quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Livre-Docência de André Singer

Amanhã, vai rolar o concurso de Livre-Docência do Professor André Singer no Prédio da Administração da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Será às 16:00. A banca será composta pelos professores Bresser-Pereira, Leda Paulani e Chico de Oliveira entre outros e o trabalho trata do Governo Lula. Vou estar por lá, certamente - o André é espetacular.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Muito Prazer, PSD

Kassab visita Congresso Nacional -- AE
Se historicamente a esquerda costuma rachar quando ocupa o poder, a direita, por seu turno, racha quando passa muito tempo fora dele. Talvez isso explique o surgimento do mais novo partido brasileiro, o Partido Social Democrático* (PSD), um racha do DEM que, no entanto, encontra  também dentre seus fundadores alguns ex-tucanos e ex-membros de variados partidos. 

Temperado ou não, o clado que forma o novo partido é mais uma divisão da antiga ARENA, partido de sustentação da ditadura militar - dentro da democracia farsesca mantida pelo regime -,  ele se junta ao PP (ex-PDS, ex-PPB) e ao DEM (ex-PFL, do qual se desgarrou) como decorrências de uma tradição da direita nacional fundada, a bem da verdade, à sombra dos tanques que puseram fim à  democracia do pós-Guerra no 1º de Abril de 1964.

E o PSD já nasce de forma ambígua, demonstrando a crise pela qual passa a direita brasileira: ao mesmo tempo em que Gilberto Kassab, o prefeito paulistano e idealizador visível da legenda, orienta o jovem partido a não fazer "oposição sistemática" ao Governo Dilma no Congresso  Nacional - dentro do qual sua bancada embrionária já votava a favor do Governo antes mesmo da ratificação do partido junto à Justiça Eleitoral -, nem por isso ele deixa de declarar apoio a José Serra, candidato derrotado nas últimas presidênciais e a voz mais agressiva da oposição,  caso ele se lance candidato a prefeito de São Paulo ano que vem.

O papel de José Serra no processo de formação do PSD, aliás, é dos grandes mistérios da política nacional contemporânea: sim, a legenda teve facilidade para nascer não só porque  isso interessa ao Governo Federal, mas também porque ela agrada aos interesses serristas, uma vez que marca a desidratação do DEM,  o que põe na berlinda os grupos de ACM Neto e César Maia - ambos mais propensos a apoiar Aécio em vez de Serra como candidato da coalizão conservadora para as eleições presidenciais de 2014.

A figura do PSD, portanto, se mostra anódina não por  não declarar no espectro político -  como se isso importasse -, mas, precisamente, por sua prática (que é o que sempre interessa mesmo), que consiste em ocupar - e dilatar - uma zona morta dentro própria representação: se a democracia representativa é uma grande encenação dramática convencional, o PSD se encarrega em separar mais ainda a distância entre plateia e palco, atuando na parte não capturada pela iluminação.

No quotidiano da política nacional, na dureza da (sur)realpolitik palaciana, o PSD atrai  uma gente bem distante do projeto que levou Lula à Presidência - ou mesmo do que Dilma ainda representa -, mas que não pode viver sem estar próxima ao Poder  e, depois de oito anos apostando no bloco PSDB/DEM/PPS, agora prefere adotar uma linha de apostas mais pragmática.  Para o Governo, isso é ótimo.

Isso tudo, ainda, satisfazendo Serra, como informalmente já foi o esquema transpartidário que elegeu o próprio Kassab prefeito de São Paulo em 2008 (contra o candidato oficial tucano Geraldo Alckmin) - o pré-PSD -, pois quebra o principal sócio tucano - e de Aécio - e, ao mesmo tempo, amortece as derrotas serristas no interior do PSDB. Agora, o jogo parlamentar muda e torna-se mais complexo.

* e não "social-democrata" como colocado originalmente, o que só torna tudo mais curioso...

domingo, 25 de setembro de 2011

Liberdade, Vida e Morte em Spinoza e Heidegger

Spinoza, o campeão da Liberdade

"É belo morrer por aquilo que se crê. Quem tem medo, morre a cada dia. Quem não tem, morre um vez só" (Paolo Borsellino, magistrado italiano)

"O medo é uma tristeza instável nascida da ideia de uma coisa futura ou passada, do resultado do qual duvidamos numa certa medida" (Spinoza,  Parte III da Ética, § XIII da Definição das Afecções)


Baruch de Spinoza é chave na compreensão do pensamento contemporâneo e, não à toa, ele acaba sendo um tema recorrente por aqui. O sistema que ele desenvolveu em seus poucos (e precários) anos de vida teve um impacto violento na história da Filosofia, tendo reflexos evidentes - e reconhecidos - sobre as obras de Leibniz, Kant, Hegel, Marx, Nietzsche e toda a construção do pensamento contemporâneo, a começar por Heidegger, cuja obra gerou um impacto em relação ao qual não é possível ficar alheio

A relação entre Heidegger e o legado spinozano ainda é, sem dúvida, a grande polêmica filosófica dos dias atuais. Em primeiro lugar, porque Heidegger, na trilha de Ortega y Gasset e Husserl, busca trazer a transcendência de volta à centralidade do pensamento ocidental, justamente por ser - a exemplo dos dois outros - suficientemente inteligente para saber da importância do pensamento da Tradição para a manutenção da Ordem. 

Ademais, porque Heidegger conseguiu captar que os dois golpes mais duros dados contra a transcendência foram, a saber, conferidos por Marx e Nietzsche, cada um ao seu modo, por conta da influência de Spinoza na obra - aparentemente dispare - de ambos. A tentativa de destruição da "ontologia" presente na obra heideggeriana, portanto, é muito mais um ataque à maneira como Spinoza põe em xeque a transcendência do que uma tentativa de reconstrução da filosofia ocidental.

Grande parte da reflexão teórica de Heidegger, portanto, começa a parir de um diálogo com a obra spinozana, o que é marcado por concordâncias estratégicas que, no entanto, chegam ao inevitável ponto divergente quando tocam em um item, digamos assim, sensível: a Liberdade. E debater a Liberdade em Spinoza e Heidegger equivale a entrar em um terreno pantanoso que nos conduz à própria questão da relação do homem com sua existência.

Para Spinoza, a constituição do real é unitária, imanente e, à maneira dos velhos estóicos, actuosa. Não há negatividade ou transcendência, portanto, sua resposta para clivagem fundamental estabelecida pelo pensamento tradicional - sobretudo em Aristoteles, a saber, a divisão entre potência e ato -, é que a Natureza é ato puro - em outras palavras, o ser é determinado pelo agir, não há uma clivagem de forma real; há, na verdade, uma unidade entre eles. Uma coisa só pode existir pela afirmação de sua potência em ato - o que se dá pelo fato dela diferir de forma intensiva da multiplicidade na qual já se constitui o plano da existência. Não pode existir uma não-coisa, um negativo, um nada - exceto como ficção.

