sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Occupy Wall Street: Crise e Estratégia

A multidão marcha pelas ruas de NY
Ontem foi um dia histórico para o movimento Occupy Wall Street: dezenas de milhares de pessoas ocuparam as ruas da Big Apple, depois do gesto oportunista do prefeito nova-iorquino, Michael Bloomberg*, que esperava conseguir dissuadir o movimento com um ataque rápido e rasteiro na calada da noite, na última terça, ao ordenar que a polícia removesse os manifestantes enquanto dormiam - sob os auspícios da emergência na segurança e na saúde pública.

Até ontem, o movimento OWS era muito mais o catalisador de uma série de acampadas, maiores e até mais intensas, por várias cidades americanas e ao redor do mundo, do que propriamente um movimento de massas. Mas isso mudou. Não se trata de um fato pontual no qual o poder disciplinar, ressuscitado na forma de arcaísmo pela sociedade de controle, potencializou o movimento, mas sim que sua natureza multitudinária, rizomática e intensa é particularmente potencializável por essa forma de intervenção. 

Não que historicamente sempre que a força do Estado tenha sido posta a funcionar de forma total, não houvesse um esvaecimento da ordem, uma vez que o medo passa a dar lugar a qualquer outra: a capacidade de agir de uma coletividade é neutralizada sempre pela expectativa de violência contra seu corpo, não pela sua aplicação sistemática dela, o que cria um efeito de nada a perder. 

O meu ponto é que a natureza desse movimento produz um sentimento de partilha e co-pertencimento efetivo - o que permite às singularidades sentirem o que, de fato, é um corpo, e não o absurdo hierárquico que Descartes legou no nosso imaginário -, lhe possibilitando uma capacidade única de atualização e produção intensa de afetos ativos, quando sob o ataque direto do Poder Soberano. Portanto, não é a vanguarda na qual depositamos esperança sob ataque, somos nós que partilharmos este devir multidão sendo atacados. Isso muda tudo.

É algo semelhante ao que vimos na Tunísia, cuja Revolução foi iniciada, há quase um ano, não pelo empobrecimento ou pela desdita, como insistem os catastrofistas, mas sim pela ação efetiva de hackers organizados e empoderados pelos dados de Wikileaks - da repressão estatal tradicional surgiu um modo de resistência novo, pelo menos naquela escala, que levou à pane os dispositivos de controle. Aliás, do recrudescimento da repressão veio o sacrifício do homem da plebe, o camelô sem perspectivas e humilhado, que se imolou mostrando que o Poder Soberano não tem, nem pode ter, controle sobre tudo; o resultado de tudo aquilo, para a população, foi produzir a faísca necessária para fazê-la multidão: nada a temer, o rei está nu e sempre haverá linhas de fuga, nem que seja a própria morte.

Não houve Revolução como consequência necessária do empobrecimento, mas sim como possibilidade de um processo deflagrado a partir da pobreza causada pela exploração da capacidade produtiva daqueles que estão, inexoravelmente, incluídos na máquina por ela mesma: pelos mãos daqueles que estão incluídos (na produção do valor) enquanto excluídos (da realização do valor). E os Estados Unidos compartilha um laço muito mais profundo com a Tunísia - e o efeito libertador que ela disparou pelo Magreb, Egito incluso - do que parece a uma primeira vista: não são os tunisianos os mais miseráveis da África, mas certamente eram, como ainda são, explorados e cada vez mais, ao passo que a capacidade produtiva só aumenta, para além das amarras existentes, ou que podem ser postas em prática, pelo Biopoder. 

Assim, não é o empobrecimento que explica tais processos: é o avanço da exploração do Biopoder sobre uma riqueza comum em ascensão, uma riqueza que dá subsídios para a própria construção da resistência - e falamos de uma riqueza imaterial, afetiva, cognitiva. E o Poder Soberano, pelos arredores do globo, não sabe o que fazer com esse enorme horror que lhe percorre a alma. Se o conservador Bloomberg deu um tiro no pé, Obama conseguiu ser pior ainda, na sua infinita capacidade de irritar a todos, ao comparar o OWS ao Tea Party - demonstrando um alheamento soviético, talvez gorbatchioviano, em relação às ruas e às praças públicas de sua própria terra.

A questão mais visível do processo, portanto, torna-se o autismo, em menor ou em maior grau, dos partidos institucionalizados da esquerda (ou próximos disso), seja nos EUA - talvez o Partido Democrata caiba razoavelmente nessa classificação - ou na Europa. Antes de mais nada, convém esclarecer que os movimentos que colocam o dedo nessa ferida não surgiram do nada, anarquicamente, mas sim pela organização autônoma da multidão - e aqui concordamos com Agamben: anárquico mesmo, só a forma como o poder é exercido no Ocidente, sempre baseado na ausência de um fundamento, seja por conta de um Deus infundado ou o que lhe faça as vezes. Esse enriquecimento cognitivo, que se opera a despeito do sistema, nas brechas que ele próprio precisou permitir - a Universidade, a Internet etc - ou no que foi conquistado pelas lutas - liberdades civis etc - é a base potencial da emancipação, não o processo emancipador, que só é deflagrado e operacionalizado pela organização. 

