quinta-feira, 24 de maio de 2012

Greve no Metrô: o Choque de Trens (e de Gestão)

Equipes de Socorro cuidam dos feridos depois da colisão de trens/AE
São Paulo esteve paralisada ontem: foi o enésimo colapso nos transportes públicos dos últimos dois anos, também conhecido como terceiro governo Alckmin. Os metroviários interromperam suas atividades em consequência de dois choques, o primeiro, "de gestão" - que se opera há anos -, e resultou tanto na estagnação salarial  da categoria quanto em cortes de investimento perigosos e o outro,, o físico entre dois trens do metrô na estação Vila Carrão (zona leste de São Paulo, linha Barra Funda-Itaquera) - que serviu de estopim para o movimento grevista dos metroviários e suas reivindicações de melhoria salarial e de condições de trabalho.

Pois bem, no ano passado, assistimos à paralisação dos ferroviários da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), pelos mesmíssimos motivos, quais sejam, falta de reajustes salariais - mesmo reposição da inflação - e investimentos, o que foi debelado com uma proposta de aumento - mas que não resultou em nada concreto em termos de melhoria das condições de operação e serviço, como provam tanto o choque entre trens na estação da Barra Funda, poucos meses depois, quanto o colapso da Linha Rubi este ano. 


Agora, com o acidente da semana passada, os protestos dos metroviários e a paralisação de ontem, chegamos à paralisia: greves de metroviários tendem a ser mais potentes do que as dos ferroviários, uma vez que a dos primeiros incide sobre uma malha altamente concentrada dentro do centro expandido de São Paulo, o que torna a substituição por outros transportes (carro ou ônibus) inviável, literalmente paralisando a cidade. 


A intenção original do movimento grevista - liberar, à francesa , as catracas no dia de ontem - acabou frustrada por uma decisão do Tribunal Regional do Trabalho, estranhamente cumprida pelos grevistas, que terminaram por paralisar suas atividades do modo convencional - a abertura das catracas, na prática, só oneraria o Estado explorador e não os usuários, mas é certo que a retaliação em cima disso seria muitíssimo mais dura do que a da atual greve, já que o peso seria maior.


Mesmo considerando que a volta de Alckmin ao Palácio dos Bandeirantes seria marcada, inevitavelmente, por uma paralisia crônica, a indicação de Saulo de Castro Abreu Filho, ex-secretário de segurança pública nos tempos dos ataques do PCC, para a Secretaria dos Transportes não deixou de ser surpreendente: mal-sucedido em sua própria área, certamente não seria em uma outra que desconhece que ele teria melhor sorte. O misto de trapalhadas, incapacidade negocial e quetais de Saulo somam-se à política de cortes de investimentos em tempos de crise de Alckmin, o que faz a situação beirar o desastre. Conjugado com o desgoverno Kassab, também conhecido como longo desgoverno Serra, em São Paulo e temos o retrato do caos.


Em suma, o que São Paulo vive é um exaurimento causado, ele mesmo, por um programa suicida de gestão executado por gestores pouquíssimo capazes. É quase uma somatória soviética, só que do outro lado do espectro político (se é que isso interessa). 


A interrupção da greve e a retomada do trabalho pelos metroviários, há poucas horas, não são, nem de longe, a saída efetiva para a crise. Tampouco, podemos ver essa questão desconectada do eixo que passa pela questão habitacional e de segurança, isto é, todo o nexo de relações concernentes à gestão dos espaços urbanos em São Paulo, cujo aparelhamento pela tecnocracia empresarial resulta em um quadro de efervescência permanente: houve uma hipertrofia tão violenta dos mecanismos de governamentalidade, em um sentido contemporâneo e liberalíssimo, que ela própria se esgotou em um vazio de desgoverno caracterizado por apagões e travas de toda sorte. 


O desafio posto, sem dúvida, é enormíssimo, pois ainda que toda a parasitagem se articule graças aos atuais ocupantes do governo estadual e municipal da capital, não resta dúvida que todos esses esquemas podem sobreviver, perfeitamente, a derrotas eleitorais e se realinharem, compondo com as novas forças. É preciso criar meios efetivos para neutralizar o processo ele mesmo.



segunda-feira, 21 de maio de 2012

Livros de Humanas: Os Direitos Autorais Atacam Novamente

O  famoso site Livros de Humanas, mediante o qual se pode ter livre acesso ao conhecimento - por meio de links que conduzem, gratuitamente, a acervos de livros digitalizados -, está fora do ar sob a alegação que sofreu notificação judicial da Associação Brasileira de Direitos Reprográficos (ABDR). Basicamente,  a ABDR move uma ação de perdas e danos, no valor de R$ 10.000,00, em nome das editoras Contexto e Forense, filiadas duas, pelo fato de que dois livros delas podiam ser acessados pelo site - um deles, ironicamente, sobre psicose paranoica -,  com pedido cumulado de tutela antecipada para a retirada das obras da rede, sob o ônus de aplicação de multa diária de R$ 500,00, enquanto estiverem lá. O réu da ação é uma pessoa física identificada como suposta proprietária do site.

