela negação. Em outras palavras, sim, existe um esgotamento da esquerda no nosso país, pois a própria intelligentsia canhestra não consegue se livrar de categorias essencialmente binaristas.

A saída é descobrir o Novo - e o Novo só se descobre no Aqui-Agora, posto que o Ontem já não é mais e o Amanhã jamais é; vou mais longe, é necessário o reconhecimento do caráter multitudinário da Vida e o confronto aos objetos parciais e aos reducionismos. Hoje, mais do que nunca, a atuação livre no solo social abandonado pelas forças políticas - quase que isoladas na torre de cristal do Planalto - é central. Esse debate, reitero, só está começando.

terça-feira, 8 de março de 2011

Hoje é Dia Internacional das Mulheres e também Carnaval

Il rinoceronte - Pietro Longhi


Hoje é o Dia Internacional das Mulheres e, ao mesmo tempo, Carnaval. Honestamente, eu não gosto nem um pouco de Carnaval - sim, eu sou um pernambucano atípico -, mas essa capciosa coincidência é interessantíssima: O dia em que as máscaras emergem - num país onde elas são usadas às escondidas durante o ano inteiro - coincidir com uma das muitas realidades mais mascaradas da nossa sociedade - a condição de opressão da mulher - é uma bela provocação. E isso aconteceu, vejam só, no primeiro ano de governo da primeira mulher a ocupar a cadeira presidencial. Este humilde redator está longe de ser a velhinha de taubaté da democracia representativa, mas ele também não deixa de reconhecer que, em uma sociedade hierarquizada como a nossa, o fato de uma mulher ocupar o mais importante cargo político ajuda sim a abalar a normalidade masculinista - e, quem sabe, lança dúvidas também sobre a própria normalidade como um todo. Não, não será o Governo Dilma que, por si só, mudará a tônica dessa triste dinâmica - nem que ela se esforce e ponha em prática a melhor política de gênero concebível -, mas é possível sim considerar que a partir do fenômeno Dilma seja construído qualquer coisa concreta na área - talvez um cadinho para além das encenações e fantasias habituais da nossa sociedade. E talvez este Carnaval sirva para alguma coisa, ou melhor, para algo além de ser apenas a tediosa comemoração da nossa insustentável condição cultural, quando resolvemos mascarar a vida abertamente numa festa

sexta-feira, 4 de março de 2011

Notas de um Tempo Presente

Cronos (Saturno) de Rubens
A letargia resultante dos anos 90 - onde, com o fim da União Soviética, a hegemonia americana se tornou inquestionável - só arrefeceu à base do choque: Dois aviões acertando em cheio o coração da superpotência americana há quase dez anos atrás. Ainda que aquele atentado pareça ter sido ontem, o período de tempo de lá para cá parece ter durado uma eternidade. Aquele ato horrendo de repente se torna a deixa para que ultraconservadores - que desde os anos 70 insistiam em uma doutrina paranoicamente belicista - lancem seu país (e o sistema global) à guerra sem maiores explicações - tal como um Stalin e como o conveniente atentado que ceifou a vida de Kirov na União Soviética dos anos 30 serviu para exterminar seus adversários nos processos de Moscou.  Do mesmo modo que da morte de Kirov seguiu-se a eliminação de toda a intelectualidade soviética não-alinhada, o atentado ao World Trade Center serviu para que os Estados Unidos invadissem o Afeganistão - sem, no entanto, encostar um dedo na Arábia Saudita, das maiores financiadoras do terrorismo internacional - e, mais tarde, falsificar provas para invadir o Iraque e derrubar seu desafeto Saddam Hussein. Tempos duros e assustadores. A crise econômica mundial é consequência direta do extemporâneo - e insustentável - imperialismo norte-americano sobre uma economia mundial, onde seus déficits gigantescos tornaram-se um ônus pesado demais para a economia mundial. A "guerra justa" das hienas kantistas como um Bobbio ou um Habermas segue em curso, enquanto o terrorismo torna-se álibi para que mecanismos de controle sejam não só aperfeiçoados como espalhados por toda parte. As poucas alegrias de um mundo em corrosão é o influxo democratizante na América Latina do mesmo período, apesar de todas as suas limitações e contradições - que agora vêm à tona com o decorrer dos anos. Desde que a crise estourou mesmo, a única boa notícia que tivemos foi esse efeito dominó no mundo árabe, que não apenas colocou a ordem mundial em xeque como trouxe em seus contornos o mais intenso devir revolucionário - a vida escapando da máquina paranoica que serve à sua captura numa luta (desigual), entretanto, ainda em curso. O nosso Brasil, no início de seu mais novo governo (de sempre) é outra esfinge; se por certo aspecto nunca estivemos tão bem, por outro lado, há algo que se opera debaixo do grande debate político, quem sabe apenas um cansaço - mas pode ser uma certa degeneração, por que não? -, algo que se viu materializado nas últimas eleições e acendeu um sinal amarelo em qualquer ufanismo. Há um refluxo normalizador muito forte em curso ao mesmo tempo em que a luta de classes está mais agitada do que nunca, para que lado isso apontará? É difícil dizer, mas eu diria que a experiência das ruas ajuda mais do que a simples teoria agora, embora uma coisa não exclua, de modo algum, a outra.

