quinta-feira, 19 de abril de 2012

Sobre Escassez e Superabundância no Brasil

Os Retirantes -- Portinari
Talvez o melhor livro de Giorgio Agamben seja o Reino e a Glória. Para além de todas as críticas que se possa fazer ao autor, à luz da filosofia da imanência, é preciso reconhecer sua competente pesquisa sobre como o conceito de economia foi moldado durante a Idade Média pela Teologia - e como os modernos são tributários disso, quando o aplicam para explicar (e ordenar, por tabela) as relações de produção entre os homens. 

Há uma questão fundamental que é, precisamente, o fato de que Deus quer que todos se salvem, mas mesmo assim nem todos se salvarão. De um lado, há a superabundância de bondade divina, do outro, a escassez da salvação. É um contraste que permeia o pensamento medieval, mas só irá encontrar sua concretização, ironicamente, no Moderno, com a estruturação da máquina estatal e a instauração do capitalismo.

Vivemos em um sistema econômico no qual as nossas necessidades são inventadas - ou até mais que isso, as próprias subjetividades são inventadas para que, a partir daí, padrões de consumo sejam construídos - e existe, portanto, uma superabundância de produtos - às custas da sociedade e da natureza - e, ao mesmo tempo, uma escassez de acesso a eles, pela problemática da não realização do valor: os trabalhadores gastam o que ganham, enquanto os capitalistas ganham o que gastam (e, por isso, não gastam tudo) como nos lembra Kalecki.

O sistema capitalista impulsiona para que todos enriqueceram, mas nem todos se enriqueceram, pois a riqueza é condição relativa à existência de pobreza. A aparente mobilidade capitalista - em comparação ao imobilismo estamental - cai por terra, pois a condição de existência do capitalismo é a mesma da mitologia cristã medieval: nem todos se salvarão, pois a salvação tem por condição lógica a não-salvação de outros tantos, uma vez que ela é relativa à necessária existência de uma danação. 

Há uma dificuldade quase crônica nas fileiras esquerdistas em compreender isso. Quando falamos no avanço do consumo dos mais pobres no governo Lula- e os problemas da esquerda em ver isso como algo positivo -, na questão industrial brasileira - enquanto partes expressiva da esquerda alardeiam que estamos cercados pelo fantasma da desindustrialização -  ou quando nos deparamos com a face medieval sob a máscara übermoderna dos veganos - como nos demonstrou, em um post irretocável de Lucas Portela - vemos isso.

Há um trecho de Lucas que merece um destaque especial:

"(...)que fome não é estarvação, porque há fome específica; que fome dá lucro, porque é gerando escassez que se especula sobre a superabundância alimentar. Portanto, caro vegan, se os pobres comessem mais carne poderíamos paradoxalmente produzir menos boi – desde que a ampliação do consumo adviesse da melhor distribuição, do impedimento canino pelo Estado de que o Capital especule com os víveres e comodities alimentares"

É exatamente essa bola que eu levantei quando tratava do avanço do consumo dos mais pobres no governo Lula: ainda que haja um sem-número de armadilhas - a capitulação ao desenvolvimentismo puro, p.ex. -, é fato que o aumento de consumo reordena para melhor a produção em suas múltiplas esferas e facetas. Inclusive porque um número de trabalhadores consumindo mais significa maior controle deles sobre a própria produção.

A questão chave, e certamente Dilma não o percebe, é que não é produzir mais, mas produzir melhor, o que seu governo faz colateralmente ao manter o estímulo ao mercado interno via consumo das famílias. Não é aumentar a superabundância, mas sim reduzi-la - e por tabela também a escassez - ao reorientar as relações de consumo. 

Ao fazer os produtores serem, gradualmente, senhores da própria produção, resolve-se a problemática central do capitalismo que é, precisamente, a dissonância entre uma coisa e outra. A partir daí, os padrões da produção passam a poder ser pensados em termos de sustentabilidade: a demanda concreta passa a assumir o lugar da demanda imaginária que o capitalismo produz. Podemos produzir menos, finalmente, porque, afinal de contas, não precisamos de tudo isso.

A insistência nossa sobre a dicotomia entre uma demanda concreta e uma demanda imaginária, antes de ser marxista é spinozana - e é de Marx por ele ter lido Spinoza - e se opõe ao projeto do moderno, sobretudo cartesiano, que não irá admitir, no fundo, essa distinção, reduzindo o funcionamento produtivo, tal como pensado a partir de Smith, não à toa, a um conveniente jogo de espelhos [e de especulação]: a demanda é naturalizada e, ao acontecer isso, tudo é reduzido ao mesmo cesto comum de supostas necessidades.

