terça-feira, 29 de novembro de 2011

Cartas Persas

Ao contrário do que se supõe habitualmente, não existe um anti-americanismo tão profundo no Irã. O título de grande inimigo é, e será ainda por muito tempo, do Reino Unido. Isso remonta há muitas décadas atrás, quando o governo democrático de Mohammed Mossadegh nacionalizou a Anglo-Iranian Oil, tornando a relação com os britânicos impossível. Os súditos da rainha guardaram aquele ato de insubmissão na geladeira e, rapidamente, se movimentaram como poucos para derrubar Mossadegh, no processo que resultou na ditadura do Xá Reza Pahlavi, cujas implicações - sobretudo a destruição da vida política e econômica do país, o que jogou todo uma geração para dentro das mesquitas - desembocou na Revolução Islâmica do final de 1979.

A presente invasão dos estudantes iranianos à embaixada britânica em Teerã, portanto, não é fato isolado ou simplesmente uma consequência dos fatos recentes, nos quais os iranianos foram acossados pelas Nações Unidas por conta de seu programa nuclear - em relação ao qual, pouco interessa para as potências ocidentais qualquer acordo com o Irã, mas sim, simplesmente, sua condenação, sua elevação a bode expiatório. E os tambores de guerra que rufam contra o Irã não são pouco barulhentos. Se o regime atual do país nada tem a ver com o fluxo libertário que perpassa o Magreb - muito pelo contrário -, por outro lado, a comunidade internacional, mais do que nunca precisa de um álibi, um demônio do momento.

Nem é preciso dizer o quanto o Irã é curioso, autoritário internamente, mas, ao mesmo tempo, pacífico no plano externo há tempos. Ou o que dizer, mesmo dentro da ordem islâmica, dos esforços do governo Katami de aproximar-se do Ocidente para ser, em troca, humilhado? Certamente, não há o que defender do regime iraniano, mas para variar, um possível ataque contra o país nada terá a ver com seus defeitos. Isso seria a escalada para um desastre, sobretudo por conta do (natural) interesse russo em manter o Cáucaso o mais seguro possível - o que o regime islamo-nacionalista de Teerã o faz por manter o Ocidente longe sem, com isso, ter condições de produzir qualquer perigo substancial para a Rússia (ainda que se possa argumentar do perigo dos pequenos grupos islamistas do Cáucaso, naturalmente, um governo pró-Washington em Teerã seria outro nível de ameaça para Moscou). 

A necessidade de construir inimigos externos, é claro, não está fora do interesse do regime iraniano. A paranoia geral se instala. Não há superstição melhor do que o nacionalismo, ainda mais o nacionalismo de guerra, para fazê-lo lutar contra si como se por si fosse. Os riscos da eclosão de um conflito armado no Oriente Médio são perfeitamente reais.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

O Corpo, a Mulher, o Egito

Recentemente, a Revolução Egípcia se viu em meio a um furor que não tem necessariamente a ver com tanques na rua ou milhões de pessoas lotando uma praça: falo do gesto nada covarde de uma jovem ativista em postar uma foto sua, nua, em seu blog. Em cima disso, veio uma reação pesada de vários setores da sociedade egípcia; conservadores islâmicos atirando pedras, democratas dizendo que isso era danoso para a Causa e quetais. Isso ilustra muito bem a dinâmica das coisas no Egito e o tamanho dos problemas que vivem o país, para muito além de uma discussão sobre falta de eleições livres: é como se dá a constituição das relações de poder e sujeição lá dentro.

Em um primeiro momento é importante tentar ser, pelo menos, um não-hipócrita: cá no nosso Brasil, dito libertário e carnvalizado, se alguma blogueira fizer isso, certamente não passará por poucos problemas. Não dispomos autonomamentete dos nossos corpos, as mulheres (muito) menos do que os homens, certamente. O papel da mulher está menos  pior neste canto do mundo em relação às arábias? Talvez, como já esteve pior em certa parte da história, não somos especiais, a conjuntura que desfavorece menos as mulheres ocidentais tem pouco a ver com alguma práxis social iluminada, mas sim com muita luta e algumas contingências históricas que o Poder certamente não controla, nem é capaz de controlar.

Considerando, ainda, que apontar toda a problemática religiosa e/ou moralista no Egito não é, pelo apontamento dessas ambivalências, causa de qualquer desencanto: não há espaço para encantamentos e mistificações em relação a processos revolucionários, o problema é ser contra eles pelos motivos errados - o que é frequente. Só  uma mente torpe é possível imaginar uma revolução de contos de fada, revoluções são feitas de ambiguidades porque as pessoas de verdade são assim. Por fim, também não é o caso de dizer que transformações sociais para melhor só sejam possíveis no Ocidente, basta pegar o mesmo exemplo da participação da mulher em revoluções, e Olympe de Gouges não me deixa mentir, para saber que a conversa é outra.

Voltemos, pois, a Aliaa Elmahdy, a moça em questão. Uma jovem de vinte anos, com seus  olhos grandes e assustados, longos cabelos cacheados, de uma beleza comum. A nudez que ela compartilha é espontânea - e é perfeitamente a espontaneidade e a partilha que o poder, cá e lá,  não pode tolerar. O corpo não pode estar livre, não pode ser mostrado, se se rompe a ilusão de que realmente podemos fazer o quiser com ele - atearmos nele fogo, em uma situação limite, que seja, como no caso de Mohamed Bouazizi e seu providencial suicídio, do eventos chave da Revolução dos Jasmins na Tunísia.

A questão que a Revolução Egípcia, uma revolução de multidões no contexto de uma multidão de revoluções, é mais complexo que a mola mestra dos acontecimentos, a Tunísia: muito mais pobre do que a vizinha, o Egito possui menos organizações no qual uma revolução poderia se apoiar; enquanto tunisianos possuem, bem ou mal, sindicatos fortes, organizações estudantis capazes e um movimento hacker potente, os egípcios vivem às voltas com a ambiguidade das suas forças armadas (a mais poderosa organização do país), movimento islâmicos mais ou menos radicalizados em maior profusão - como forma de apassivamento da massa de explorados - e um cenário mais degradado.

Quem fez a Revolução no Egito? Jovens como Aliaa. Com menos apoio do que na Tunísia e vivendo lado a lado com organizações até ontem anti-Mubarak, mas que eram incapazes de articular qualquer reforma que fosse; todos partilhavam de tamanho imobilismo conservador que aderiram  à Revolução apenas no seu curso, felizes pela oportunidade e desesperados pela caixa de pandora libertária aberta - sobretudo em relação à condição da mulher. Nesse sentido, gestos libertários como esse marcam um corte importante: o Egito que alguns pretendem construir é o mesmo, só que com eles no comando. Mubarak é e sempre foi um títere, um Berlusconi árabe, o que se enfrenta realmente não é uma pessoa, muito menos a dele, mas um sistema.