Isso reabre o debate sobre direitos autorais - que, afinal de contas, é uma das pedras de toque do capitalismo cognitivo: encalacrar a produção (imaterial), que representa uma parcela cada vez maior do valor econômico, em termos jurídicos para determinar que a remuneração do "autor" (na verdade, das editoras, gravadoras e afins) esteja hierarquicamente acima do acesso ao conhecimento, à cultura e à informação. 

A circulação desses bens de primeira necessidade torna-se condicionada ao pagamento de vassalagem ao capital, que captura sua produção. Trata-se de uma contradição em termos curiosa, uma vez que o aparato legal e judicial não protege verdadeiramente os autores, muito mal remunerados pelas gravadoras, editoras e todo o circuito comercial, mas dá àquelas primazia de remuneração mesmo sobre a necessidade social de acesso ao conhecimento.

O direito autoral termina por ser menos autoral do que seu nome suscita e mais um simples regulamento para a exploração, controle e disposição dos bens imateriais, sua produção e circulação, pelo capital. Se um direito enuncia, simultânea e automaticamente, uma obrigação, aquela que decorre daqui é que a sociedade está obrigada a pagar para um setor para ter acesso à cultura que ela própria produz de modo comum. 

Na melhor das hipóteses, temos (a meia-dúzia de) medalhões da indústria cultural, a auto-intitulada "classe artística", detentora de gravadoras ou editoras próprias, capitalizando brutalmente em cima da sua própria obra das mais diversas maneiras, acomodando-se em produzir - mas essa sequer é a regra, uma vez que a maioria de artistas e afins são meros empregados - isso sem falar que o fato do direito autoral transcender à vida do "artista", mantendo sua obra como domínio privado, constitui-se em um sumo estupor.

Há uma multidão de jovens que dependem de cópias e xerox para estudar, trabalhar, viver e  mesmo a reprodução sem fins lucrativos é vedada; o sistema que nega acesso a esses bens, por outro lado, é aquele mesmo que precisa, para sobreviver, capturar uma produção que demanda, por sua vez, uma circulação cada vez mais rápida e melhor do conhecimento comum.  No Brasil, a ABDR é apenas um dos braços desse esquema parasitário que, hoje, possui bastante força graças ao esquema do ECAD - agora firmemente ancorado no Ministério da Cultura na gestão Ana de Hollanda.  

Não se trata, por óbvio, de excluir um sistema de remuneração para quem produz arte, cultura ou informação, mas sim de saber que o autor não é um sujeito transcendental que produz do nada: ele o faz a partir do que é produção comum da sociedade onde vive, logo, torna-la um ente meramente privado trata-se de um atentado à própria continuidade do processo produtivo: a circulação não pode estar posta em função da remuneração, mas sim a segunda é que precisa ser adequada à primeira. Mesmo que esse autor ainda pudesse ser considerado como tal, reitero, não é para ele, via de regra, que a correnteza é vertida.

Para além dos problemas todos concernentes à juridicização da Vida, ainda assim, à luz dos princípios constitucionais vigentes e decantados, é de causar surpresa à tolerância com a legislação vigente, seja por parte dos legisladores ou dos próprios tribunais - que podem e precisam, eles mesmos,  dar interpretação adequada frente à Constituição vigente, embora costumem ser até mais realistas do que o rei (o que é sintomático, aliás). O prejuízo social com o fechamento do Livros de Humanas, que já foi ensaiado há tempos, até agora, resta não calculado ou não considerado nas planilhas, o que não é nada à toa.



domingo, 20 de maio de 2012

O Eterno Retorno como Eterna Revolta

Ouroboros em velho texto alquímico grego
Se a Filosofia nasce como uma disputa entre rivais, pretendentes que duelam discursiva e encarniçadamente em praça pública, não resta dúvida que, neste sentido, o eterno retorno nietzscheano consiste em uma das mais cobiçadas noivas dessa conversa. A disputa por ela é a própria disputa da Filosofia. Em alemão, "eterno retorno" diz-se (atualmente) "ewige wiederkehr", embora, originalmente, fosse enunciada como (o arcaísmo) "ewige wiederkunft".