Existe, portanto, apenas uma Substância, una, seus atributos e seus modos - os seres, portanto, são modos da Substância. Ser é funcionar como modo - portanto, é uma relação (e ser um vivente, ainda mais um vivente humano, são determinadas formas dessa relação). De tal maneira, a liberdade humana se constitui justamente pela ação na qual o homem supera as paixões tristes - que lhe são produzidas, como a tristeza, o desespero, o medo - e assume a positividade da natureza. 

Como o próprio nome sugere,  o efeito que uma "paixão" produz é um síntese passiva, algo que afetou um modo, reduzindo ou aumentando sua capacidade agir. Nos grupos humanos, desde tempos imemoráveis, o discurso de dominação sempre teve por fundamento, precisamente, a produção de paixões tristes - na esteira de uma matriz, ela mesma infundada -, pois elas reduzem a capacidade de agir daqueles para qual se volta o discurso e, por conseguinte, tornam-se súditos ou escravos de uma determinada Ordem. O medo é capaz de fazer os homens lutarem contra si como se por si fosse - na reflexão que serve como pedra de toque do magnífico Tratado Teológico-Político spinozano.

E o medo, tanto em Spinoza quanto em Heidegger, é a tristeza motivada pela possibilidade de um acontecimento futuro ou passado - portanto, incerto ou já ido - e desditoso. O medo, a exemplo da esperança, são, como descrito por Spinoza em sua Ética, meras ilusões. Em outras palavras, a morte perde, em Spinoza, seu status de ser um outro em relação à vida, uma vez que não há um equivalente negativo de uma positividade, ela é colocada em seu devido lugar: como a designação genérica para uma série de acontecimentos que marcam o limiar da vida, logo, ela é aquilo que lhe dá forma. Se a morte é esse limiar genérico da vida, a consciência do que ela é - logo, do que é a própria vida -, é aquilo que permite o homem viver cada instante como se fosse seu  último - logo, como se fosse o primeiro de uma vida nova -, podendo, por conseguinte, viver intensamente.

É a partir daí que se estabelece a divergência entre os dois, com a objeção heideggeriana quanto a relação do homem com a morte: o medo, de fato, consiste em uma tristeza devida a um acontecimento meramente hipotético, uma ilusão, mas isso muda no que toca aos eventos futuros e certos como a intransponível morte. É nesse ponto que Heidegger postula uma filosofia fundada na inquietação - ou melhor, na ansiedade - existencial do homem frente à sua finitude. Não é aceitável, para Heidegger, que o homem posto frente ao seu destino seja mais forte, mas sim que isso tal revelação lhe ponha diante do negativo, do nada referente à sua própria finitude - e que a proposição spinozana, por sua vez, não seja nada mais do que uma forma escapista reconfortante.

O problema da objeção heideggeriana a Spinoza, cujas influências desembocam tanto no existencialismo quanto na obra de Michel Foucault - que estrategicamente refuta uma série de proposições heideggerianas, mas não exatamente essa - reside, justamente, no fato de que, como demonstra Spinoza, a construção do aparato teológico-político - um discurso de dominação fundado no medo - jamais dispensou em sua cerne o amparo do desespero - ou mesmo da ansiedade - frente a morte - o que em outras palavras, consiste no estranhamento da própria vida tal como ela é. Ao fazer isso, Heidegger, habilmente, busca reconectar um dispositivo neutralizado por Spinoza no que diz respeito às contingências da vida - ou a idealização do natural operada pelos filósofos (metafísicos) ao longo da história, tal como levantado por Spinoza no início do Tratado Político

Os pontos-chave são, a saber: a inquietação frente a morte não é um dado, mas um elemento construído - com particular zelo ao longo do tempo, diga-se -, portanto, uma filosofia que se prenda a aceitar a morte enquanto problemática retorna ao teológico, assumidamente ao não, por desconsiderar o iminente perigo que representa a transcendência (mesmo finita), sobretudo no que toca a desvinculação entre expressão e ação. Depois, chegamos a um outro problema, que é precisamente a impossibilidade da discussão acerca do negativo como outra coisa senão ficção, uma vez que nada existe senão pela afirmação de sua potência em ato - o negativo, no máximo, se presta a exercer determinada função em operações abstratas enquanto instrumento ficcional, isso não quer dizer que ele tenha condições para se concretizar de forma real (ou ser elemento de sua constituição). 

Para a morte ser um problema verdadeiro, seria necessário assumirmos o risco de propor uma substancialização do que é, por natureza,  insubstancializável para, assim, ser possível  tê-la como oposição suficiente à vida -e não apenas como o seu delimitador. Seria preciso ontologizar  a morte, o que careceria de fundamento - uma prática não estranha à teologia, convenhamos. Talvez isso ajude a nos explicar a postura crítica de Heidegger frente à mathesis universalis proposta por Spinoza - e, por tabela, da sua construção geométrica vista na Ética. Em outras palavras, reiteramos que Heidegger reconstrói, de forma sofisticada, a justificação do temor como problema humano real - o intransponível se põe lado a lado como o universal que, não raro, não passa de modo universalizado na filosofia kantiana -, o que denota mais vínculos com o pensamento ultradireitista da primeira metade do século 20º do que seus defensores gostariam de admitir - na insistente tarefa de separar o Heidegger filósofo do Heidegger filiado ao Partido Nazista.

Como já debatido por aqui, o fascismo foi construído sobre o paradigma do horror àquilo que é próprio da Vida - a ruga, a folha seca que cai, a ferrugem no metal etc -, dentro de um  esquema idealista agudo no qual o contingente é posto como desgraça, atitude frente a qual, só nos resta temer como se fossemos velejadores em alto-mar sob uma tempestade. A construção da Liberdade em Spinoza, ao contrário, passa por um caminho diferente, que é precisamente o de amar o mundo incondicionalmente tal como ele é, enquanto meio necessário para afirmar a positividade da Natureza, não se apegando a fantasmas - nadas, negativos, superstições e quetais - pela próprio impossibilidade dos mesmos existirem concretamente. A objeção heideggeriana nos torna escravos da perseguição de um fantasma, o que é inaceitável.


Atualização das 19:45: sobre isso, vale a pena ler A Imanência: uma Vida... de Gilles Deleuze.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Para Além da Reforma Política

Pnyx, o berço da democracia


Há muito se fala na necessidade de ser feita uma"reforma política" no  nosso país. A razão para tanto está, precisamente, nas muitas fissuras que se abriram em partes relevantes do sistema político desenhado pela Constituição de 1988, coisa que já era possível constatar logo assim que ele foi posto em funcionamento.

É claro que o buraco, para variar, é mais embaixo. A problemática do exercício do poder no Ocidente - e o Brasil não escapa a isso - vai muito mais longe. A tentativa de construção de uma democracia representativa não deixa de ser uma contradição em termos, embora a construção de quimeras raramente decorre de - tampouco volte-se para - meros enganos.

Pois bem. A reforma política foi tema recorrente da nossa última campanha presidencial com Dilma Rousseff, a atual presidenta, mostrando-se favorável à reforma - fazendo coro com Marina Silva, então candidata verde -, enquanto o conservador José Serra se limitava a defender o "voto distrital". 