Nesse sentido, não é de se estranhar que as Forças Armadas, sorrateiramente, tenham se apoderado do Estado e, como se nada estivesse acontecendo, começaram a pôr em prática uma ditadura militar. O exército de Tantawi, tão anti-sionista quanto consumidor voraz de armas americanas, segue na sua arrogância, produzindo mortes sobretudo nos últimos e agitados dias: com dezenas de mortos na Praça Tahrir, caíram os ministros civis do regime e agora pesa sobre os líderes do país o peso de realizar eleições.

As relações de poder que os revolucionários precisam desconstituir são poderosas e complexas ao extremo. Com ou sem as necessárias eleições. O pode que eles enfrentam só caiu porque foi surpreendido, seu tapete foi puxado de forma magnífica, deixando seus próceres e apoiadores mundo adentro em pânico. Mas a capacidade de reconstituição e rearticulação dessas forças é imenso, vide a situação atual. Em uma sociedade que pode nos investigar e encontrar em qualquer parte e de qualquer forma, o devir partisan passa por se mostrar mais ainda: como Wikileaks, ou o começa dessa história toda, prova, o sistema contemporâneo é tanto mais um vampiro do que qualquer outra coisa, incapaz de lidar com a luz sobre si mesmo ou sobre os nossos corpos e mentes.



domingo, 20 de novembro de 2011

Dia da Consciência Negra, Egito, Espanha

Um dia agitado. Enquanto no Brasil comemora-se o Dia da Consciência Negra, um feriado importantíssimo para resgatar parte fundamental da História - precisamente, a resistência do Quilombo dos Palmares -, o que, mesmo com todas as apropriações toscas e oportunistas, não pode ter seu valor diminuído: ele é parte importante das lutas do movimento negro que, nos últimos anos, conseguiu importantes vitórias, desde aprovar o mecanismo de quotas étnicas em várias universidades até construir a autoestima da população de fenótipo negro que, cada vez mais, se declara negra.

Enquanto isso, várias cenas se sucedem pelo mundo - duas em especial: a Junta Militar que governa o Egito resolveu dispersar os manifestantes - que reivindicam eleições livres - à força, o que dá mais e mais contornos de ditadura militar à anômica situação na qual se encontra o Egito pós-Mubarak; a direita pós-franquista está prestes a levar as (esvaziadas) eleições espanholas - dois episódios que ilustram a profunda tensão no Mundo Árabe e no interior da Europa e nos fazem pensar os rumos que o mundo toma.

O aparente paradoxo entre a reivindicação de eleições de um lado e o esvaziamento delas no outro se esvai rapidamente: em ambas estamos diante da mais intensa luta por liberdade. O problema é que a multidão nas ruas do Cairo compartilha alguma noção tática - é preciso tomar o Estado neste momento -, enquanto a multidão espanhola sabe o que não quer, mas o esvaziamento dessas eleições não deixa de ser preocupante: não, eles não deveriam mesmo apoiar o PSOE, o problema está em não ter construído uma alternativa para ele. E não é questão de salvacionismo, é de prudência mesmo: a aproximação de um horizonte verdadeiramente emancipador para o mundo não poderia vir desacompanhado do fantasma do fascismo - ou mesmo de uma nova (e última?) guerra mundial, como sugerem os tambores de guerra sendo batidos aqui e acolá.

Nada de meios e fins, pensemos nas causas e nos seus efeitos, sem teleologismos - esperancismos - e inconsequências pueris. A luta dos negros no Brasil entra nesse contexto como exemplo de experiência válida: cá, o devir negro veio acompanhado de um enorme devir partisan, é disso que precisamos nos investir quando pegamos as armas durante a nossa fuga: sentir a emoção intensa de resistir ao fascismo, devir táticos, devir estrategistas, construir uma práxis intensa que nos permita produzir alegria mesmo quando o próprio ambiente no qual ela pode ser produzida nos é negado - e o será, cada vez mais de agora em diante: pôr o partisan para sambar com o quilombola e, assim, tocar a bola adiante.


sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Occupy Wall Street: Crise e Estratégia

A multidão marcha pelas ruas de NY
Ontem foi um dia histórico para o movimento Occupy Wall Street: dezenas de milhares de pessoas ocuparam as ruas da Big Apple, depois do gesto oportunista do prefeito nova-iorquino, Michael Bloomberg*, que esperava conseguir dissuadir o movimento com um ataque rápido e rasteiro na calada da noite, na última terça, ao ordenar que a polícia removesse os manifestantes enquanto dormiam - sob os auspícios da emergência na segurança e na saúde pública.

Até ontem, o movimento OWS era muito mais o catalisador de uma série de acampadas, maiores e até mais intensas, por várias cidades americanas e ao redor do mundo, do que propriamente um movimento de massas. Mas isso mudou. Não se trata de um fato pontual no qual o poder disciplinar, ressuscitado na forma de arcaísmo pela sociedade de controle, potencializou o movimento, mas sim que sua natureza multitudinária, rizomática e intensa é particularmente potencializável por essa forma de intervenção. 

Não que historicamente sempre que a força do Estado tenha sido posta a funcionar de forma total, não houvesse um esvaecimento da ordem, uma vez que o medo passa a dar lugar a qualquer outra: a capacidade de agir de uma coletividade é neutralizada sempre pela expectativa de violência contra seu corpo, não pela sua aplicação sistemática dela, o que cria um efeito de nada a perder. 

O meu ponto é que a natureza desse movimento produz um sentimento de partilha e co-pertencimento efetivo - o que permite às singularidades sentirem o que, de fato, é um corpo, e não o absurdo hierárquico que Descartes legou no nosso imaginário -, lhe possibilitando uma capacidade única de atualização e produção intensa de afetos ativos, quando sob o ataque direto do Poder Soberano. Portanto, não é a vanguarda na qual depositamos esperança sob ataque, somos nós que partilharmos este devir multidão sendo atacados. Isso muda tudo.

É algo semelhante ao que vimos na Tunísia, cuja Revolução foi iniciada, há quase um ano, não pelo empobrecimento ou pela desdita, como insistem os catastrofistas, mas sim pela ação efetiva de hackers organizados e empoderados pelos dados de Wikileaks - da repressão estatal tradicional surgiu um modo de resistência novo, pelo menos naquela escala, que levou à pane os dispositivos de controle. Aliás, do recrudescimento da repressão veio o sacrifício do homem da plebe, o camelô sem perspectivas e humilhado, que se imolou mostrando que o Poder Soberano não tem, nem pode ter, controle sobre tudo; o resultado de tudo aquilo, para a população, foi produzir a faísca necessária para fazê-la multidão: nada a temer, o rei está nu e sempre haverá linhas de fuga, nem que seja a própria morte.

Não houve Revolução como consequência necessária do empobrecimento, mas sim como possibilidade de um processo deflagrado a partir da pobreza causada pela exploração da capacidade produtiva daqueles que estão, inexoravelmente, incluídos na máquina por ela mesma: pelos mãos daqueles que estão incluídos (na produção do valor) enquanto excluídos (da realização do valor). E os Estados Unidos compartilha um laço muito mais profundo com a Tunísia - e o efeito libertador que ela disparou pelo Magreb, Egito incluso - do que parece a uma primeira vista: não são os tunisianos os mais miseráveis da África, mas certamente eram, como ainda são, explorados e cada vez mais, ao passo que a capacidade produtiva só aumenta, para além das amarras existentes, ou que podem ser postas em prática, pelo Biopoder. 