Enquanto "ewige" traduz-se quase exatamente como "eterno", "wierderkehr" já é uma palavra tipicamente germânica,  construída pela aglutinação de "wieder" ("de volta", "novamente", ou o equivalente ao prefixo "re", bastante frequente nas línguas latinas) e "kehr" ("tráfego"); enquanto, originalmente, tínhamos "wieder" aglutinado ao termo "kunft" (termo arcaico para vir que serve, inclusive, de elemento constitutivo para "futuro": zukunft [zu-kunft] que, no entanto, seria ao pé da letra o bíblico adventus/advento [ad{zu}-ventus{kunft}] cuja flexão verbal é advenire/advir ). Embora zukunft seja recorrente ainda hoje em alemão, wiederkunft não mais, tendo sido substituída por wiederkommen (sendo que o termo kommen [vir] tem, obviamente,  a mesma raíz que o inglês come).

O eterno retorno é, sendo fiel ao método do próprio Nietzsche, o movimento de constante volta daquilo passível de trafegar (kehr) ou vir (kunft/kommen), portanto, não se trata - nem pode se tratar - do Mesmo, pois é algo que torna como novo e diferente, em fluxo, dentro de uma lógica móvel. Distancia-se, também, do eterno concebido pela filosofia cristã (estático e contemplativo), inserindo-se em sentido intensivo e não quantitativo. 


Neste sentido, a noção de fluxo em Deleuze e Guattari é inevitável (e pouco coincidente), e o mesmo podemos falar da noção de devir (em inglês, becoming, que pode ser permutando por tornar-se, embora, uma simples análise etimológica demonstre que não é exatamente o mesmo que isso) - sobretudo pelo  paralelismo entre wiederkunft/wiederkommen, a referida construção do zukunft e a relação nada ocasional disso com o latino adventus e, portanto, com o verbo advenire (mesmo que devir, em alemão, não guarde, exatamente, relação com "vir", mas, aí literalmente, com "tornar-se", isto é, werden). Tudo isso, perfeitamente de acordo com a filosofia de Heráclito e seu  (helênico) panta rei (tudo muda, tudo flui, como a máxima que diz que o rio que um homem entra hoje, não é o mesmo que ele entrará amanhã ou entrou ontem.

Os franceses traduziram o termo por "éternel retour" - ao pé da letra, o nosso "eterno retorno", embora não custe lembrar que "tour", em francês, é frequentemente utilizado como substantivo, o que já não acontece em português: dizemos "o retorno", mas jamais usamos "o torno" (talvez a variante "o turno", só que apenas em situações específicas, como a política ou e o futebol), mas sim "a volta" (ainda que usemos a locução "em volta" com praticamente a mesma conotação que "em torno"). O verbo "voltar", por sua vez, é equivalente a "retornar", mas também a "tornar" - "eu voltei/tornei a escrever este post", embora nos casos que faça referência a espacialidade temos coincidência entre voltar e retornar: "eu voltei/retornei ao meu quarto para escrever isto".

Curiosamente, o verbo "revoltar" possui uma conotação assombrosamente mais virtuosa: sublevar-se, indignar-se, confrontar (como minoria) a ordem - descolado, a um primeiro olhar, da ação que ele repete (o inocente ato de voltar/(re)tornar) pela evidente superioridade de potência entre ele e o primeiro; há uma distância enorme entre "eu (me) volto" e "eu (me) revolto", um dos mistérios, na forma de incongruência, da língua, que precisamos aceitar para saber como trabalhar estrategicamente com ela - afinal, a língua é aquilo que se faz dela no uso corrente, não o que determinada regra lógica diz que é, do contrário, na melhor das hipóteses, falaríamos ainda latim.

Se o Eterno Retorno está longe de qualquer contemplação, inserindo-se no mundo dos devires, dos cortes e do tudo muda de Heráclito, ele mantém distancia maior ainda do mesmo, do igual ou do idêntico - como coloca Deleuze em seu Diferença e Repetição - na medida em que consiste em mais do que um mero retorno - como o entendemos  usualmente -, mas sim em uma revolta - no sentido em que a enunciamos usualmente: só retorna "o que é extremo, excessivo, o que passa no outro e se torna idêntico" [Diferença e Repetição, p.49], uma identidade que surge a partir da diferença (e não o contrário) na qual o "re" diz respeito ao novamente e não à cópia: como a rima, na qual o que volta não é a mesma palavra do verso anterior, mas aquilo que lhe há de mais abundante e excessivo, isto é, a sílaba tônica.  