Dilma e Marina defendiam a reforma mediante uma "constituinte exclusiva", o que,  já àquela época, apontávamos como fantasiosa e impossível: a reforma passaria obrigatoriamente pela dureza das negociações parlamentares, pois não havia meios jurídico-constitucionais vigentes para fazer diferente disso, seja no que concerne à produção de leis (complementares ou ordinárias) ou, sobretudo,  às emendas constitucionais.

O problema, tal como posto, encontra dois tópicos da maior importância: um é a distância dos eleitores em relação aos legisladores que elegem e o outro a corrupção colateral que decorre, vejamos só, de acordos espúrios decorrentes do financiamento de campanha, em grande parte privado - embora juridicamente ele seja misto -, o que vincula de forma promíscua políticos eleitos de seus financiadores. 


O sistema de voto proporcional com listas abertas adotado é frenquentemente incompreendido, seja por sua relativa complexidade ou por agravar mais ainda a fragilidade dos partidos, o que cria uma concorrência interna nos partidos e, por tabela, produz uma desinformação geral sobre seu funcionamento. Essa disfunção produz uma cultura de voto na figura pessoal do candidato em um sistema que se alimenta (ou deveria) na coerência dos partidos.


Votando na legenda ou não, temos um voto com dupla implicação, a primera, é a ida do voto, nas eleições parlamentares, para o partido do candidato e a segunda, por sua vez, é, em caso de voto em algum candidato e não na legenda, para o próprio candidato em relação aos seus colegas candidatos pelo partido. Assim, se um partido (ou uma coligação, o que está prestes a cair) elege 50 deputados, eles serão os 50 mais votados entre si.


Em resumo, o sistema força um efeito curioso, onde cada candidato à deputado ou vereador faz campanha para si mesmo e, ao mesmo tempo, os partidos são desobrigados a realizarem prévias internas para escolherem seus candidatos e, pior ainda, de apresentarem um programa sólido. 

Figuras pessoalmente populares se destacam e o parlamento fica erodido, ainda mais em um cenário no qual a fidelidade partidária só veio a ser, razoavelmente, implementada há pouco. Por outro lado, campanhas, de um modo geral, custam caro, o que não é de se estranhar em uma sociedade do espetáculo. 


Empresas têm dinheiro e nem sempre é possível um candidato prescindir delas - quando isso ocorre, é mais difícil ainda livrar-se dos compromissos políticos contraídos - legais ou não, embora grande parte dos casos de corrupção tenham relação com tal fenômeno, mas é preciso salientar que mesmo em um cenário onde não há ilegalidade, só o fato dos financiadores de campanha se tornarem super-eleitores, já é, por si só, um problema.

O Projeto de Reforma Política, relatado pelo deputado federal Henrique Fontana (PT-RS), foi enviado para a Câmara recentemente e foca nos dois pontos citados (além de mudança na data de posse, suplência de senador e mudanças no domicílio eleitoral): ele defende a alteração do sistema de voto proporcional em lista aberta para estabelecer um sistema com dois votos, o chamado "distritão misto" - um para o partido, outro para candidatos de forma unipessoal - sendo metade da lista eleita proporcionalmente à votação do partido (por listas fechadas) e a outra por seu desempenho pessoal; por fim, ele defende o financiamento exclusivamente público de campanha. 

É fato que a proposta de alteração do sistema eleitoral para eleições legislativas é ruim. O distritão misto é confuso, não resolve os problemas do sistema atual e ainda é mais difícil ainda de ser compreendido. O financiamento exclusivamente público de campanha, por sua vez, é uma saída interessante e, à luz dos fatos, é uma proposta impressionante de tão boa.

A questão do sistema de voto misto, aliás, já é alvo de uma polêmica, uma vez que o senador  Aloysio Nunes (PSDB-SP) propôs no começo do ano um projeto de lei favorável ao sistema distrital puro e, agora, o PSDB parece mesmo engajado em defender esse sistema de voto - depois de Aécio ter defendido o "distritão misto" no começo do ano. José Serra, recentemente, se pronunciou atacando o projeto de Henrique Fontana, chamando o distritão misto de "samba do petista doido", ignorando a influência de seu correligionário - e desafeto - Aécio Neves na elaboração da proposta.

Se o distritão misto é mesmo ruim, por outro lado, o voto distrital - alvo de uma campanha na Internet  - é simplesmente horrível por vários motivos: 

(1) o número de deputados estaduais é maior do que o número de deputados federais, logo, ou teríamos de aumentar o número dos segundos ou reduzir o dos primeiros - ou uma terceira hipótese absurda que seria a de termos um distrito para deputados estaduais e outra circunscrição para deputados federais na mesma eleição; 

(2) O Brasil é um país demograficamente heterogêneo, logo, cidades grandes teriam de ser rachadas em vários distritos, enquanto cidades pequenas deveriam ser unidas. Nunca teríamos distritos certinhos, com uma proporção correta do eleitorado.

(3) O sistema de voto distrital abre espaço para distorções matemáticas. Por exemplo, em um país imaginário com 100 distritos, se um partido vencer por 100% dos votos em 50 deles, ele terá o mesmo número de cadeiras que seu adversário, que venceu na outra metade por 50,1% dos votos. Mas nem precisamos de um exemplo hipotético tão teratológico, basta lembrar das últimas eleições britânicas, nas quais houve uma distorção absurda dos votos: se os conservadores tiveram apenas 36% dos votos contra 29% dos trabalhistas e 23% dos liberal-democratas, a distribuição dos votos por distritos fez com que os conservadores ficassem com 47% das cadeiras contra 39% dos trabalhistas e apenas 8,8% para os liberal-democratas. Sim, um partido pode conseguir a maioria das cadeiras sem vencer entre os eleitores.

(4) Restaria saber quem e - principalmente - como seriam divididos os distritos - e também quem e como se faria a permanente contagem populacional dos eleitores de cada distrito. Isso, nos EUA, sempre alvo de problemas, com circunscrições eleitorais sendo definidas por interesses de políticos e interesses poderosos para, inclusive, prejudicar minorias étnicas que, por um acaso, estavam concentradas em certas regiões de alguns estados - sobretudo os negros no sul. Eram construídos distritos artificiais, verdadeiras costuras, para impedir que representantes negros fossem eleitos. Existe até uma expressão para essa prática: gerrymandering.

(Enfim, se tem gente por aí que diz ser a favor do voto distrital puro porque "ele elegeu Churchill", eu sou contra porque isso atrasou em anos a eleição de representantes negros nos parlamentos dos Estados Unidos)

Estranho, embora explicável, é a contrariedade de Serra ao financiamento exclusivamente público de campanha. E com argumentos de que isso favoreceria PT e PMDB. Errado, essa bem-aventurada proposta petista favoreceria os pequenos partidos e ainda por cima diminuiria a promiscuidade da relação partidos-empresas. Quem sairia prejudicado é quem tem mais conexões com o capital, precisamente os grandes partidos como PMDB e PT - mas talvez em maior medida o PSDB, o que torna seu posicionamento explicável como coloquei inicialmente, embora seja um sofisma dizer que os dois maiores partidos governistas sairiam favorecidos.