Assim, não é o empobrecimento que explica tais processos: é o avanço da exploração do Biopoder sobre uma riqueza comum em ascensão, uma riqueza que dá subsídios para a própria construção da resistência - e falamos de uma riqueza imaterial, afetiva, cognitiva. E o Poder Soberano, pelos arredores do globo, não sabe o que fazer com esse enorme horror que lhe percorre a alma. Se o conservador Bloomberg deu um tiro no pé, Obama conseguiu ser pior ainda, na sua infinita capacidade de irritar a todos, ao comparar o OWS ao Tea Party - demonstrando um alheamento soviético, talvez gorbatchioviano, em relação às ruas e às praças públicas de sua própria terra.

A questão mais visível do processo, portanto, torna-se o autismo, em menor ou em maior grau, dos partidos institucionalizados da esquerda (ou próximos disso), seja nos EUA - talvez o Partido Democrata caiba razoavelmente nessa classificação - ou na Europa. Antes de mais nada, convém esclarecer que os movimentos que colocam o dedo nessa ferida não surgiram do nada, anarquicamente, mas sim pela organização autônoma da multidão - e aqui concordamos com Agamben: anárquico mesmo, só a forma como o poder é exercido no Ocidente, sempre baseado na ausência de um fundamento, seja por conta de um Deus infundado ou o que lhe faça as vezes. Esse enriquecimento cognitivo, que se opera a despeito do sistema, nas brechas que ele próprio precisou permitir - a Universidade, a Internet etc - ou no que foi conquistado pelas lutas - liberdades civis etc - é a base potencial da emancipação, não o processo emancipador, que só é deflagrado e operacionalizado pela organização. 

Isso requer realismo, algum senso de engenharia e sensibilidade. Por maior que seja a torpeza da centro-esquerda parlamentar ao redor de todo mundo - e, em certa medida, do próprio PT governista brasileiro -, a questão não é agir como se todas as forças institucionalizadas fossem iguais, idênticas, mais do mesmo - raramente é, embora nos EUA se aproxime disso enquanto no Brasil a distância entre elas seja um pouco maior -, tampouco deixar de agir sob o medo de "fazer o jogo da direita" - a outra parte da falsa dicotomia. Não é deixar de agir ou agir irresponsavelmente, mas agir tendo em vista a construção de uma alternativa efetiva. Não é apenas responder o que não queremos e o que queremos - como OWS  já é capaz de dizer -, mas como pôr isso em prática. É hora da tecnologia - em seu sentido mais amplo e, ao mesmo tempo, mais profundo - ser pensada e posta em prática.

Se a direita, em suas várias vertentes, fracassou tremendamente como essa crise nos prova, a esquerda precisa assumir a responsabilidade daquilo que ela, via de regra, se escusa: é preciso delinear claramente como vão ser operacionalizadas suas boas intenções - aquelas doces ideias que estão a abarrotar os infernos -, não adianta dizer que não é preciso pensar em alternativas porque seus princípios são corretos, é preciso fazer as coisas acontecerem.  Depois, não adianta reclamar da ascensão do fascismo, dos governos tacanhos da centro-direita ou da capacidade trôpega da centro-esquerda em responder às demandas - a Primavera Árabe está aí para nos provar, com a junta militar no poder no Egito, a Otan se utilizando da situação e os entraves à jovem democracia tunisiana. É essa tarefa positiva que o movimento tem aqui e agora.


*Bloomberg atualmente é independente e não mais membro do Partido Republicano - como constava originalmente do texto -, partido pelo qual se elegeu nos seus dois primeiros mandatos (2001 e 2005) e com o qual acabou rachando em 2007, mas se manteve tendo como opositores os democratas, que derrotou, já como independente, no pleito de 2009.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

A Itália e o seu Bello Monti

Monti em coletiva de imprensa hoje
Não, eu não podia perder a piada. Embora estejamos a falar sobre algo que, certamente, tenha mais contornos trágicos do que cômicos: hoje, a Itália testemunhou o anúncio de que  Mario Monti aceitou o cargo de primeiro-ministro. Daí, vocês perguntam: quem elegeu Monti? Ninguém. A que partido ele pertence? Nenhum. Onde está a democracia na Itália? Na melhor das hipóteses, em alguma loja de penhores. O burocrata Monti, sob os auspícios da sua capacidade "técnica" e de sua credibilidade - junto aos bancos -, é um recém-nomeado senador vitalício: láurea curiosa dentre láureas curiosas existentes naquele país, ela consiste na nomeação, pelo Presidente da República, de qualquer cidadão local, por seus préstimos à pátria-mãe, como parlamentar perpétuo, somando um total de cinco na câmara alta daquele parlamento - o que não se confunde com os senadores de direito e vitalícios, isto é, todos os ex-presidentes da república, como disposto imediatamente antes no mesmo artigo daquela Constituição.

A recentíssima nomeação de Monti - no dia 09 deste mês -, pelo Presidente Giorgio Napolitano, sequer é capaz de esconder que seu verdadeiro motivo repousa menos nos méritos do nomeado do que na crueza da conspiração para arrancar Berlusconi do poder - e substituir-lhe por alguém de confiança da Troika, o triunvirato formado pelo Banco Central Europeu, FMI e a própria UE, que tenta salvar uma unidade monetária falida, de acordo com os interesses do bancos, a qualquer custo e do jeito errado. 

E se um monstro de três cabeças manda na Europa hoje, também fazemos questão de  reiterar novamente que uma aparente quimera de duas cabeças continua a determinar os rumos da Itália (dentro do que ela ainda pode se determinar, mesmo que seja para obedecer ordens): é a criatura que emerge do Compromisso Histórico, marcada pela inusitada aliança entre democratas cristãos e comunistas, que revela, no entanto, a ligação íntima entre os políticos tradicionais e os apparatchiks reacionários nos quais se tornaram os membros do que foi o partido de Gramsci.

Napolitano quer fazer tudo parecer o mais legítimo possível, dando cores de transitoriedade à pílula, o que esbarra na não convocação de novas eleições até agora: assim, Monti deve guiar o governo até, no mínimo, 2013 - embora ele tenha sido nomeado há apenas sete dias para aquela Casa, é bom lembrar que tal parlamento tem mandato de cinco anos e foi eleito em 2008. Esse curioso interregnum branco reserva aos italianos ajustes duros, com a suspensão de direitos sociais e um arrocho nunca antes visto. Seu modelo -político e econômico -, não por coincidência, foi implementado nos últimos dias pela Grécia com Lucas Papademos e parece se tornar uma tendência na Europa.

O ridículo do conceito de governo técnico grassa. Antes de mais nada, tomar o conceito de técnica como um conjunto de saberes neutros, "objetivos" e universais, já é por si só absurdo - seja na etimologia ou na lógica -, imagine supor que esse tipo de saber pudesse ser aplicado na chefia de governo de seja lá onde for: é como se as decisões pudessem ser exatas. Um mundo de necessidades extremas como regra - uma construção ideológica que visa naturalizar a emergência enunciada e alude, é claro, ao franco autoritarismo. É um velho binarismo sujeito-objeto servindo ao enquadramento das multiplicidades, produção de subjetividades em larga escala, produção de caminhos únicos do outro lado para contê-las.