O problema do atual governo termina por ser a dissonância entre a colateralidade de suas medidas, o resultado material de uma redistribuição funcional da renda em favor dos trabalhadores - e seu próprio acesso ao crédito - e a teleologia do Programa - moderno e keynesiano - que vê na  produção maior o mesmo que produção melhor - como se o problema não fosse produzirmos em demasia porque o fazemos mal (e vice-versa), pois consumimos pouco, questões que o Keynesianismo jamais foi capaz de dar conta pelos motivos óbvios de seus propósitos.

Mas se a resposta para o desemprego não é o pleno emprego, também não quer dizer que o desemprego - supostamente estável e administrável - seja bom - e o mesmo se aplica entre a lógica de crescimento e estagnacionismo. A produção não precisa crescer, estagnar ou decrescer, ela precisa se ajustar à vida pondo-se em função dela - o que significa fazer um giro copernicano em relação ao que prevalece agora.

A partir daí, é preciso não apenas criticar o desenvolvimentismo dilmista, mas fazer, também, a crítica da crítica ao desenvolvimentismo, uma vez que ela tem se fiado nos seus mesmos paradigmas - quando não, dentro da sua lógica mesma, como quando vemos Marina ou Plínio, a exemplo de Serra, denunciando a desindustrialização. Uma produção melhor não é mais, nem menos, é apenas a melhor mesmo. Simples assim.

7 comentários:

  1. Olá Hugo, tudo bem? Eu e alguns amigos somos leitores assíduos de seu blog e muitos dos textos nos fazem iniciar discussões interessantes. Por isso, muito obrigado.
    E justamente ao discutir o presente texto com um amigo, eu pensei, porque não postar lá no blog também e expandir a discussão? Então o que segue é a minha resposta a esse meu amigo, estou me dirigindo a ele. Acho que precisava explicar isso pra não parecer sem sentido quando eu digo "ele" e estou me referindo a você.
    Grande abraço!

    "A questão chave, e certamente Dilma não o percebe, é que não é produzir mais, mas produzir melhor, o que seu governo faz colateralmente ao manter o estímulo ao mercado interno via consumo das famílias. Não é aumentar a superabundância, mas sim reduzi-la - e por tabela também a escassez - ao reorientar as relações de consumo.
    Ao fazer os produtores serem, gradualmente, senhores da própria produção, resolve-se a problemática central do capitalismo que é, precisamente, a dissonância entre uma coisa e outra."
    E assim realiza-se o sonho hegeliano de liberdade, onde todos são produtores e ninguém está submetido (escravo) pois ninguém está mandando (senhor).

    Continua...

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  2. O problema está na formulação que se segue:
    "A partir daí, os padrões da produção passam a poder ser pensados em termos de sustentabilidade: a demanda concreta passa a assumir o lugar da demanda imaginária que o capitalismo produz. Podemos produzir menos, finalmente, porque, afinal de contas, não precisamos de tudo isso."
    Ou eu não entendo completamente onde está o pulo do gato, ou ele não diz qual é o pulo do gato. Porque o fato de sermos todos produtores implicaria automaticamente a percepção de que não precisamos de tudo isso? A dinâmica que ele mesmo identificou no começo do texto, das criações da subjetividade através do consumo, ou como maravilhosamente postulado pela Luiza "Gasto, logo existo", não cessa, pelo contrário. É ingenuidade esquerdista achar que esse proletariado trás consigo uma nova consciência de consumo, de sustentabilidade. "Os ascendentes" querem é carro e não bicicleta, pq eles foram inseridos na classe média via consumo, não via cidadania ou educação, o que seria necessário para uma consciência mais crítica (que consiga colocar em perspectiva o que quer que seja).

    Continua...