Como se não bastasse, o que Serra e Aloysio talvez ignorem, quem sabe por não olharem atentamente o número de prefeituras pelo país, é que quem sairia fortalecido de um sistema distrital puro são, justamente, os partidos que ainda controlam currais eleitorais e não aqueles que, bem ou mal, estão propondo projetos (como o PSDB): em outras palavras, se Serra e Aloysio estão tão preocupados assim com o crescimento do PMDB, eles não deveriam defender o voto distrital, uma vez que é aquele partido o mais enraizado no interior brasileiro e, por tabela, o mais favorecido.

Ironias do destino, o voto em lista fechada, sempre defendido pelo PT é aquele que mais ajudaria o PSDB, hoje, a reverter sua trajetória de queda na votação para a Câmara. Na medida em que os tucanos lançam candidaturas e são quem, de fato, antagonizem com algum peso contra o PT, é provável que se o partido da estrela até aumentasse sua bancada, por outro lado, seria o PSDB e não o PMDB a vir logo atrás dele. Relativamente, é provável que a base governista até diminuísse com o sistema de voto que o PT defende. Olhando o sistema de lista fechada destacado do impacto no mundo partidário, ele seria mesmo a melhor saída, embora sem obrigação legal de realização de prévias, nada feito. 

Em outras palavras, a referida reforma política segue atolada e não há de se esperar grande coisa. O debate é construído nas altas cúpulas, longe das ruas, o que toma um caráter dramático quando levada em consideração a aparente esquizofrenia das propostas tucanas, os interesses rasteiros do PMDB nisso tudo e a escravidão do PT em relação à sua burocracia e,  mais ainda, em relação ao sistema parlamentar falido e uma base governista heterogênea e instável.

Só um movimento muito forte vindo da sociedade poderia produzir uma mudança, mas nenhum partido tem interesse em movimentar isso e as organizações políticas não-partidárias têm pouca ou nenhuma força - as que tem, notem, estão vinculadas de certa forma aos partidos como no caso dos sindicatos.

Aí chegamos à matriz do problema da democracia representativa: ela não nasce neste ou naquele modelo de representação, mas sim na clivagem fundamental da modernidade, a saber, não apenas a redução da pólis à sociedade - um grupo atomizado, unido por interesses variáveis -, mas que essa própria sociedade está cindida permanentemente; de um lado, a sociedade política - o Estado, seus burocratas, seus líderes eleitos (nas democracias) todos em menor ou maior rotatividade -, do outro, a sociedade civil, lar dos cidadãos, aqueles que são identificados como parte do todo político, mas não são vistos como ativos do ponto de vista da governança.

Se na Antiguidade o civens (cidadão) era apenas a palavra latina para o grego politikón (político), a modernidade considera os dois termos não como sinônimos, mas como instrumentos conceituais diferentes que, entretanto, se unem para dentro da mesma escala de hierarquia para opera-la. Se a Revolução Francesa por um lado trouxe a universalização da cidadania, por outro lado, ela se deu esvaziada de seu conteúdo; o cidadão tornou-se tão somente uma identidade, passivo e posto para fora da esfera decisória como qualquer súdito.

Em outras palavras, os problemas que levam o Brasil a buscar uma reforma política - e os mesmos que atravancam tal processo - têm implicações muito mais profundas; se o Estado de Exceção é regra geral em nosso tempo, isso se dá não apenas porque o Capitalismo - e o posterior estado de guerra civil global produzido pela globalização - reforçam o autoritarismo por meio da dissolução da política pela exaltação do Governo, mas sim porque antes deste momento, a própria construção política contemporânea já parte de uma premissa na qual quem ela inclui no corpo da cidade é incluído como separado.



quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Comissão da Verdade e um Problema para Além do Direito

A Câmara dos Deputados Federais aprovou ontem o Projeto de Lei que instaura a Comissão Nacional da Verdade para esclarecer os crimes cometidos no período de 1946 a 1964. Agora, ele segue para aprovação no Senado. A proposta já se encontrava no polêmico Terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), tomou a forma do PL 7376/10 e sua aprovação é compromisso de campanha da Presidenta Dilma - apesar das estranhas (ou nem tanto) hesitações ao longo deste ano (como comentado aqui e aqui).

Basicamente, uma comissão composta por sete membros indicados pela Presidenta se destinará a, no prazo de dois anos posteriores à aprovação do PL (o que é bastante provável que ocorra), "examinar e esclarecer" o que houve no (inexplicavelmente) largo período de 1946 até 1988. A Comissão Nacional da Verdade não se voltará a fins judiciais, embora possa punir os militares convocados que se negarem a prestar informações. Ao fim dos trabalhos, deverá a comissão apresentação um relatório de suas atividades.

Falar da importância da existência de tal Comissão é desnecessário, não é de ontem que estamos falando, mas sim de hoje, de uma estrutura social "democrática" construída em cima de uma mal-explicada e obscura transição "pacífica" do regime militar para o regime atual. 

O recente e obtuso (de parte a parte) julgamento do STF que declarou a constitucionalidade da Lei de Anistia, deixou escapar o óbvio: mesmo aquela lei, uma anistia curta, específica e restrita, não anistiou "crimes de sangue" - e, por óbvio, fazia referência aos resistentes armados contra a ditadura e não aos seus agentes -, mas a ausência de investigação  e julgamento de crimes bárbaros cometidos pelos agentes do regime como homicídios, torturas e estupros os fez, a um primeiro olhar, prescrever - como apontou o Professor Túlio Vianna há dois anos.

No sistema constitucional brasileiro atual, os únicos crimes imprescritíveis são o racismo (art. 5º, XLII) e  a "ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático" (art. 5º, XLIV). Os tratados e acordos que o Brasil assinou sobre a imprescritibilidade da tortura - como o Pacto de San José da Costa Rica, são posteriores, portanto, não poderiam (juridicamente) fazer a lei brasileira retroagir (tornando imprescritível o que prescritível é, ainda, considerado), pois aí estariam restringindo um direito fundamental.

A questão chave, no entanto, é que não se tratam de crimes comuns. Foram crimes cometidos por agentes do governo brasileiro em um momento no qual o Estado brasileiro estava sequestrado por golpistas. E a nova ordem construída em 1988 silencia sobre a existência de tais crimes. 

Quase que por acaso, os crimes contra a humanidade realizados pelos agentes do regime, passaram ignorados do mesmo modo que o próprio golpe de 1964. E não é que isso não tenha sido capturado pelo direito; aquilo que foi capturado astuciosamente pela máquina providencial foi a livre manifestação política, tanto em 1964, quanto ao longo do regime militar, uma vez que se tornou incólume por outros meios quem desumanizou, com o Poder de Estado, aqueles que se levantaram contra o regime e, depois, silenciou sobre eles por 23 anos.