A dívida italiana é impagável nas atuais circunstâncias. Seja pelo salvamento irresponsável do sistema financeiro, sem garantias de devolução aos cofres públicos daquilo que foi de lá para os bancos, seja pela dinâmica do Euro, completamente inviável para grande parte de seus signatários. Os 7% de juros sobre os títulos da dívida italiana, que representa mais do que a totalidade do PIB local, são o fim da linha do bem estar e importam em cortes impraticáveis, mas que vão ser levados a cabo pela banca - portanto, apertem os cintos. O sucesso da democracia social europeia, com isso, cai por terra, miragem que sempre foi: a máquina teológica-política chamada Estado estará sempre vinculada à economia da dívida, não à factualidade da dívida, mas ao permanente endividamento que sempre volta para cobrar sua conta. Como o velho Mefistófeles.

Atualização de 19/11 às 17:16: vale a pena ler este artigo da Uninômade italiana sobre a ascensão de Monti.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Rocinha: o Quilombo e a Favela

Rocinha sob ataque
Estudar a História exige boas doses de ironia. A brasileira, mais ainda. A recente tomada da Rocinha, por exemplo, lembra tempos remotos. Há muitas e muitas luas, quando a colônia ainda estava em construção, arregimentar quadros burocráticos, técnicos e mão-de-obra de toda sorte era um problema considerável para a metrópole: não à toa, o processo tornou-se compulsório. Os "premiados" por El Rey ganhavam um naco gigantesco de terra para administrar, um subsídio relativamente baixo e todos os ônus possíveis e imagináveis. A economia clandestina, baseada na burla às leis e decretos da metrópole, fundamentada no contrabando e toda espécie de manobra, rapidamente converteu-se em regra, assim como a vista grossa das autoridades portuguesas, que puniam tão somente aquilo que escapasse à necessária discrição ou ao razoável - ou ferindo diretamente os cofres reais, de um modo que ele pudesse perceber -, afinal, era preciso manter  de algum modo a máquina em funcionamento.

Da mal-sucedida escravidão da população nativa até a economia da escravidão negra - que movimentava as colônias lusitanas de ambos os lados do Atlântico -, passando pela superação dos ciclos de extrativismo vegetal até a descoberta do ouro e dos diamantes no que viriam a ser as Minas Gerais, o processo acima descrito apenas cresceu e se aperfeiçoou. Os negros, em permanente resistência, fugiam para os quilombos, nos quais se viam às voltas com meios de sobrevivência escassos: eram, não raro, absorvidos pela economia clandestina movimentada pelos doutos brancos, no contrabando de diamantes ou em mal-feitos menores. Para além das tropas da metrópole, estacionadas nestes brasis-de-meu-deus para garantir o que havia de estratégico e caro à Coroa, o comezinho do serviço policial era feito pelos capitães-do-mato, gente da massa miscigenada da plebe, que mantinha a disciplina da população escrava e, ao mesmo tempo, fazia toda sorte de serviços e bicos para os senhores.

Séculos depois, passada a Independência, a Abolição, a República, o Evento-Vargas, a Democracia, o Golpe Militar para o posterior reestabelecimento da democracia representativa, algumas coisas não mudaram substancialmente, convenhamos. A população pobre, uma massa majoritariamente de negros e mestiços continuou a viver na mal no campo, os que vieram para a cidade logo foram despejados das pensões infectas para os morros e, com a urbanização autoritária, a começar por Vargas e piorada pelos militares, terminaram por habitar as piores áreas das regiões metropolitanas superlotadas do país. Existe um vínculo profundo entre a favela e o quilombo - e o mesmo se pode dizer da polícia em relação aos capitães-do-mato. A enorme e disfuncional burocracia estatal prossegue, assim como a duplicidade entre o império da lei e a clandestinidade, as duas faces da mesma moeda operadas pelas mesmas pessoas.

O principal elemento da economia clandestina atual são as drogas: a designação genérica para uma série de substâncias entorpecentes, com diferentes agentes ativos e efeitos variados. Elas são proibidas legalmente e seu uso enfrenta uma barreira moral considerável. Por outro lado, todo aparado legal, judicial, militar e moral que é movimentado para combater seu enorme comércio não parece obter efeito algum: a produção, comércio e consumo das drogas é uma realidade concreta na sociedade brasileira. Se o Estado brasileiro gasta bilhões de reais no seu combate, o tráfico, misteriosamente, continua a fluir, não só: o risco gerado pela repressão estatal aumenta os preços delas produzindo uma rentabilidade enorme para seus audaciosos operadores. Mais do que isso, ele movimenta toda uma indústria de contrabando de armamentos, cujo uso, geralmente, é restrito às Forças Armadas.

Nem é preciso dizer a enorme hipocrisia que é chamar os operadores do tráfico nos morros cariocas, ou na periferia paulistana, de chefes do tráfico. Chefes do quê? Uma vez que a favela, bode expiatório mór da República, certamente não é o local onde são produzidas as drogas e armas necessárias para o tráfico - e tampouco é lá onde se dá o consumo relevante daquelas drogas. Mais do que isso, chega a ser risível identificar em figuras como o recém-preso traficante da Rocinha Nem o responsável por um esquema que não seria possível sem a atuação das autoridades da República, seja nas forças de segurança - polícias e exército -, no judiciário e demais instâncias do Estado - todas devidamente recompensadas. É como se, de repente, estivéssemos novamente em plena era pombalina, todos escandalizados com o fato de que aqueles quilombolas não cansam de contrabandear diamantes para o horror dos bons contratadores...

O que há de atual é a dimensão espetacular que a invasão de uma favela toma, hoje, em comparação às antigas eliminações de quilombos: sociedade do espetáculo. A subida das tropas à favela, transmitida ao vivo nos mais diversos e possíveis ângulos com direito ao hasteamento delirante da bandeira depois da vitória, é isso. A favela, para o tráfico, tem uma importância meramente política: é lá que se põe a culpa - e só é possível entender o Ocidente ao se fazer uma arqueologia da culpa como elemento constitutivo das relações biopolíticas. Enfim, a favela é o Outro. Social e economicamente, a favela só é o eixo onde se opera a triangulação necessária para que as drogas cheguem aos seus consumidores sem parecer que o tráfico, na verdade, é uma esquema produzido nas franjas do Estado, tanto pelo proibicionismo - planejado ou não - e pela corrupção dos burocratas - que é, diga-se, uma inerência à sua condição. 