Isso requer realismo, algum senso de engenharia e sensibilidade. Por maior que seja a torpeza da centro-esquerda parlamentar ao redor de todo mundo - e, em certa medida, do próprio PT governista brasileiro -, a questão não é agir como se todas as forças institucionalizadas fossem iguais, idênticas, mais do mesmo - raramente é, embora nos EUA se aproxime disso enquanto no Brasil a distância entre elas seja um pouco maior -, tampouco deixar de agir sob o medo de "fazer o jogo da direita" - a outra parte da falsa dicotomia. Não é deixar de agir ou agir irresponsavelmente, mas agir tendo em vista a construção de uma alternativa efetiva. Não é apenas responder o que não queremos e o que queremos - como OWS  já é capaz de dizer -, mas como pôr isso em prática. É hora da tecnologia - em seu sentido mais amplo e, ao mesmo tempo, mais profundo - ser pensada e posta em prática.

Se a direita, em suas várias vertentes, fracassou tremendamente como essa crise nos prova, a esquerda precisa assumir a responsabilidade daquilo que ela, via de regra, se escusa: é preciso delinear claramente como vão ser operacionalizadas suas boas intenções - aquelas doces ideias que estão a abarrotar os infernos -, não adianta dizer que não é preciso pensar em alternativas porque seus princípios são corretos, é preciso fazer as coisas acontecerem.  Depois, não adianta reclamar da ascensão do fascismo, dos governos tacanhos da centro-direita ou da capacidade trôpega da centro-esquerda em responder às demandas - a Primavera Árabe está aí para nos provar, com a junta militar no poder no Egito, a Otan se utilizando da situação e os entraves à jovem democracia tunisiana. É essa tarefa positiva que o movimento tem aqui e agora.


*Bloomberg atualmente é independente e não mais membro do Partido Republicano - como constava originalmente do texto -, partido pelo qual se elegeu nos seus dois primeiros mandatos (2001 e 2005) e com o qual acabou rachando em 2007, mas se manteve tendo como opositores os democratas, que derrotou, já como independente, no pleito de 2009.

7 comentários:

  1. Eu estava bastante animado com os efeitos dos movimentos em rede (multitudinários) no Brasil, em especial quando a marcha da liberdade cresceu em apenas dois dias (de quinta para sábado), abarrotando a Avenida Paulista para uma causa séria.

    Entretanto, acho que a estabilização macroeconômica e a onda míope de otimismo no Brasil desenvolvimentista acabou por enfraquecer o grande potencial das acampadas e das lutas por democracia real. O AcampaSampa, por exemplo, continua sendo visto como um acontecimento menor, sem apoio popular.

    Infelizmente, no ocidente, tais fenômenos de contestação estrutural ganharam robustez apenas em países em estado de alerta econômico-social (sinalizando crise sistêmica), como a Grécia, Espanha e Estados Unidos (só para citar os mais tensos). De fato, nesses países ocorreu concentração de riqueza e aumento das desigualdades (1% v. 99%), enquanto que o modelo de capitalismo socialmente inclusivo latino-americano tem se mostrado bem-sucedido na tarefa incluir pelo consumo através de novas políticas públicas focalizadas (incluindo programas condicionais de transferência de renda).

    A verdadeira revolução brasileira é o surgimento de uma nova classe média, que compartilha uma outra visão de mundo. Talvez a esquerda precise surgir daí e não dos círculos universitários já infestados de teóricos bem-alimentados e presos a velhos conceitos esquerdistas incompatíveis com a atual dinâmica de luta. É só um palpite. Sei que ainda estamos longe de ver esses novos consumidores se tornarem atores sociais de peso no cenário político. Mas é possível. E esse seria um momento interessante no país.

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  2. Rafa,

    Eu não vejo essa falta de mobilização, ao contrário, vivemos dias muito mais agitados hoje do que há dez ou quinze anos atrás, seja por parte das acampadas ou das greves ou que as pessoas estejam menos ativas do que antes na vida cultural etc - olhando para a participação política na periferia da região metropolitana de São Paulo, a interação e a troca de informações, creio que estamos muito mais vivos, mas da parte da classe média tradicional não, mas isso é parte da reação dessa assombrosa transformação pela qual passou o Brasil.