A teoria geral do direito privado e o direito administrativo, no entanto, apontam para reparações pecuniárias dos perseguidos e/ou torturados em virtude das construções ficcionais dos direitos personalíssimos - que não prescrevem nem decaem, uma vez que são declaratórios - e da responsabilidade objetiva do Estado pelos danos que ele causar. Em suma, o Estado brasileiro, genericamente e na figura da União, deve pagar indenizações para as vítimas do Regime.

Obviamente, não possuímos qualquer sanha punitivista, mas o fato - e isto é o ponto preocupante na questão - é que o enquadramento disso em um âmbito normativo-positivista - ou a busca de uma explicação jurídica para algo que não poderia (nem tomou) essa forma - é uma falácia de uma dimensão perigosíssima, uma vez que aquela violência praticada foi (propositalmente) "ignorada" e, portanto, autorizada pelo regime de exceção assim como suas consequências foram legitimadas pela ordem democrática nascente por meio de seu esquecimento. 

Por uma via negativa, operou-se a legitimação da dessubjetivação daqueles indivíduos, o que em outras palavras funcionou como legitimação do mecanismo que os identificou como elimináveis.

Não é que isso os faça ter direitos "naturais" ou "transcendentes" ao posto, é mais do que isso, isso expõe como a perspectiva de um direito fraturado da política que o concebe e tratado como se não existisse apenas, e tal somente, como ficção para servir à própria política pode servir absolutamente para tudo por meio da anestesia.

A questão de penalizar ou não os torturadores - e, mais importante ainda, seus comandantes, civis ou militares - não é impossível à luz do direito tal como ele é, haja vista que não há solução para o problema posto - e não é que não pode ser punido porque não existia previsão, é que poderia ser punido agora justamente por o que aconteceu não tinha sido imprevisto e não tem simetria com o que é -, mas sim porque a punição penal é ineficaz em todo caso.

A maior vitória que pode haver agora é, precisamente, a possibilidade de dar vazão à narrativa histórica interditada pelo monocromático verde-oliva - e pelo cinza dos ternos dos tecnocratas e aliados civis do regime - para, assim, desligar certos dispositivos ainda operantes por meio da história e não ao vazio das normas. Por mais improvável que isso pareça. 



quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Dilma na ONU

Plenário da ONU
Nunca na história deste planeta uma mulher fez o discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU. A mulher em questão, aliás, foi Dilma Vana Rousseff, Presidenta da República Federativa do Brasil. E foi um belo discurso. Dilma foi precisa ao enfocar a gravidade da crise mundial, saudar a ascensão da Primavera Árabe, tocar no problema de gênero e, sobretudo, exortar o reconhecimento do Estado Palestino. 

Tudo isso, justo no dia em que se debate, na Câmara, a Comissão de Verdade, destinada a esclarecer o obscuro período da Ditadura Militar, do qual a própria Dilma foi vítima direta. Grande parte do prestígio de Dilma se deve à herança bendita de seu antecessor, Luis Inácio Lula da Silva, que lhe legou um país próspero economicamente, mais justo socialmente e enxergado como interlocutor de respeito pela comunidade internacional.

E é o Brasil o país que assume a postura mais lúcida e ousada, dentre as grandes nações,   em relação à crise econômica mundial e, por ser precisamente o mais democrático em meio ao BRIC - grupo formado por Brasil, Rússia, Índia e China -, é em torno de nós que qualquer projeto mais libertário - incutido, por incrível que pareça, nas assombrosas máquinas governamentais do Ocidente - pode, ainda, florescer.

A responsabilidade do país no mundo crescerá. O Brasil e o mundo precisam disso. O ponto é que precisamos resolver muitas coisas internamente para sonharmos em resolver qualquer coisa fora daqui. 

Seja as necessárias reformas institucionais - a saber, aquilo contido na Reforma Política e na Comissão Nacional de Verdade - e as demandas econômicas presentes: o Brasil está exposto à crise econômica, mas tem uma oportunidade histórica de não só retomar o crescimento como reverter assimetrias tais como a questão dos juros, para a qual tem o aval do FMI. 

No plano externo, o Brasil precisa ter muito além de um mero elogio à Palestina e uma condenação de uso da força contra a Primavera Árabe, é preciso que se reverter o refluxo dos últimos meses, sob a batuta do hesitante chanceler Patriota.

O Brasil, que era apenas um grande e esquecido país há menos de dez anos, pode ser o ovo do qual eclodirá um novo modelo de sociedade para o mundo em globalização, mas precisará ter a coragem de enfrentar seus demônios interiores.

P.S.: O projeto de lei que instaura a Comissão Nacional da Verdade foi aprovado há pouco no plenário da Câmara e, agora, caminha para o Senado. É um item importantíssimo do âmbito interno brasileiro. Voltaremos a debater a questão com mais profundidade nos próximos dias assim como a questão da Reforma Política. 


sábado, 17 de setembro de 2011

O Fechamento da PUC: Festa, Luto, Anomia

Carnaval em Roma -- Lingelbach
Ontem, a PUC de São Paulo esteve fechada, com todas as suas atividades suspensas e a comunidade devidamente advertida para não entrar no campus. E isso não foi, pasmem, por conta do luto decretado por Nadir Gouvêa Kfouri, a pessoa mais importante da História daquela Universidade, mas sim porque o Reitor, por meio do ato 127/2011, determinou que as atividades fossem interrompidas para que não acontecesse uma festa programada para dentro do campus. 


Sobre Dona Nadir, na última quarta-feira, poucas horas depois de sua morte, houve a decretação de um luto de três dias, sem maiores repercussões e, para falar a verdade, sem os préstimos das devidas homenagens - as faculdades de Ciências Sociais e Serviço Social pararam porque quiseram. Nem a Faculdade de Economia e Administração, tampouco a Faculdade de Direito pararam.  A Reitoria, portanto, limitou-se a dar a notícia da morte.

Festas ocorrem, como historicamente sempre ocorreram, no campus de Perdizes. O argumento de emergência empregado pela Reitoria, portanto, só não soa terrivelmente falacioso para seus próceres ou, quem sabe, para calouros desavisados. É claro que a livre gestão do espaço Universitário - e dos corpos - não interessa ao poder soberano.


É claro que a festa da Cultura Canábica em questão poderia ser questionada - não tanto por sua conotação, como nos lembra a decisão recente do próprio Superior Tribunal Federal sobre a Marcha da Maconha -, mas sim pela incompatibilidade de estrutura da PUC com ela, mas  daí a chegarmos à suspensão arbitrária de TODAS as atividades - e dos direitos, uma vez que foi sim uma medida de exceção -, há uma distância muito grande, sobretudo quando a decisão se volta para a festa em si.