A roda perversa da economia capitalista gira, a nossa culpa está expiada pelo sacrifício dos bodes que nós mesmos alçamos a tal posto e tudo termina como antes no quartel de Abrantes - exceto pelo população local, que viverá algum tempo com a tormenta de uma ocupação militar na sua vizinhança. Diferentemente da invasão do quilombo, um abalo à economia real - clandestina e também legal - da colônia, o capitalismo contemporâneo articula meios de capitalizar o abalo: a favela está dentro da máquina, diferentemente do quilombo que estava fora, isso muda tudo para o Soberano. Se, por um lado, o contato entre a máquina e a favela se dá dentro de uma mediação interior, que lhe permite rearticular as relações mando e capitaliza-las de algum modo, por outro, a condição de explorado do favelado - diferentemente da condição de excluído do quilombola - lhe coloca em uma situação. A partir daí, as condições para a resistência estão dadas. 


domingo, 13 de novembro de 2011

A Itália Pós-Berlusconi

Berlusconi em pânico no Parlamento.
Ontem, em Roma, Silvio Berlusconi anunciou sua saída do cargo de Premiê da República Italiana, em uma cerimônia que uniu o pior da ópera bufa com o kitsch, no Palácio Quirinale, residência oficial do Presidente da República. Os incautos se surpreendem como uma figura tão ridícula pôde, em um sistema parlamentarista, durar tanto tempo no poder; ainda chega a ser assombrosa a maneira como ele exerceu o poder, e o quanto tardou nele, sobretudo em sua última jornada: parecia mais um protótipo de ditador magrebino aliado do ocidente - trágico e cômico, autista em relação às pressões sociais e com uma disposição kadafiana de não largar o poder - do que mesmo um líder parlamentar inepto da civilizada Europa. 

O Berlusconi angustiado, flagrado pelas câmeras de todo o mundo, era uma surpresa: aquela expressão de quem estava ferido de morte, ansioso pela espera da aprovação de um plano inviável de cortes de investimentos para "adequação" do orçamento, estava bem distante da tônica de seu governo; sempre bonachão e inabalável, Berlusconi parecia nos mostrar que os limites da encenação parlamentar iam mais longe do que podíamos supor. E o evento-Berlusconi é das coisas mais importantes que podem ter acontecido na Europa pós-soviética. Na Itália, mais do que em qualquer outra parte do Velho Mundo, o sistema parlamentar ruiu e disso nasceu o processo que desencadeia Berlusconi.

Cabe aqui uma pequena digressão: sempre quando falamos porque da perseguição ao ativista italiano Cesare Battisti, de toda a sanha irracional e violenta contra a Autonomia Operária nos anos 70, do colapso do sistema italiano, não estamos falando da vitória de uma conspiração direitista (tão somente); esse quadro, por mais que os minos da vida insistam em dizer o contrário, só fecha se levarmos em consideração a participação burocrática do antigo Partido Comunista Italiano, fazendo acordos com a democracia-cristã - ou o nome dado para o simpático consórcio entre a máfia, a burguesia italiana e tudo mais que os acompanhasse -, cerceando a luta autônoma dos trabalhadores, mulheres e da plebe rude nas ruas, na adesão bisonha ao "desenvolvimento nacional" marcado pelo Compromisso Histórico - saída nacionalista arranjada depois que até as pedrinhas da rua sabiam que a nau soviética já tinha afundado.

É em cima desse pacto, entre uma direita fascista sem poder sê-lo de fato e uma esquerda que resolve se converter à religião teológico-política do Estado, que a Itália adentra mais ferozmente ao sistema europeu, em uma situação nada favorável: nem tão pobre que pudesse ter sua economia desenvolvida - ou melhor, inchada, como vimos hoje -, nem tão rica que pudesse se valer disso - como se valeram Alemanha e o Benelux, p.ex -; a implosão das forças parlamentares clássicas, do Partido Comunista pelo fim da URSS e da Democracia Cristã e dos Partido Socialista pela Operação Mãos Limpas - e o desmascaramento dos principais esquemas das máfias - foi só a cereja do bolo. É aí que o bonachão Berlusconi, magnata e chauvinista profissional, ascendeu ao poder: o show precisava continuar e a plateia, afinal de contas, precisa rir, nem que seja com deboches contra si mesma...

Ainda que características italianíssimas sejam inerentes a tal acontecimento, um certo berlusconismo ronda toda Europa. Ele nasce em um terreno comum às democracias representativas europeias: as baixas participações do eleitorado nas votações - cada vez mais frustrado em só poder escolher os atores para uma peça cujo script, figurino, iluminação (ou falta dela) e direção de cena já estão prontos -, na superstição anti-imigrante - a pulsão de pogrom, algo tão velho na Europa e, por isso, tão atual enquanto arcaísmo -, no pedantismo proposital dos partidos parlamentares. A partir daí, revitalizar o espetáculo com o bufo é uma possibilidade aberta.  Os franceses chegaram perto com seu Le Pen, embora as condições especialíssimas da Itália tenham permitido a realização do evento em sua integridade - e, de certa forma, não foram o que fizeram os russos com seu Putin?

No entanto, é preciso pensar quando se discute Berlusconi, para além da importância do evento político, no programa que trespassou seu governo e, agora, buscará uma nova forma de se realizar. Por que Berlusconi caiu? Porque suas piadas politicamente incorretas agora estão atrapalhando o script, é preciso algo novo. A Itália foi das primeiras economias grandes da Europa atingidas pelo efeito bumerangue da crise nos pequenos porque sua situação, como já dito, nunca foi favorável dentro do sistema europeu: já razoavelmente desenvolvida para que os fundos de equiparação significassem qualquer melhora relativa, o país de Dante e também dos Bórgia apenas se viu diante da competição com o capital alemão, holandês e belga. O endividamento foi apenas consequência. Ainda que suas contas não estivessem estouradas, com a piora das condições de financiamento, por conta da crise dos periféricos e, sobretudo, da Grécia, a dívida tornou-se impagável.

O que a crise na Grécia e nos demais periféricos quis dizer? Diria, algo bem além do espetáculo tragicômico dela ter sido creditada moralmente aos gregos. Fosse um processo restrito àqueles pequenos países, que somam um montante ridiculamente baixo da dívida total da Europa e representam uma proporção desconsiderável da economia do continente, naturalmente não haveria problema algum. O que está em jogo é que aquilo foi causado pelo funcionamento da União Europeia: um esquema de moeda única que só favorece os mais ricos e só funciona com crédito artificialmente barato para os mais pobres - que se tornam compradores sem fundos dos bens e serviços alemães -; uma vez o mecanismo do sistema da dívida infinita do capitalismo financeiro tenha entrado em colapso, acabou-se o jogo. 

Angela Merkel, a iluminada líder alemã, fechou as comportas e forçou todos os seus clientes a arcarem com um ônus que pertence a toda Europa, em uma jogada oportunista para se livrar de seus custos (como se cedo ou tarde isso não fosse chegar à Alemanha, nem que seja como crise política...). Sem financiamento e com déficits gêmeos - sobretudo depois de terem salvado seus bancos com dinheiro público, após a primeira onda de choque da crise -, países inteiros foram deixados à própria sorte. Hoje, gregos, portugueses, espanhóis e, agora, italianos, serão forçados a fazer ajustes por uma dívida cuja responsabilidade é conjunta. Em momento mais oportuno, certamente refletiremos sobre o conceito de dívida, o que mais do que nunca, se tornou chave para a compreensão do Ocidente - e do modo ocidental feito universal e universalizado pelo Globo.