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  3. Daí ele volta:
    "O problema do atual governo termina por ser a dissonância entre a colateralidade de suas medidas, o resultado material de uma redistribuição funcional da renda em favor dos trabalhadores - e seu próprio acesso ao crédito - e a teleologia do Programa - moderno e keynesiano - que vê na produção maior o mesmo que produção melhor - como se o problema não fosse produzirmos em demasia porque o fazemos mal (e vice-versa), pois consumimos pouco, questões que o Keynesianismo jamais foi capaz de dar conta pelos motivos óbvios de seus propósitos."
    Será que é esse mesmo o problema do atual governo? Para mim, o pior problema desse governo é o que ele chama de armadilha desenvolvimentista no começo do texto. Apesar das colateralidades que ele enxerga e que são, de fato, inegáveis, é pouco para um projeto de esquerda. Não uma esquerda estalinista, mas uma esquerda que foque na educação crítica de seus cidadãos, inclusive para que esses possam ter voz para criticar esse próprio governo. E era isso que eu esperava mais do governo do PT, e é exatamente o que ele não faz. Em todas as brigas que ele entra nesse sentido, ele capitula! O "Kit Gay", essa Comissão da Verdade pra gringo ver. Na minha opinião, o governo capitula nesses pontos essenciais pq pode (e prefere) contar suas vitórias no campo econômico, na diplomacia mundial e blá blá blá. Onde há d fato vitórias, dentro da lógica que se propõe. Mas com isso ele deixa para trás o projeto original que o caracterizou.
    "A produção não precisa crescer, estagnar ou decrescer, ela precisa se ajustar à vida pondo-se em função dela - o que significa fazer um giro copernicano em relação ao que prevalece agora."
    Concordo com isso, acho que você também. Há que se mudar a perspectiva (giro copernicano) do que prevalece agora. Sim, catso! Mas como? Em nenhum momento ele fala especificamente da educação pra uma sociedade de cidadãos e é disso que se trata. Não há mágica colateral de consumo que vá mudar o jeito que o consumidor vê o próprio consumo. Só uma educação alheia a esta lógica poderia vai permitir a mudança do que agora prevalece.
    "A partir daí, é preciso não apenas criticar o desenvolvimentismo dilmista, mas fazer, também, a crítica da crítica ao desenvolvimentismo, uma vez que ela tem se fiado nos seus mesmos paradigmas - quando não, dentro da sua lógica mesma, como quando vemos Marina ou Plínio, a exemplo de Serra, denunciando a desindustrialização. Uma produção melhor não é mais, nem menos, é apenas a melhor mesmo. Simples assim."
    Não há como negar que é maravilhoso o fato de uma pessoa não precisar mais se submeter às humilhações de seus patrões em troca de um soldo de escravo. Essa é mesmo a grande vitória do governo Lula e continua com Dilma. Isso veio sim através do desenvolvimentismo e do repasse social. Maravilhoso! Mas não é suficiente. Como alcançar essa melhor (relação) de produção? Só através de colateralidades não vai ser, ou vai demorar muito mais do que pelo caminho da educação.

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    1. Caro ¿Doubter?,

      A questão central do meu argumento - e do Lucas - também parte de uma premissa bem simples: o capitalismo é o que é porque existe uma dissonância entre produção e consumo (realização do valor), no qual quem produz não o faz no sentido de realizar demandas sociais, mas sim as demandas meramente abstratas ligadas à reprodução incessante do capital. Uma vez o produtor passa a ser, por políticas específicas, sujeito também daquele consumo, as próprias relações de consumo passam a se reordenar.

      Não é questão de "consciência" - aí sim, um resquicio da teologia hegeliana ainda presente em Marx e não a minha preocupação em descrever movimentos reais que, aí sim, é marxista (ou pelo menos é a parte de Marx que não vem de Hegel) -, mas de como esse processo - para além de qualquer crença numa racionalidade transcendental - afeta o funcionamento geral do sistema capitalista - que é a própria entropia do sistema.

      É uma premissa bastante elementar: a superabundância do capitalismo - que produz escassez do socialmente demandado - é construída por meio dessa dissonância e a resolução dela é que conduz a um estado de satisfação social - o contrário seria crer no catastrofismo, que, na verdade, as massas precisariam estar famélicas para "se darem conta" e porem fim a máquina, mas, sobre isso: (1) as classes pequeno-burguesas que exigem isso, elas mesmas, não abrem mão do padrão de consumo que enxergam como problemáticas; (2) para além dessa questão, famintos criam totalitarismo, eles não conseguem fazer revoluções.

      Se a objeção é em relação a relação aumento do consumo dos trabalhadores --> emancipação, é preciso demonstrar como isso não ocorre. Se a objeção é de que isso não é suficiente, sim, isso é o que eu tenho escrito por aqui há muito tempo, embora isso não queira dizer que o "suficiente" não demande empoderamento da classe trabalhadora.

      abraços

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    2. Olá, Hugo. Obrigado pela resposta.

      Acho que o que eu ainda tenho dificuldade em aceitar é esse empoderamento dos trabalhadores, que você identifica em dois aspectos como se fossem logicamente encadeados: 1) o poder de consumir mais e, como consequência deste, 2) um maior poder sobre a produção, pois criador de novas demandas.

      É isso justamente que eu não consigo aprender da realidade, ou seja, se esse segundo passo se verifica empiricamente. Os movimentos que você e o Lucas estão identificando dariam-se pela via de consumo, depois gerando colateralidades etc, etc.