Pior de tudo, a atual gestão da Reitoria, que se demonstra incapaz de dirimir democraticamente uma festa dentro do campus porque não possui qualquer capacidade de interlocução junto à comunidade. Ela ainda usou o episódio de forma oportuna para condenar a realização de qualquer tipo de festa lá dentro, invocando um artigo do atual Regimento Geral - produzido bem longe da Comunidade, sob a batuta da Mantenedora -, que, a bem da verdade, é, como não poderia ser diferente, letra morta.


Agora, está sendo produzido um álibi importante a partir da festa não realizada e medidas que o atual reitor jamais escondeu sua predileção por aumentar os muros da Universidade, para além das mensalidades já proibitivas, defendendo agora catracas no campus - como se a tal festa pudesse ser evitada por elas caso fosse o pandemônio que a própria reitoria alegou - e mesmo medidas de imunização e higienização.


A partir daí, nos lembramos dos velhos Deleuze e Guattari quando eles nos dizem que "A história universal não é senão uma teologia, se ela não conquista as condições de sua contingência, de sua singularidade, de sua ironia e de sua própria crítica”. E a profunda ironia do campus não ter tido suas atividades suspensas em homenagem a Dona Nadir e sim para impedir sua festa é pura ironia, o que não é, de forma alguma, coincidente, mas perfeitamente coerente entre si.


Ainda assim, não se pode deixar de notar o curioso efeito gerado pela proximidade das datas, o que expõe a ferida de forma pungente. Mais surpreendente ainda é lembrar que Giorgio Agamben, em seu magnífico Estado de Exceção, escreveu um capítulo, precisamente o quinto, que se chama "Festa, Luto, Anomia" no qual ele, buscando desvendar as origens do Estado Exceção, chega ao instituto do Justitium, a suspensão de direitos, e não ao instituto da ditadura, como os teóricos da Exceção, a exemplo de Schmitt, sempre buscaram vincula-la.


Depois de ter chegado às suas raízes remotas no fenômeno do Justitium, ele chega até à transformação do significado daquele instituto - que servia para dirimir os tumultos podendo ser posto em prática por qualquer cidadão -, nos tempos do Império, no luto público resultante da morte do Imperador.


A formulação na qual Agamben chega para explicar o nexo entre essas duas mudanças é simples: a relação aparentemente improvável entre o mecanismo republicano de suspensão dos direitos e o luto público encontram nexo no fato de que o Império é marcado, justamente, pela confusão gradual entre a Auctoritas - prerrogativa do Senado da República em ratificar e legitimar as decisões do Povo reunido em comícios - e Potestas - o Poder - na figura do Imperador. 


Uma vez que Vida e Direito passam a se confundir, a morte do Imperador é a causa do tumulto, uma vez que nele, a vida privada e pública se confundem, transcendendo a ambas, revelando o secreta solidariedade entre direito e anomia.  É esse fenômeno que explica o desenvolvimento, em sentido contrário a si mesmo, de festas como a Antestérias e a Saturnália no mundo antigo até desembocar no Carnaval e no Halloween de hoje, nas quais a ordem é posta para baixo:


"As festas anômicas indicam, pois, uma zona em que a máxima submissão da vida ao direito se inverte em liberdade e licença e em que a anomia mais desenfreada mostra sua paródica conexão com o nomos: em outros termos, elas indicam o estado de exceção efetivo como limiar da indistinção entre anomia e direito. Na evidenciação do caráter de luto de toda festa e do caráter de festa de todo luto, direito e anomia mostram sua distância e, ao mesmo tempo, sua secreta solidariedade" (Estado de Exceção, Cap. 5, p. 110)
E o fato é que o dispositivo anulou tanto o luto, de forma comedida, quanto a festa, aí com certo escândalo. Não só, a suspensão disso, volta-se para um horizonte de legitimação de uma suspensão permanente. O Carnaval, enquanto paródia, marca a suspensão das obrigações por meio de um desligamento do mecanismo identitário, a Exceção enquanto realidade político-jurídica, marca a suspensão dos direitos subjetivos e fundamentais por um reforço dos mesmos e de tantos outros dispositivos. Aos dispositivos posto em funcionamento não interessa que haja subversão nem ao mesmo enquanto paródia porque eles reconhecem, de modo perverso, o potencial libertador disso.


No cerne da questão está como a aplicação da Exceção não contradiz o Direito e, mais importante de tudo, como isso volta-se a todo tempo, mais hoje do que na velha Roma ainda que também, ao desfazimento da possibilidade da plebe fazer-se sentir e assumir-se como multidão, isto é consciente de ser coletivo e simultaneamente singular, o que é enunciado como tumultus com o intuito de ser debelado - ainda mais se considerarmos o potencial revolucionário de assumir a polifonia própria do Carnaval à prática política, como nos lembram Antonio Negri e Michael Hardt no belíssimo Multidão (p. 271 a 274).


Retornando ao caso concreto, a mera lembrança protocolar do desaparecimento de Nadir Gouvêa Kfouri e a maneira oportuna como foi utilizada a proibição da festa da Cultura Canábica (que se tinha ou não de ser proibida não vem ao caso, mas certamente o foi pelos motivos e com os fins errados) estão intimamente ligados e se juntam dentro de um processo de agravamento do Estado de Exceção em que a PUC-SP se encontra desde que a Igreja resolveu ingerir em seus assuntos internos, sob os auspícios do álibi financeiro, há sete anos atrás.



quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Uma Singela Homenagem a Dona Nadir

Ontem, faleceu Nadir Gouvêa Kfouri, a maior reitora da história da PUC-SP. Dona Nadir comandou a Gloriosa entre 1977 e 1984, não por acaso seu período de ouro. Por mais ataques que tenham sido cometidos contra seu legado dentro da PUC - por forças que embora sejam obscuras por natureza, já não mais temem em agir em plena claridão do dia -, Dona Nadir deixou uma sementinha valiosa: como a questão da excelência acadêmica está intrinsecamente ligada com liberdade e democracia interna nas universidades. O pesar pela sua morte só não é maior pela alegria que seu legado vivo nos proporciona na dura luta do dia-a-dia.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Dilma Proclama a Independência do Banco Central

Um dos assuntos recorrentes desde a semana da pátria, na qual este humilde blogueiro se reservou ao direito de tirar uma pequena (e quem sabe justa) folga, é a velha história da "independência" do Banco Central, que veio à tona agora depois da decisão do COPOM em reduzir a taxa básica de juros, em 0,5%, sem consultar o mercado.

Antes de mais nada, não custa lembrar o que o que o BC é: uma autarquia federal sob o controle do Ministério da Fazenda. Isto é, um órgão da Administração Indireta. Ou seja, parte do Estado brasileiro e não do mercado - como não poderia ser diferente, afinal, falamos do coração do sistema financeiro. 

Juridicamente, não há discussão sobre independência do BC, ele é autônomo na forma que o nosso sistema legal estabelece e não um poder paralelo - o que não quer dizer que ele o tenha sido, desde que passou a operar de acordo com os ditâmes do mercado financeiro, ele o fazia única e exclusivamente por anuência do governo.