Os ajustes propostos pela Troika formada pela Comissão Europeia, FMI e Banco Central Europeu, na verdade, incidem sobre programas de seguridade social, a base sobre a qual o sistema europeu se sustentou desde o fim da Segunda Guerra. Ninguém será morto - embora o sábio Papandreou, raposa velha como só ele, tenha removido seus chefes militares pouco antes de renunciar -, mas muitos serão deixados para morrer - e em relação a isso, Foucault certamente nos responderia com um sorriso sarcástico. Portanto, a figura do discreto, erudito e plácido Presidente Giorgio Napolitano, junto a todas as suas insígnias esquerdistas, que agora entra em cena não é uma antítese de Berlusconi, mas a expressão da dupla-hélice que caracteriza a governança italiana do último quarto de século para cá: ao emergir de sua inoperosidade de pseudo-monarca republicano para desbancar um premiê desacreditado e, agora, negociar o nome de algum tecnocrata ao gosto do sistema financeiro como premiê-tampão, ele nada mais fez do que avançar com o Programa. Não há qualquer contradição em termos aqui.

Em uma vida engolida pelo Welfare, no momento em que a esperança é desfeita, por que abrir mão do presente em prol do paraíso terreno (e um paraíso bem católico: uma aposentadoria segura e contemplativa)? Diante disso, a velha ordem europeia, para o bem para mal, se aproxima do seu fim. As reformas propostas pela Troika são, na verdade, o delírio megalômano do paranoico tecnocrata europeu, que prefere ignorar as variáveis biopolíticas - embora as tenha em mente de forma clara - que podem resultar de suas decisões encontrar um porto seguro imaginário: de repente, não estaríamos mais falando em vidas humanas, resistência e rebeldia, mas sim em meras - e inofensivas - estatísticas em relação às quais não é possível ter medo do que elas podem fazer conosco ou sentir culpa pelo que fazemos com elas. Ledo engano.






quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Os Paradoxos do Desenvolvimentismo no Governo Lula-Dilma

Segue a minha fala no seminário Crise e Revoluções Possíveis, apresentada, hoje, no Rio - na Casa Rui Barbosa, marcando a mais recente visita do filósofo rebelde Antonio Negri ao nosso país.


Os Paradoxos do Desenvolvimentismo no Governo Lula-Dilma

HUGO ALBUQUERQUE

Ao longo dos últimos anos, o Brasil se viu em meio a uma assombrosa transformação. O período em questão diz respeito ao governo petista, inciado por Luís Inácio Lula da Silva e continuado, até o presente momento, por Dilma Vana Rousseff: segundo dados da OCDE e do FMI, a pobreza foi reduzida praticamente pela metade, a desigualdade social, medida pelo índice de Gini, também registrou tendência de baixa, ao mesmo tempo em que o PIB per capta cresceu consideravelmente - verificando-se, também, que importância relativa da renda do trabalho cresceu frente à renda nacional, não retomando, ainda, o mesmo nível do final dos anos 80, embora apresente uma tendência de crescimento e empoderamento dos trabalhadores nunca antes sentido.

Tudo isso foi fruto de uma série de políticas públicas que combinaram ampliação e capilarização da oferta de crédito para os pobres, defesa dos trabalhadores com políticas favoráveis à melhora da condição de emprego e ao aumento dos salários e, por fim, com a criação de programas assistenciais como o Bolsa Família que, por sua vez, servem para salvar vidas. A mágica do processo está no fato de que, em um primeiro momento, o capital foi articulado pelo Estado, sob o governo petista, para ganhar dinheiro com uma política que é, antes de mais nada, anticapitalista - uma vez que não é o piso da sociedade que foi apenas elevado, mas mais do que isso: a distância do piso em relação ao teto que foi diminuída, marcada, ainda, por uma reversão do processo exploratório.

Essa mudança fenomenal no âmbito socioeconômico produziu, por óbvio, ecos poderosos na política. Como uma sociedade historicamente estratificada, que mesmo em seu períodos de maior dinamismo o fez justamente por conseguir manter a distância relativa entre as classes no interior do sistema, reagiria diante de tamanho abalo? Seja por sua envergadura ou pelo seu caráter abrupto, não havia como isso passar desapercebido. Sobretudo, em um momento no qual nosso país, com sua tradição bacharelística e o meritocratismo herdado do positivismo, se via governado por um operário, nordestino e sem diploma universitário.

O debate imediatamente levantado diz respeito à indignação pela mudança da correlação de forças sociais por parte, naturalmente, da classe média tradicional - um caldo de profissionais liberais, empregados em cargos de chefia, pequenos empresários e alguns funcionários públicos. Além disso, testemunhamos uma discussão teórica fortíssima no campo da esquerda. Se, por um lado, em um país no qual saber o seu lugar sempre foi regra, agora as coisas estão definitivamente fora dele; se, por outro lado, vários setores da nossa intelectualidade sempre desejaram que assim fosse, isso veio por vias que não eram as imaginadas causando desconforto até mesmo naquele lado...

No Brasil, consumir sempre foi posto em termos absolutamente estamentais: era privilégio voar de avião, comprar roupa, comer carne. A esquerda, baseada em uma herança católica e, ao mesmo tempo, no catastrofismo próprio do socialismo ortodoxo, enxergava no consumo o pecado e o desvio do caminho da salvação revolucionária. Com o fracasso do chamado neoliberalismo, que o PSDB assumiu de forma tardia e ambígua, e a incorporação da ferramenta neokeynesiana por parte do PT, os tucanos rapidamente compraram um discurso que é um misto da má consciência moralista com um ligeiro flerte na onda de indignação medioclassista. No outro flanco, setores expressivos na intelectualidade de esquerda, embora não tão relevantes eleitoralmente, racham com o PT e fundam o PSOL, se colocando em uma posição muito parecida frente à corrupção que os tucanos, mas assumindo, por seu turno, uma postura de denúncia àquilo que julgam ser uma inclusão "meramente pelo consumo".

A partir daí, nos deparamos com um quadro no qual no qual o consumo e o processo de inclusão social são os pontos nevrálgicos do debate. Em relação a isto, três questões se afirmam imediatamente: (1) Poderia alguém ser efetivamente excluído do sistema na contemporaneidade? (2) Seja qual for a resposta da primeira questão, poderia alguém ser incluído realmente sem ter acesso ao mercado de consumo? (3) O ato de consumir é ou não empoderador?