    Por que o Brasil não está tão agitado quanto o resto do mundo? Talvez porque, em vários momentos, circunstâncias e áreas, as pessoas realmente não tenham motivos para tanto. E o objetivo da boa política não seria, justamente, fazer com que as causas das pessoas se revoltarem - e não as revoltas em si - desapareçam? Não vivemos sob uma ditadura - ou uma democracia putinesca -, tampouco a exploração sobre a produção está aumentando - ao contrário, ela está diminuindo. Não é falta de atividade, mas a vazão dessa atividade para outras áreas.

    Mas isso não exclui as revoltas porque nem tudo são flores. O que tem incomodado - e me parece foco de boa parte dos atritos no presente momento - é o próprio discurso - e sua consequente prática - da esperança, o dispositivo do futuro, na forma do (social-)desenvolvimentismo. Mas o governo petista ainda não se limita apenas a essa práxis - com Lula, certamente, isso era só uma parte da conversa toda -, e ela ainda é, em si, controversa. Na medida que isso (infelizmente) avança surgem bolhas de tensão sim. Mais do que isso, o avanço do trabalho empregado já acena com seu questionamento.

    Não é um modelo de capitalismo includente. O que há de satisfativo neste período petista é o que não há de capitalista nele - e a recíproca é verdadeira. Mesmo pensando na riqueza quantificável pelas teorias do valor usais, vemos um avanço relativo da renda do trabalho, em poucos anos, nos quais ela passou do patamar de 30% para mais de 40% do PIB.

    A minha leitura do que aconteceu na Tunísia tem pouco a ver com empobrecimento: fosse isso, Ben Ali poderia ter caído em vários outros momentos - ou mesmo a revolução poderia ter eclodido em outras partes da África ou do Mundo Árabe. O que se passou naquele caso foi um enriquecimento brutal do país por conta de Wikileaks. Uma riqueza que não é propriamente quantificável - ou não enquadrável nas teorias usuais do valor -, imaterial como acertam na mosca os negrianos.

    O preço de saber grande parte do modus operandi da tirania hegemônica, que silenciava e suprimia toda produtividade biopolítica, é incalculável para uma sociedade: fluxos monetários que se desmaterializam em dados, dados - desmaterializados - que assumem a condição de valor - e não mais meio para tanto -, valor imaterial.

    Na Europa ou nos EUA essa riqueza, essa produção cognitiva só cresceu. A Internet, direta ou indiretamente, tem um papel importantíssimo nesse sentido. O momento atual é, portanto, de uma freada abrupta no que seria um processo de crescimento porque a exploração do capital sobre esse tesouro imaterial aumentou.

    (continua)

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  3. É uma tensão entre a bem-educada e super-explorada juventude tunisiana contra um mecanismo de exploração que endureceu e, de certa forma, ocorre o mesmo nos EUA.

    E concordo contigo sobre a esquerda. Até bem pouco tempo, vivíamos em um país no qual parte relevante da população seguia o efeito pedra no lago de uma disputa que se operava bem acima dela: entre a elite e os setores da classe média - esse caldo que envolve funcionários públicos, pequenos empresários, profissionais liberais e quetais. Lula x Collor, lamento, foi isso.

    Grande parte da esquerda não aceita isso, mas ela sempre ignorou o que realmente esse setores sentiam e sempre se pôs acima deles, hierarquizando seus saberes e colocando-se enquanto vanguarda. Mas isso mudou. Por que o PSOL consegue disputar centros acadêmicos de DCE's, aparecer relativamente bem na mídia e transitar bem nesse mundo universidade-jornais-espaços culturais e não consegue ter 5% dos votos para a Câmara? Porque o Brasil mudou, o mundo mudou. O final do efeito pedra no lago acabou também para a esquerda, já era algo em curso nos anos 90 e se consolidou durante o governo Lula.

    Há, com efeito, um distanciamento da arena política desses novos atores, desses incluídos enquanto excluídos que, por políticas direcionadas feitas a partir do governo do Estado, passaram a ser incluídos tensionando as paredes internas da máquina: os espaços foram construídos por eles, mas sempre funcionaram a despeito deles há tempos. O papel da esquerda é trazer essa gente para dentro, mas não sei até que ponto isso está sendo efetivo - da parte do PSOL e do PSTU é zero, do PT, com a burocratização, é relativamente ruim.

    abraços

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  4. Hugo,

    Você se importaria em dizer quais são suas fontes pra afirmar que PSOL e PSOL não tentam trazer esses "novos atores" pra política institucional?

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  5. PSOL e PSTU, Manuel. E não é preciso "fontes": basta ver a história, a penetração deles na nossa sociedade, a capacidade de articulação deles para lidar com toda a complexidade para ver isso. Política nacional não é o mundinho da política estudantil universitária, sorry.

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