Isso mudou recentemente. Sendo bastante pragmático, o que interessa muito mais do que os juros terem baixado, é que o governo Dilma se colocou em uma posição pró-ativa, no qual ele não antecipa para os agentes econômicos sua política, passando assim a reger a orquestra em vez de ficar apenas dançando ao som da música.

Em recente artigo para a Valor, Yoshiaki Nakano, economista historicamente próximo ao PSDB e a José Serra, reconhece o valor da medida - com a honestidade que tem, infelizmente, faltado a Serra desde que perdeu para Lula em 2002. 

O artigo de Nakano, aliás, vai na mesma direção do que escreveu Delfim Neto recentemente para a CartaCapital: a medida, a bem da verdade, é tanto mais a conquista efetiva da independência do BC (em relação a quem ele deve ser autônomo) do que o contrário, como se quer fazer parecer.

É claro que o joio também precisa ser separado do trigo: a demonização dos juros, mecanismo essencial no controle dos movimentos do capital financeiro - a pedra de toque do Capitalismo -, não corresponde exatamente ao que precisamos; é bom ter em mente que se luta por juros corretos não baixos (muito menos por juros altos, é claro).

Também é preciso considerar que qualquer movimento de alteio de juros no Brasil, por óbvio, tem efeito colateral sobre as contas públicas, uma vez que é a taxa de curto prazo - a chamada SELIC - que remunera os títulos da dívida pública.

Nesse sentido, as taxas em Lula, embora maiores do que deveriam, estiveram menores do que sob o manto de FHC - ainda que tal medida se devesse, na prática, a um incentivo público para a internalização da antiga dívida externa, fazendo com que os próprios bancos brasileiros se tornassem os credores do Estado, o que não tem preço.

Agora, com a dívida externa praticamente toda internalizada, Dilma tem uma oportunidade de ouro para trazer a taxa de juros (ponderada, é claro, a relação com o aquecimento da economia) para patamares razoáveis. 

Mais do que isso, há meios tributários muito simples de reduzir os danos da colateralidade financeira gerada por eventuais aumentos da SELIC: aumentar os impostos sobre circulação financeira, onerando os próprios bancos (que teriam seus ganhos sobre o Estado relativizados por ganhos tributários do Estado sobre eles).

O patamar deste debate, por certo, vai para muito além disso. A questão creditícia consegue atar, por incrível que pareça, a problemática marxista da realização do valor com a problemática nietzscheana da dívida infinita, trazendo à luz a inviabilidade do Capitalismo enquanto elemento garantidor de uma sociedade livre, mas fiquemos por aqui por enquanto.



domingo, 4 de setembro de 2011

Sobre o Debate Educacional: Uma Crítica ao PNE e ao ME

Dilma e Haddad recebem a UNE
Enquanto no Chile as manifestações do movimento estudantil seguem a todo vapor, com uma adesão e uma transversalidade inacreditável - servindo até de combustível para o movimento por uma nova Constituição -, cá, em terras tupiniquins, o ME segue longe de conseguir ser popular mesmo dentre os próprios estudantes. Atualmente, uma bandeira geral passou a ser empunhada: a exigência de 10% do PIB para a Educação.

Quando falo em bandeira geral, faço referência a algo que parte da própria direção e campo majoritário da União Nacional dos Estudantes (UNE) - que é pró-governo - e também de sua oposição - ligados aos partidos da extrema-esquerda, dentro e fora da UNE. 

Ano passado, não custa se recordar, o quarto colocado nas eleições presidenciais, Plínio de Arruda Sampaio (PSOL), propunha o mesmo para a Educação. Marina Silva (PV) e Dilma Rousseff (PT) falavam em 7% do PIB. Quanto a José Serra (PSDB), eu não me recordo exatamente se ele simplesmente não propunha nada para isso ou se ele simplesmente não explorou o ponto por não considera-lo eleitoralmente relevante.

Eleita, Dilma Rousseff cumpriu o que prometeu e está a defender um aumento progressivo do investimento em Educação para chegar ao patamar de 7% do PIB - como consta no Plano Nacional de Educação 2011-2020, cuja aprovação tramita no Congresso na forma do Projeto de Lei n. 8035/2010, apresentado para o plenário da Câmara ainda nos últimos dias do Governo Lula - por uma negociação capitaneada pelo seu ministro da educação, Fernando Haddad, que foi mantido no cargo pela Presidenta.

Tal Projeto de Lei ainda institui um mecanismo de reavaliação do investimento em educação para o quarto ano de vigência da lei (art. 5º), tendo em vista o devido cumprimento das metas em questão. O que é negativo, em um primeiro momento, é que o debate em torno do tamanho do investimento gire em torno de porcentagem do PIB, o que, à luz da prática administrativa, é apenas um remoto valor referencial. 

O que há de concreto mesmo é a proporção do orçamento, o que é outra coisa. Não que uma coisa exclua a outra, mas seria necessário fixar o quanto do orçamento seria investido, o que não poderia ser contingenciado etc. Ademais, o Estado, não custa lembrar, não tem em mãos a totalidade do valor do PIB e mesmo seu tamanho não é preciso - podendo, inclusive, ter a metodologia de cálculo (logo, o seu valor) modificados. Isso seria um questionamento interessante de ser feito, para além de um disputa por números.

Ainda, por mais que seja louvável o quanto essa agitação do Movimento Estudantil tenha trazido luz ao debate sobre o grande tema esquecido do país, é preciso ir além disso. O que deve ser feito para melhorar a Educação nacional não é difícil, mas sim como fazer isso.


Entre estabelecer metas programáticas e estipular um valor abstrato de investimento, seria necessário pensar nos modos de gestão disso - diria mais: pensar isso por uma perspectiva molecular e não molar.

Não adianta defender apenas certas metas e um aumento do investimento na área para melhorar a educação pública nacional. É necessário ir ao mais simples dessa questão toda, pensar quem sabe, no processo de desburocratização da Educação Pública, escancarado hoje na maneira como a Escola está engessada pela burocracia estatal que decide seus rumos por meio de políticas massificadas. 

A reconstrução da carreira magisterial não se limita à recomposição salarial e à instituição de planos de carreira, mas sim também a retomada da figura do professor como uma entidade política, dentro de uma Escola inserida na Comunidade a qual pertence. Precisamos de mais autonomia local e menos controle de superintendências de ensino e secretarias de educação. 


No demais, é preciso repensar a democracia universitária, não é possível conviver com autonomia universitária sem o devido contrapeso, uma vez que assim, continuaremos sob o julgo das pequenas tiranias das oligarquias acadêmicas.

É pensar a questão educacional pelo seu aspecto mais elementar e singular para, depois, pensar em como amoldar isso ao Orçamento. Quando o MEC coloca questões macro à luz, é preciso compreender que ele é, afinal de contas, um ministério - e por mais que ele faça parte de um governo de (centro-)esquerda, chefiado por um político de esquerda, seu próprio design jurídico-político o prende ao mundo dos grandes números.