Não pretendo ser definitivo em minha breve exposição, mas é necessário delimitar uma  linha de análise clara e adotar, ao menos provisoriamente, posições frente a tais questões para poder entrar na problemática. De tal forma: 


(1) Entendemos que não há mais exclusão total do sistema; no pós-moderno, mesmo o excluído está incluído na máquina. Portanto, ele está incluído enquanto excluído. O problema central da pós-modernidade, como já nos adiantou Debord, é que o separado está reunido enquanto separado. Essa é a tônica geral, seja em questões sociais, raciais, de gênero etc. Não foram as políticas do governo Lula que deram início a tal processo - ao contrário, foi tal  processo que permitiram sua chegada ao poder e ele, por sua vez, o potencializou; os bárbaros estão dentro do Império, eles não o invadiram, apenas acordaram por qualquer motivo - agora, considere-se, sequer há o lado de fora do Império. Uma vez incluídos enquanto excluídos, é preciso se organizar e ser incluído efetivamente, custe o que custar, mesmo que isso pressione a estrutura imperial para além do que ela pode aguentar: eles sempre lutam por sua própria liberdade
(2) Bens e serviços são adquiridos, por meio da moeda - desmaterializada em fluxos informatizados ou não -, no mercado de consumo. Qualquer coisa. Alimentos, remédios, roupas. Certamente, a clivagem entre produção e realização do valor, trata-se da problemática elementar do Capitalismo, motor de seu movimento doentio e de suas crises cíclicas. É certo que o Capitalismo deve ser combatido, mas a questão é como articular isso no aqui-agora: como fazer os pobres adquirirem remédios neste instante? Quem está incluído enquanto excluído, atentem-se, não está fora da cadeia de consumo: isso é próprio da máquina que engoliu a nós todos, o que muda é que o sem-teto deixado para morrer, sem amparo, está colocado de certa modo nessa cadeia: ele anda quilômetros pela cidade, catando papelão e diversos tipos de materiais recicláveis, recebendo, como recompensa, quantias miseráveis. Ser Incluído enquanto incluído não é, portanto, fazer parte da cadeia de consumo, mas sim está na posição de consumidor nela, isto é, como sobrevivente e não como cadáver.
(3) Sim, o ato de consumir, como a tese anterior suscita, é empoderador. Porque se consumir permite o sujeito estar efetivamente incluído, ao menos, economicamente, não poderia ser diferente. Para além disso, esse é o ponto central da nossa hipótese: ao passo que a multidão, caracterizada por sua atividade produtiva, passa a realizar o valor que produz, ela passa a sentir-se co-pertencente ao ambiente econômico no qual ele se encontra; tal processo tem desdobramentos que vão para além do econômico, ecoando na esfera social, cultural, política etc. O operário fabril chinês que fica a maior parte do dia processando uma matéria-prima africana ou sul-americana que, depois, será exportada para Europa ou EUA, não se sente parte - nem poderia - daquele ambiente - politicamente, ele tende a ser passivo. Se a destinação daquela produção, mesmo que de forma dirigida, fosse para o mercado interno, alteraria substancialmente as relações socioeconômicas, logo, políticas: ele sentiria o quanto e como produz, o que faria com que nada seria como antes. Ele sentiria como as demais singularidades, se articulam para produzir - a partir desse co-pertencimento sensível é possível pensar efetivamente na constituição do comum. Em sentido parecido, na antiga União Soviética, não se produziam largamente bens de consumo: era uma sociedade organizada para o trabalho na qual os operários, em ritmo militar, cumpriam quotas de produção de material bélico, aeroespacial, enquanto não conseguiam ter liquidificadores ou ventiladores.
Nossa hipótese, portanto, não gira em torno de qualquer fetichismo em relação ao consumo, mas sim de que uma alternativa possível, passa pelo entendimento que o aumento do consumo de quem produz, no lugar do keynesianismo de guerra ou a economia de exportação, ambas impossíveis de universalização sustentável no plano global - e destinadas ao fracasso - abrem espaço para a construção de uma alternativa. Tampouco, isso não exclui o debate e a luta pela transformação dos padrões de consumo - entendemos, inclusive,  que essa transformação é, no mínimo, facilitada quando por qualquer motivo, os produtores tornam-se senhores da realização do valor que produzem. Também não estamos falando de qualquer espécie de nacionalismo econômico, algo completamente inviável nos dias atuais: o que falamos não é da autosuficiência econômica dos Estado-nação, mas sim a autosuficiência dos produtores: tal processo não exclui a partilha - o Brasil do período não viu o seu nível de intercâmbio comercial diminuir por isso -, mas que essa partilha entre as ainda existentes comunidades nacionais se dê de forma multitudinária. Não falamos de exclusão do intercâmbio entre os países, mas do intercâmbio estéril no qual quem produz não (pode) desfruta(r) dos seus próprios produtos.

O aumento dos salários não reforça, pelo seu lado, a relação de emprego da mão-de-obra formal: mais salário não equivale a um trabalhador mais passivo, mas a uma desproletarização da própria produção; o trabalhador, tal como o escravo, é alguém que por sua própria condição de existência é um explorado, portanto, da mesma forma que um escravo colonial, ao ganhar um reforço no seu angu, consegue ter mais forças para fugir para o quilombo, o aumento do emprego formal e da renda salarial criaram mecanismos para a insubmissão e não para o contrário - eis aí o número de greves, em pleno curso, que estão a nos provar tal processo. Também não reside, aqui, uma crença no (social) desenvolvimentismo assumido pragmaticamente pelo PT governista - com menos convicção em Lula e mais ênfase em Dilma - como forma de resolver os nossos problemas.

A questão é que o petismo, enquanto movimento ambivalente e em permanente metamorfose, acertou direta e mesmo colateralmente ao trazer para o centro da questão aqueles que produzem enquanto consumidores ativos. A partir daí, ele abriu uma caixa de pandora benigna que não sabemos se ele é capaz de compreender ou, mais ainda, conseguir responder aos seus desdobramentos. Ainda que no plano dos grandes números, no mundo paranóico do tecnocrata do Estado ou do Mercado - se é que nos interessa considerar essa distinção -, não há como escapar há conclusão de que há bem mais por detrás desse enorme cataclisma quando a poeira baixar, nos permitindo ver tudo com mais clareza.

A chamada classe C emergente  é um o proletariado endinheirado junto a ex-pobres - na verdade, uma prestes-a-não-ser-mais-classe C , pelo crescimento da renda - ou, como define o nosso Bruno Cava, o Consumitariado: ele altera substancialmente o colorido da sociedade e da política brasileira. Não há mais efeito pedra no lago como anteviu, frente à vitória de Lula sobre Geraldo Alckmin em 2006, o ex-ministro Franklin Martins. Estamos ainda muito longe de uma democracia real, mas as condições materiais (ou falta delas) que tornavam tais setores mera massa de manobra eleitoral foram-se - em menos de uma década, algo surpreendente, convenhamos.

É preciso que adentremos mais ainda no terreno da questão do empoderamento pela renda: A empregada doméstica que adquire um celular com câmera filmadora pode se endividar com isso, mas tem a oportunidade de denunciar a violência policial que passa desapercebida em sua vizinhança - a dívida, ainda que a controle em certa medida, não tem dimensão real, a posse do bem consumo sim, sobretudo sua operacionalização. A operacionalização do bem adquirido, inclusive, serve para minar os elementos reais coercitivos que dão validade real à dívida ou mesmo das regras de submissão laboral; no exemplo em tela, o mecanismo policial é efetivamente minado.

