quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

A Doença de Cristina, o Kirchnerismo e os Rumos da Argentina

Comemoração da vítória de CFK na Praça de Maio
Cristina Fernández de Kirchner, presidenta argentina, foi diagnosticada ontem com câncer na tireoide e será operada já no próximo dia 04 de Janeiro, com grandes chances de recuperação. Ela se junta ao batalhão de líderes sul-americanos que estão ou estiveram às voltas com um câncer nos últimos tempos, a exemplo da própria Dilma, de José Alencar, Lula, Chávez, Lugo.

Reeleita recentemente com 54% dos votos, em uma eleição com crescimento do quórum votante - e semelhante às (boas) médias brasileiras, de 80% de presença nas urnas -, Cristina governa o país na esteira de seu falecido marido, Néstor, emplacando o terceiro mandato consecutivo do que já se denomina Kirchnerismo, uma das tantas correntes do Partido Justicialista (o partido peronista).

Quando Néstor assumiu o país em 2003, já se passavam dois anos da grande crise de 2001, quando o país desmoronou sob a liderança débil de Fernando de La Rúa, depois de uma década sendo objeto de experimentos privatistas, de uma política externa subserviente aos EUA e da desconstrução da política pelas mãos de Carlos Menem.   

A Argentina, um país que no início do século 20º era comparável ou superior a muitas nações da Europa Ocidental, estava quebrada e sem rumo. Néstor reverteu a queda em espiral em pouco tempo, seja por meio do resgate da verve do discurso popular peronista ou por ter posto em prática medidas ousadas de cunho econômico.

Cristina, sua esposa, herdou esse legado. Embora tenhamos um estilo de governança semelhante ao do Lulismo no Brasil, plebeia e social-democratizante, o Kirchnerismo é marcado por uma postura mais ofensiva em matéria de política interna - seja em relação ao legado de sua ditadura, ao confronto com a velha mídia ou a luta pelos direitos civis - e uma política econômica mais crescimentista.

Nesse sentido, o Kirchnerismo, sobretudo no período de Cristina, se destacou por ter enfrentado os gargalos locais por meio de memoráveis confrontos no terreno da opinião pública - seja na homérica quebra de braço com os produtores rurais ou quando ela se empenhou pessoal e exitosamente pela aprovação do casamento gay no Senado.

Ironicamente, um governo peronista - e "peronismo" quer dizer muitas coisas na Argentina, do liberalismo de Menem a grupos revolucionários dos anos 70 - se assemelhou mais ao sonho de consumo dos petistas, pelo menos a militância habitual (e médio-classista), do que seu próprio governo, cordial e voltado a uma articulação à moda neo-sindical - como, talvez, fosse óbvio que fosse acontecer aos mais próximos ao partido da estrela, uma vez que os debates bizantinos entre as tantas correntes de militantes médio-classistas nunca chegaram a nenhuma conclusão de prática, enquanto seus sindicalistas, ali, sempre foram A prática.  

Também convém esclarecer que o peronismo, ao contrário do petismo, jamais se propôs revolucionário ou profundamente reformista, portanto, a vocação para a reforma do Kirchnerismo  se enquadra no âmbito de refundação do seu país, tomando a forma de um republicanismo popular e social que se sente em casa no Estado - ao contrário do petismo brasileiro, que governa instituições que renega, mas para as quais seus teóricos jamais formularam uma alternativa concreta e o seu núcleo duro sindical reage com uma acomodação pragmática.

O Kirchnerismo, de certa forma, alimenta as aspirações de uma classe média tradicional e intelectualizada do continente (nossa, inclusive), que sempre escapou ao conservadorismo de seus pares - mas que deseja ver uma democracia representativa funcional que faça o que é devido, alimentando certas ilusões comodistas em relação ao Estado de Direito e outras heresias idealistas. É claro que é no mínimo justo ponderar que os problemas sociais brasileiros são muitíssimo maiores do que os argentinos e talvez isso seja motivo para algum desconto.

Aliás, a luta por direitos civis ou pela regulamentação da mídia - que passa por um confronto com setores tão tradicionais e oligárquicos quanto os daqui - serve de cortina de fumaça para certas controvérsias comuns ao Kirchnerismo e ao Lulismo, mas que vem à tona aqui e não lá pela frustração de setores da nossa classe média quanto a essas demandas - tomem como exemplo a política de alianças kirchnerista e o escândalo de censura a um jornalista do Pagina 12 por denunciar um governador aliado da Casa Rosada

O confronto justo do governo argentino contra setores oligopolizantes da mídia, não raro, serve de cortina de fumaça para outros episódios nos quais o governo fez valer sua posição sobre a liberdade de imprensa - e ficamos aqui diante do velho uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra, tão difícil de ser entendido - que além do caso acima citado, também vale para a divulgação dos índices de inflação, coisa que o governo tomou para si, indo desde mudanças oportunas no instituto oficial de estatística até investigações contra jornalistas que divulgaram índices outros de inflação.

Aliás, sobre a controversa e galopante inflação argentina, estejamos diante dos 10%-12% do índice oficial ou dos mais de 20% dos índices extra-oficiais, o fato é que se tratam dos efeitos de uma política econômica claramente expansionista, pouco disposta a fazer uso de astúcias prudenciais como o Brasil. 

Em matéria de Capitalismo, que o Kirchnerismo jamais se propôs a transformar, políticas econômicas pró-trabalho e crescimento são respondidas com repasse dos ganhos sociais, sobretudo quando são muito rápidos, para os preços dos produtos como forma de reação silenciosa (ou nem tanto).  É o tipo de problemática para a qual Cristina e seu staff não tem resposta até porque não tem compreensão plena de sua natureza.

Também não podemos deixar de ressaltar que o Estado argentino, sob o Kirchnerismo, passou seu legado militar a limpo, seja pela punição dos torturadores ou pela abertura da memória histórica do período, coisa que apenas tateamos por aqui (e mal, ainda).

Como bem define Cesar Altamira, em um belo artigo sobre o Kirchnerismo para  o site da Uninomade no qual esmiúça as nuances da Argentina contemporânea, Cristina "encarna una visión postmoderna socialmócrata de la política", cuja práxis está petrificada por uma conformação pueril com as potencialidades de um agir centrado na mera gestão do Estado subordinada ao poder político - ao mesmo tempo em que ele afirma certo otimismo com o clima político vivo e multitudinário de seu país hoje, processo que se opera abaixo e à esquerda dessa acomodação frente às potencialidades de um "governo popular".

Ambiguidades e críticas, o fato é que a Argentina é um país muito melhor hoje do que há dez anos atrás, quando todos davam por certo sua submersão no cenário internacional - ou há oito anos atrás, quando os mesmos críticos que teciam loas a Menem, desacreditavam as medidas econômicas de Néstor. Junto com as mudanças no Brasil, as transformações argentinas tiveram um impacto firme sobre o resto do continente e, coincidência ou não, o fizeram caminhar na contra-mão do mundo (o que, hoje, é algo bem positivo).

Os desafios que se anunciam no horizonte, é claro, marcam uma nova rodada de entraves, depois de anos de uma improvável bonança na Argentina e na América Latina. Por isso, para além da torcida pela pessoa humana da simpatissíssima Senhora K, precisamos politicamente dela bem inteira. E estamos certos que ela estará tão logo.


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