      Pois vamos lá, deixe-me tentar entender como o consumo poderia mudar o estado de coisas:

      A demanda, como você bem notou, não é natural, é mesmo construída, gerando necessidades e criando subjetividades, certo?
      O que eu enxergo são esses novos atores de consumo tentando se integrar ao jogo de consumo já existente. Não os consigo ver criando demandas diferentes, e portanto não os consigo ver com poder de mudar as atuais relações de produção, que simplesmente se adaptam para produzir mais (e não melhor, seja lá que juízo de valor seja esse). Em que o comportamentos, especificamente de consumo, esses novos atores diferem-se da antiga classe média?

      Nesse sentido, é sintomática a reação da velha classe média que ao ver esses novos atores utilizando seus espaços, antes exclusivos, agora se sente acuada e se esforça para marcar a diferença entre os dois grupos. Mas se esse esforço é necessário é porque não há lá tanta diferença assim.

      Esses novos atores são, a meu ver, justamente isso e não mais que isso: novos atores de consumo multiplicadores das demandas já existentes; não criadores de demandas radicalmente diferentes. Nesse último aspecto o empoderamento que lhes possibilitaria a virada copernicana na produção não se conclui. Pois mesmo que identifiquemos a não-naturalidade das demandas, é difícil defender a radical diferença entre velhas e novas demandas. As motivações de consumo ainda são as mesmas (ambos os grupos ainda querem carro e não bicicleta).

      Por enquanto, ainda os enxergo como sujeitos de antigas demandas e não criadores de demandas (e modos de vida e de subjetividade) diferentes. No jogo de "gasto, logo existo" do consumo, eles são trazidos à existência como espelho da antiga classe média.

      Acho que é aí que discordamos, não? Você enxerga um comportamento de consumo (via famílias) radicalmente diferente?

      Abraços!

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  4. Estruturalmente, o que mudou no consumo a meu ver, é a expansão do crédito às classes que antes não conseguiam consumir por conta dessa falta. Com esse obstáculo de consumo superado, o que muda é a dimensão do consumo, não sua qualidade.
    Os drivers de consumo, essa abstração que não significa mais que os motivadores de consumo, continuam os mesmos. As Casas Bahia não estão preocupadas em oferecer produtos mais sustentáveis (móveis de madeira reflorestada, com selos sócio-ambientais ou coisas do gênero), estão preocupadas em fazer seus mesmíssimos produtos a uma nova onda de consumidores.
    O reflexo disso na produção não passa por uma produção melhor, só maior.
    No final das contas, a colateralidade que eu vejo se dá na antiga classe média, que para se diferenciar desses novos consumidores compram produtos "diferenciados". Entre eles estão a dieta vegan (que o Lucas bem identificou), carros menos poluentes, móveis de madeira reflorestada etc.

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    1. É isso justamente que eu não consigo aprender da realidade, ou seja, se esse segundo passo se verifica empiricamente. Os movimentos que você e o Lucas estão identificando dariam-se pela via de consumo, depois gerando colateralidades etc, etc.

      A demanda, como você bem notou, não é natural, é mesmo construída, gerando necessidades e criando subjetividades, certo?
      ,

      A demanda não é natural, mas existem dois tipos de demandas: as sociais e as criadas pelo capital - unicamente para a sua reprodução incessante. O liberalismo tenta naturalizar toda espécie de demanda econômica e, ao fazer isso, coloca tudo no mesmo cesto comum. Eu não aceito isso, essa é uma das premissas do meu raciocínio, uma objeção sua seria de princípio e nesses termos.

      Não ver que a produção foi reorientada é ignorar uma série de coisas, inclusive toda a construção no sentido de fortalecimento do mercado interno, toda a expansão e capilarização do mercado creditício - mas é evidente que enquanto isso se opera, uma série de outros vetores incidem sobre o processo, é a luta me curso (eu não disse que a luta de classes acabou, atente para isso, mas sim que a correlação de forças dela foi alterada).

      Antes de pensar em qualidade e quantidade - que são acessórios - é preciso pensar na intensidade do consumo e é fato que, mesmo assim, houve uma mudança substancial nisso: produzimos para atender um mercado interno, os bancos precisarão, gradativamente, financiar o consumo etc. É claro que existem pressões do capital, em seu caráter ambivalente, para se apropriar disso, absorvendo o crescimento da renda e do emprego por meio do processo inflacionário, enquanto os bancos se mantêm relutantes em avançar no financiamento do consumo porque preferem o baixo risco gerado pelo alto valor dos juros.

      Também não atribuiria o veganismo - e tudo que mais lhe envolve - a esse processo, ele não é uma mera reação a esse processo em específico, mas sim o reposicionamento do sujeito dentro da nova economia da dívida - e, por tabela, da culpa - marcada por esse corte violento que se operou dos anos 70 em diante - tanto que se reproduz pelo mundo. Outros comportamentos políticos, é verdade, são reativos a esse processo, basta lembrar do que foi a candidatura Serra em 2010.

      abraço

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