sábado, 18 de fevereiro de 2012

Carnaval, Democracia e os Problemas no Capitalismo 2.0

La Vendritice di Essenze  - Longhi
Domingo de Carnaval faz pensar em tanta coisa. Inclusive em todo esse estado de coisas que nos cerca, todos esses problemas. Aliás, na democracia, o problema sempre foi a multidão e a insistência da Vida em resistir ao poder, escapando de seus tentáculos, desdobrando seus axiomas e sua axiomática. Literalmente. A palavra problema vem do grego "proboulema" e alude aos projetos de leis desenvolvidos pelas assembleias - eklésias, palavras de onde vem tanto "assembleia" quanto "igreja" em português - e submetidas à Boulé, a câmara alta ateniense - que continua a existir na democracia, ainda que de forma mais razoável -  cuja origem etimológica remete à ideia de vontade.

Cada proboulema se punha como uma questão perturbadora e monstruosa para a estrutura de poder da Pólis, uma verdadeira encheção de saco, principalmente porque eles se multiplicavam em turbilhão. Eram proboulemas, proboulemas e mais proboulemas até chegarmos à problema como expressão de questão que impõe sua resolução de forma pungente, como impedimento à continuação de algo. Em suma, a própria origem do conceito de problema decorre da luta política e possui um solo bastante material e concreto - muito antes de qualquer filosofia primeira, metafísica ou ontologia. A multidão insistente como causa dos problemas e a vontade como sua solução.

E não nos iludamos, a democracia sempre consistiu não em um regime de liberdade absoluta, mas em uma forma de governo na qual seus partícipes são apenas aqueles do grupo que foram juridicamente reconhecidos, tomados a partir daí também como partes aptas a decidir - mas a própria inclusão daqueles dessa maneira não exclui nem a cisão entre participação e poder para decidir, tampouco (e mais importante) a existência de um biopoder capaz de enunciar, já ali, por meio de mecanismos jurídicos quem é parte e quem não é (com o binarismo primeiro do direito, designar quem é de dentro e quem é de fora em relação à pólis para, depois, hierarquizar e selecionar os próprios pertencentes).

A democracia, aqui ou ali, não nasce por astúcia do poder, mas porque a luta verga seu exercício tradicional - mas a democracia sempre conservou os signos dessa tradição. A novidade da sociedade de controle não chega a ser novidade como movimento na história do Ocidente, pois criar um mecanismo resiliente de dominação sempre foi um meio de suportar pressões. Em Roma isso aparece com o nome de República, a Boulé chama-se Senado, os políticos são os cidadãos, os proboulemas são as moções (dentre eles, os plebiscitos), as eklésias passam a ser os comicius (de onde vem comício, comissão e comitê) e os concilium (de onde verte conselho e concílio).

Em outras palavras, isso indica que o poder jamais foi constitutivo, mas sim a Vida que se rebela contra sua tentativa de enquadra-la. Tampouco a democracia/república jamais foi o fim de qualquer conflito, mas sim resultante da disputa e ao mesmo tempo seu novo campo - portanto, nada mais opressivo do que o mascaramento do conflito, em termos cordiais, em prol da democracia/república. Se no plano democrático o dispositivo jurídico continuam a existir, com fins mais nobres, isso não significa que ele deva ser abraçado, nem que deixe de ser manuseado. A emancipação não vem de uma força externa e transcendetal, nem da acomodação sedentária com o que foi conquistado - como se as leis democracia fossem sobreviver sem a força rebelde que as criou -, mas sim da subversão constante.

Assumir-se subversivo é estar pronto para a flexibilidade do poder - hoje maior do que nunca. - e ninguém melhor do que o incompreendido Maquiavel concebeu isso. Aí, voltamos ao Carnaval, nascido como sátira do luto público pelo fim da ordem - num primeiro momento, confundida com o corpo físico do Imperador romano como observa bem Giorgio Agamben no Estado de Exceção -, evento no qual ela terminava suspensa e o tumulto imperava. O Carnaval, portanto, consiste na suspensão da própria ordem, onde a inexplicável paixão triste pelo fim do domínio é subvertida na forma de comemoração pela ausência dela. As leis são suspensas no Carnaval.

A possibilidade de Carnavalização da política sempre pareceu uma hipótese monstruosa demais para o sistema conviver com ela. Não seria um grande problema, mas uma subversão dessa instância, pois só pode haver problemas onde exista, ao menos, um dispositivo de autorização/axiomática controlando a polifonia. Com as leis suspensas - incluso no que toca à própria identidade - não seria sequer mais questão do poder estar diante de uma problemática complexa, mas da ausência da necessidade de se problematizar pela subversão do dispositivo central do sistema. O desejo perverso de dominação, verdadeiro fundamento do poder escondido por séculos de platonismos, estaria sem o seu chão - papai já não estaria mais sequer sendo considerado instância para autorizar o que quer que seja, nem mesmo sofrendo pressão.

Não à toa, movimentos que vão desde a captura do próprio Carnaval na forma de evento mercantil - como espetáculo, competição etc - até a negação do luto, com quem mantém intrínseca (e intrincada) relação, ao se esconder a memória histórica - como no Brasil atual e sua morosa comissão da verdade -, passando pelo Capitalismo 2.0 - a exploração das redes no melhor clima anestésico e livre - são a tônica do momento. A carnavalização da política se afirma como nunca antes, o que força o sistema a criar uma saúda suficientemente flexível, que é a própria estetização do Carnaval - como vemos, p.ex., dentro dessa nova lógica gestionária das redes, causa de recente e intenso debate na Uninomade: o risco iminente da captura por mídia e cultura livres no sedentarismo do business sob aparência polifônica, liberada, emancipada.

A festa livre nas ruas torna-se marcha ordenada, pastiche de liberação e liberdade. A rede é feita livre só para que eu selecione aquilo que eu quero explorar. As máscaras passam a identificar em vez de suspender o mecanismo identitário. A partir daí, é necessário saber jogar com as cartas dadas, sem se acomodar com elas. O que faz uma esquerda não são os instrumentos usados, mas sim a função dada. As armadilhas e arapucas são o próprio jogo.




  

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