Isso não quer dizer que o Movimento Estudantil não está à altura de debater com o MEC grandes políticas, mas que é um tanto megalomaníaco o ME se pôr a atuar no mundo dos números inalcançáveis e das grandes planilhas, quando ele deveria estar fazendo justamente o contrário, isto é, puxando o Estado para funcionar voltado para o mundo das formiguinhas.


Nos últimos anos, o MEC caminhou mais nessa direção - de uma política do sensível, de uma compreensão do mundo dos números humanamente alcançáveis - por si só do que por qualquer pressão do ME, o que antes de um mérito do primeiro, é um demérito do segundo.


Isso também não exclui chegar a formulação de um número abstrato para o financiamento adequado de uma Educação fundada em um marco público - para não falar em um marco comum, que é o que deveríamos, na verdade, buscar -, mas que a chegada às centenas de bilhões de reais corretas fosse precedida pela pela formulação de comos e porquês.


Portanto, é necessário que o Movimento Estudantil brasileiro coloque esse debate cá em terra em firme, como fez seu congênere chileno, para, a partir de demandas concretas e singulares, conseguir alçar voos mais altos e sustentáveis.


quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Dilma e a Economia Brasileira em 2011

Em meados de 2008, o Brasil via-se às portas do choque da crise mundial que eclodia. Naquele momento, uma verdadeira quebra de braço se operava nos meandros do governo: de um lado, o Banco Central, chefiado por Henrique Meirelles, defendia a ortodoxia monetarista, do outro, a Fazenda sob o comando de Mantega apontava para uma saída desenvolvimentista.

Meirelles ganhou a briga num primeiro momento, o governo não mexeu nos juros e as medidas de contingência foram tímidas. Depois de alguns meses de calmaria - entre o final do terceiro trimestre e o início do quarto trimestre -, veio o choque em Dezembro com demissões massivas que abalaram o bom nível de geração de emprego naquele ano.

Isso mudou tudo na política econômica do governo. Mantega passou a ganhar as quebras de braço, bancou um uso massivo do mecanismo de política contracíclica - com investimentos estatais massivos -, forçou os juros para baixo e trabalhou duro para capilarizar mais ainda o mercado creditício brasileiro. Mais crédito, mais salários, mais empregos. O mercado interno compensou o baque do mercado externo.

Mas é claro que nem tudo são flores: depois do choque financeiro nos países ricos, veio a inépcia, o que fazer? O fato é que um misto de decisões políticas erradas somadas ao agravamento de velhas fissuras no tripé - EUA, Japão e UE - do Capitalismo Mundial acabaram por inaugurar esse segundo tempo da crise.

No plano interno, o Brasil tem arcado com fenômenos interessantes: um deles, é o abalo social causado pela aplicação do primeiro projeto nacional desde Vargas; a classe trabalhadora se viu  economicamente empoderada e com crédito farto à sua disposição - crescimento econômico de  dentro para fora pela primeira vez em décadas.

Se o Brasil nada cresceu em 2009 pela hesitação do Banco Central, em 2010 ele recuperou o tempo perdido e cresceu 7,5%. Elas por elas, realizamos o que ficou estagnado em 2009 e crescemos algo de novo. Mas um fenômeno interessante que se operava ali atenta para as possibilidades e limitações do projeto conciliador lulista: inflação.

O Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) registrou 4,31% de alta mesmo com a estagnação de 2009, subiu para 6,47% com o aquecimento de 2010 e está, ainda, em aceleração: o acumulado dos últimos 12 meses é de 6,71% (com base em Junho). Um detalhe importante é que esse fenômeno se opera a despeito da valorização internacional do Real - com o adendo da desvalorização de moedas importantes como o Dólar e o Euro.

Isso foi motivo de preocupações da equipe econômica dilmista, certamente menos ortodoxa do que a de Lula: embora tenha mantido o mesmo critério do seu antecessor para reajuste do salário mínimo - crescimento de dois anos antes mais reposição da inflação do ano anterior -, vimos contingenciamentos de verbas em quase todos os setores além de alta nos juros para esfriar a economia.

Dilma executou uma agenda de tentativa de saneamento das contas públicas  - corte no custeio para abrir espaço para o investimentos efetivos - com uma tentativa de frear a economia pelo mecanismo dos juros - embora, relativamente ao aquecimento geral da economia, eles não estejam tão altos quanto há alguns anos. O problema, agora, é que a taxa de crescimento caminha para módicos 4% (ou nem isso) e a inflação continua seu curso.

Crescer qualquer coisa como 3,7%, além de mais alto do que a média, seria algo como a média do biênio atípico de 2009 e 2010, mas o estranho nesse processo é a alta dos preços, ou nem tanto: quanto mais emprego e renda, maior é a força dos sindicatos reivindicarem mais emprego e mais renda, mas isso não vem impunemente. 

A propriedade dos meios de produção ainda é privada, o que permite uma reação a tal processo pelo repasse dos dos ganhos laborais para os preços. Esse é o grande problema não resolvido pelo keynesianismo, que colaborou para sua implosão a partir dos anos 70. 

Exemplos em um sentido contrário, crescimento do emprego sem geração massiva de inflação, talvez só os Estados Unidos de Clinton, ainda que às custas de uma bolha financeira e com o artifício que permitiu, pelo menos até bem pouco, aquele país passar incólume pelas inerências do Capitalismo: a saber, sua política neoimperialista.

Há um outro ponto sobre o caso brasileiro que merece a devida atenção: como aborda o filósofo Vladimir Safatle em recente artigo para a CartaCapital, escapamos ao breve e tardio (em comparação aos nossos vizinhos) processo liberalizante retomando, numa roupagem melhor e mais "social", do velho Capitalismo de Estado. Isso traz problemas importantes.

Um deles, é o aumento do grau de concentração de mercado, logo, um aumento da probabilidade de aumento da inflação. Isso é um ponto politicamente delicado de se resolver, mas "resolvível" dentro de um horizonte reformista.  A problemática do exército de reserva, no entanto, vai longe.

Dilma, em medida recente, pretende contingenciar mais verbas para cortar a taxa de juros - a velha política de não esquentar a economia -, o que me parece um equívoco, seja porque juros incidem diretamente sobre o serviço da dívida - que é gasto - ou porque o caminho, hoje, me parecia mais no sentido de usar o mecanismo fiscal como forma de contenção da inflação - sim, aumento da carga tributária -, o que ainda poderia ser usado, de forma calibrada, para investimento produtivo.

Aumentar tributos é perfeitamente possível, sobretudo se você cobrar dos lugares certos. Grande parte da revolta atual com tributos porque eles incidem, coincidentemente ou não, sobre a (ainda) paupérrima massa assalariada, mas não tanto quanto poderia ser sobre o sistema financeiro. 

A discussão sobre a sustentabilidade do valor atual do Real - e do grau de concentração do mercado importador, aparentemente alto - vão, inclusive para mais longe, mas o uso de instrumentos fiscais pode surtir efeitos aí também, nem que seja para dirimir de uma forma inteligente a especulação.

Seja como for, insisto que viveremos tempos interessantes tão logo.