quinta-feira, 3 de março de 2011

A PUC-SP e a Pedagogia do Trogloditismo

A PUC  de São Paulo foi uma das casas do Professor Paulo Freire. Para quem não o conhece, eu falo de um dos maiores expoentes da história da Pedagogia: Freire teve o mérito inconstestável de ter posicionado tal ramo enquanto instrumento da emancipação humana - em suma, na sua obra, a finalidade de aprender era, nada menos, do que libertar-se. Infelizmente, sua obra é profundamente mal lida, seja nos corredores acadêmicos brasileiros ou mesmo puquianos: O ensino bancário, disciplinador e autoritário sempre grassou pelas salas da Gloriosa, embora a PUC nunca tenha aberto mão de associar seu nome ao do velho mestre. Hoje, em um momento no qual a crise eterna da PUC - movida, vejam só a ironia, por uma dívida infinita - chega em níveis gravíssimos, essa situação piora cada vez mais. O que dizer dos cortes arbitrários de cursos e matérias na Faculdade de Psicologia e de Economia e Administração? Ou melhor, o que dizer do fato disso ter sido (mais) uma medida imposta pela Igreja, a despeito dos órgãos competentes da Comunidade? 

A gravidade da crise atual é tão grande que chega até mesmo a antes intocável Faculdade de Direito onde este humilde redator estuda. A primeira medida é administrativa e autoritária, haverá cortes de docentes que dão poucas aulas por semana, independentemente do seu mérito acadêmico, a outra é o resultado da degradação pela qual o curso passa nos últimos anos: O Conselho da Faculdade de Direito pretende aumentar a nota média de aprovação de 5,0 para 7,0 como forma de fazer os "alunos estudarem mais" - dado os maus resultados da Faculdade no último exame da OAB. O primeiro problema está em perfeita harmonia com a política insana que a PUC adotou desde a crise de 2004: Resolver os problemas da PUC por meio de cortes de gastos e não pela geração sustentável de receita, algo cuja consequência prática é ter professores sobrecarregados e afastar bons nomes. O segundo problema se enquadra na pedagogia obtusa que, infelizmente, não é incomum à Faculdade de Direito: focar o ensino em exames e concursos e tentar resolver o que dá errado punindo os estudantes - como se numa relação educacional, só uma parte pudesse ser o problema ou mesmo se o fim ao qual está sendo a FD não seja completamente indesejado. 

Ademais, os doutos juristas (e eventuais acadêmicos) também se esquecem que tais "maus resultados" são, inclusive, efeito inercial da própria degradação do mecanismo de seleção puquiano somado, ainda, ao aumento de vagas na Faculdade: Se por um lado massificou-se o curso, por outro, isso foi acompanhado de sua elitização por meio de um aumento massivo das mensalidades como visto nos últimos anos. O problema, claro, não está em aumentar vagas, mas sim fazê-lo de maneira desordenada e desastrosa. Infelizmente, existe muito pouca gente disposta em atacar frontalmente essa causa, afinal, há quem veja com bons olhos essa elitização (em um sentido social não intelectual) do curso, embora até mesmo os resultados nos concursos e exames da vida caiam - o que é sintomático, essa estruturação sequer sustenta uma excelência meramente técnica. Aumentar a nota de aprovação para melhorar a   a qualidade do ensino é algo tão irreal quanto congelar preços para acabar com a inflação, em suma, um reles cavalo de pau acadêmico para tentar melhorar a aprovação na OAB - como se isso quisesse dizer alguma coisa academicamente no fim das contas. Onde está a discussão sobre o plano pedagógico? Será que ninguém percebe que a combinação de fatores da "solução" encontrada não fecha? Que algo sempre vai ser sacrificado (normalmente, a excelência acadêmica)? Ou melhor, será que ninguém percebe o impacto disso sobre o próprio rendimento, produzindo dependências e, inclusive, a evasão de bolsistas carentes (sobretudo, os prounistas)? 

A sequência do movimento foi uma revolta dos estudantes e dos mais variados grupos políticos locais, afinal, até o mais decidido chapa-branquismo tem limites. As manifestações contrárias e o abaixo-assinado batendo de frente com as mudanças receberam, inclusive, uma resposta mal-educada da Diretoria da Faculdade via e-mail, que preferiu tentar bater na chapa derrotada das últimas eleições do Centro Acadêmico para tentar dividir um movimento que é de todos os estudantes - em um dos maiores atos de infantilidade que eu já vi em toda a minha vida. O verdadeiro clima de guerra das últimas semanas é assustador, enquanto lutamos cá do nosso lado contra isso - e isso explica a ausência deste blogueiro de seus afazeres -, mais parece que toca ao fundo da confusão toda o réquiem para a nossa Faculdade de Direito, uma Casa que nasceu, vejam só, para superar o tradicionalismo tacanho do ensino jurídico paulista e durante anos, de fato, conseguiu levar isso adiante.

Voltando à PUC, não existe outra saída para toda a Universidade senão a estatização neste momento, mas existe um pequeno fator de desequilíbrio nessa conversa toda (e não é só o Estado): A Igreja, sempre mais preocupada em garantir seu domínio sobre a produção de conhecimento do que em qualquer saída acadêmica. E é fato que desde a explosão da crise de 2004, a Igreja sempre se usou habilmente da situação para aumentar seu grau de influência sobre a PUC - vejam bem, universidades são autônomas no Brasil e instituições confessionais não se confundem com apêndices acadêmicos de nenhuma religião -, o que levanta dúvidas sobre os reais motivos da falta de ânimo em buscar soluções para essa crise financeira mal-explicada. Hoje, a ingerência do Conselho Administrativo - composto pelo Reitor e dois padres que representam a mantenedora - sobre assuntos acadêmicos não é apenas absurda como também é assustadora. Na Faculdade de Direito, as ações impensadas da burocracia local são desesperadoras e decepcionantes. Estamos diante de uma verdadeira pedagogia do trogloditismo.