O problema está, justamente, no uso do mecanismo desenvolvimentista, determinado pelos embates na cúpula governista: ainda que como instrumento, ele não nos parece capaz de lidar com os desdobramentos oriundos da ampliação da capacidade de agir dos sujeitos, que ele próprio catalizou. Tal afirmação pode ser traduzida em uma questão que se torna chave neste momento: Como lidar com as greves, com as acampadas, com as marchas pela liberdade

Se houve neste país uma curiosa articulação na qual, a partir da direção do Estado, se utilizou o capital para a construção de uma indústria de redução da miséria, das desigualdades e para o aumento da renda como se desvencilhar do mesmo capital agora?  O paradoxo está no fato que o desenvolvimentismo, mesmo em sua versão atualizada, posta em função de transformação  social e não mais de afirmação nacional, não se apresenta como ferramenta para construir o Novo: embora ele possa criar as condições para o colapso da máquina esquizofrênica que alimenta, à base da sobrecarrega, ele jamais coloca no lugar as partes desconexas em permanente atrito, modo como se manifesta socialmente o Capitalismo - quando muito, ele as justapõe, não as organiza efetivamente, pois isso exige uma atuação em nível molecular que seus tentáculos não são capazes de realizar por sua própria natureza.

O aumento do emprego e da renda salarial, sem ter em vista políticas para superar o trabalho empregado e assalariado está, aqui, exposto a um problema semelhante ao que vimos nos Estados europeus nos anos 70: a reação dos donos e administradores do Capital passa a se expressar pelo repasse de "prejuízos" que seu controle sofre para cima dos trabalhadores e demais setores da sociedade na forma de inflação. Para além disso, no capitalismo cognitivo hodierno, as chamadas externalidades positivas dos economistas, o acréscimo imaterial causado por avanços sociais são capturados: o salário aumentado na base pode ser corroído na ponta pelo aumento dos preços. A melhora de cidades e bairros operários, causados pelo aumento da condição geral de vida de seus habitantes, passa a ser tragada pela especulação imobiliária.

O agente que abriu a caixa de pandora benigna, deflagando uma fluxo libertador, agora precisa escolher entre impulsionar mais ainda seu movimento ou recalca-lo - e o Capitalismo, conste-se, é totalmente dependente de tal  processo de empoderamento, mas ele precisa controla-lo logo adiante, ainda mais quando os setores fortalecidos se sentem parte enquanto parte e não como separado do sistema. A linearidade temporal, própria do progressismo, cai por terra enquanto realidade e, a partir daí, é desvelada como abstração ideal a serviço do poder que é: não há, nem pode haver, marcha para frente, uma vez que é próprio do sistema se mover em círculos e dando solavancos por sua necessidade.

Sobre a linearidade cronológica, essa curiosa herança da filosofia de Kant, aliás, cabe uma pequena digressão: ela é das bases do Estado moderno e constante na nossa era imperial, pois ainda é fundamento da forma como articula o que restou dos Estados-nação (agora, enquanto instrumentos do Império): o conceito de tempo como a sucessão de acontecimentos em uma série rígida e esquemática, na qual passado, presente e futuro se concatenam, serve como base para o funcionamento da forma-Estado, a saber, o discurso de dupla-hélice fundado no medo-esperança como nos adiantou, há tanto tempo, Spinoza; não agimos ou deixamos de agir porque um guarda furioso nos obriga o tempo todo, mas sim porque somos movidos pelo discurso hegemônico, no qual deixamos de agir pelo futuro, seja pelo medo de punições vindouras por atos fora das leis postas e impostas ou pela esperança da Salvação, o que nos faz abrir mão de muita coisa no presente. 

Perdemos, pois, a única coisa que realmente temos: o aqui-agora, o onde-quando a atividade se dá, o que torna toda ação dirigida, meramente passiva. O desenvolvimentismo jamais esteve fora do horizonte salvacionista, mas desta vez, com Lula, algo mudou: o uso publicitário de que a esperança venceu o medo - uma falsa dicotomia em termos filosóficos, é claro -, esconde uma verdade inescapável acerca do Lulismo que é - além da recusa da estética da miséria e da tentativa de articular as partes desconexas -, justamente, de fazer uma política de alegria e não de esperança, diferentemente dos velhos bolsheviks: ele não pediu para os pobres abrirem mão do seu aqui-agora em nome da Causa, como gostariam tantos ideólogos da "esquerda", mas articulou com uma virtù renascentista a resolução imediata de problemas emergenciais como a fome.

O que não podemos dizer, entretanto, é que o Lulismo tenha neutralizado o dispositivo futurista: ainda que não tenha aceitado a possibilidade salvacionista do sacrifício da integralidade do presente em prol do futuro, nem por isso ele deixou de insistir na construção do amanhã - um equívoco, com efeito, ainda que previsível na medida em que isso está presente tanto na hélice católica do PT  quanto em seu veio marxista ortodoxo, ambos (não coincidentemente) presos à certa teleologia...há, portanto, uma contradição em termos entre o projeto Lulista, o que explica o ambivalência da real função do instrumento desenvolvimentista dentro dele.

Nesse sentido, mesmo que várias críticas possam ser feitas à administração de Dilma Rousseff, por ter potencializado a esperança frente à alegria - em outras palavras, com sua rigidez gerencial, ter promovido políticas duras de recalque à parte relevante do que foi liberado nos últimos 8 anos  -, precisamos admitir que isso já estava em Lula: Dilma é Dilma e Lula é Lula, mas mesmo que as coisas pudessem ser diferentes com um Lula em um hipotético terceiro mandato, não seriam tanto quanto se supõe; o andamento do processo desencadeado força a uma escolha que não admite a persistência, daqui em diante, de tal caráter dúbio.

O mesmo vale, p.ex. para o governo boliviano de Evo Morales que, ora, se vê diante da mesma questão, no momento em que está a confrontar o movimento indígena, a qual pertence e pelas mãos do qual se elegeu presidente daquele país, por conta da construção de uma estrada que trespassa o país, atravessando santuários nativos. 

Em outras palavras, o projeto petista não está perdido nem encontrado - como querem fazer parecer seus grande parte de seus inimigos e, em um segundo momento, de seus entusiastas. Ele se encontra, na verdade, em meio a uma encruzilhada. As mudanças que ele produziu, sobretudo no tocante ao empoderamento dos produtores por meio do consumo, não são, tampouco, nem o fim da linha - como o catastrofismo quer fazer parecer crer - nem o paraíso, mas ele abre espaço efetivamente para a organização, que só se dará em caráter molecular de uma política de emancipação.

Em abstrato, o instrumento político lulo-petista nos traz mais luzes do que obscuridades, na medida em que ele aponta para nortes que não podemos desprezar: a fuga da estética da miséria, a busca pela articulação das partes desconexas e o gosto pela alegria. O ponto é que a crise nos leva à problemática da decisão e, agora, nos parece que ela passa pelo crivo de transformar a transformação, seja nas ruas ou nos corredores palacianos. É preciso, pois, colocar o desenvolvimentismo no lugar do qual ele não pode sair em um projeto emancipador: da prateleira de ferramentas que podem ser usadas conforme a ocasião - e descartadas quando oportuno -, jamais como bandeira ou norteador. É preciso articular as partes de forma mais efetiva, este é o nosso desafio.