Eterno Retorno como Eterna Revolta, como poesia da vida na vida: (re)volta do que há de intenso, excessivo e abundante de modo iconoclasta e cruel, tal e qual  as massas que se levantam no "passado, presente e futuro" frente à opressão (não em termos maniqueístas, mas como relação de retroalimentação entre opressor-oprimido, seu esquema próprio de representação masoquista), re-existindo no campo de batalha, daquilo que rouba sua existência pelo exaurimento de sua potência.


Se os descaminhos da História e a palidez intelectual dos legatários de Marx e Nietzsche os distanciaram, quando um pouco de ponderação e prudência poderia ter levado a um movimento inverso (e muito mais produtivo), vemos que a revolução - sobretudo a permanente, que Trotsky apreendeu bem de Marx, embora tenha feito, a exemplo dos marxistas em geral, uma análise indigente do legado nietzscheano -  e o eterno retorno referem-se a um nexo de relações próximo, senão coincidente, o que torna-se, inclusive, cada vez mais claro quando o momento histórico em que nos encontramos expõe a fratura da dívida (infinita) como questão emergente (e emergencial) da economia - como expõe perfeitamente Maurizio Lazzarato.  


domingo, 13 de maio de 2012

Grécia Desgovernada: Por uma Práxis do Anti-Governo

Aurora Dourada: Por que não uma suástica de vez?
O resultado das eleições gregas ocorridas há uma semana foi claro: a Grécia está desgovernada no sentido em que dizemos que um carro está desgovernado. Evidentemente, isso não é à toa: o país, mais do que nenhum outro no Velho Mundo, foi atingido pela crise no Euro. Também, pouquíssimos países da Europa são tão problemáticos quanto a Grécia contemporânea em termos políticos: o rescaldo da independência do Império Otomano no século 19º, passando pelas constantes intervenções das potências europeias e incluindo a tragédia da Segunda Guerra Mundial e seus ecos no país - uma guerra civil entre fascistas e libertadores, um intermezzo democrático e uma ditadura militar - deixaram de legado um sistema político oligarquizado, controlado por famílias e prestes a explodir.

Há várias explicações para a crise grega. Os credores do país preferem aquela versão que culpa os gregos pela sua própria desgraça, restando apenas a resignação e o sacrifício do pagamento da dívida sem fim. Há outros mitos, como aquele que credita a crise à realização das Olimpíadas de 2004 em Atenas é causa do processo. O fato é que o Euro prejudica a economia grega desde o momento que a faz compartilhar do mesmo padrão monetário que um país como a Alemanha. Então, temos uma questão que vai para além de "equilíbrio fiscal": a conta corrente do país fica desequilibrada porque ele importa demais, suas cadeias produtivas tornam-se meras maquiadoras - viciadas, ainda, em empréstimos a juros baixos no mercado europeu (e o Estado se ancorou nisso para tomar dívidas e financiar algumas estruturas públicas).

É claro que o velho fisiologismo da política grega, o que resulta desde a vista grossa para a sonegação fiscal dos mais ricos - enquanto pessoas físicas - até o desvio de verbas públicas nas Olimpíadas contam, mas certamente não explicam tudo. Porque, do contrário, Espanha e Portugal não estariam em crise. Muito menos a Irlanda. E não há como exigir um arrocho fiscal desses países que seja capaz de equilibrar as contas: seja pelo fato da paridade absoluta entre desiguais ser aberrante ou, não percam isso de vista, a supervalorização internacional da moeda comum europeia - negociada por Merkel e Sarkozy para passar a mão na cabeça de Washington com sua demente irresponsabilidade fiscal - ajudar a asfixiar mais ainda as pequenas economias da Europa via comércio extra-europeu.

E a disputa política na Grécia moderna não é diferente do resto da Europa: um pastiche do que era o velho Sacro-Império Romano Germânico, onde papistas e defensores do imperador   eram os dois pólos em nível geral e em ramificações partidárias locais - o que só serviu para alimentar a desgraça de homens brilhantes como Dante Alighieri. Prevalece na Grécia o mesmo que no resto da Europa, seja internamente ou na política europeia: um partido de centro-direita (alinhado ao Partido Popular europeu, no caso o Nova Democracia) e outro de centro-esquerda (adequado ao Partido Socialista Europeu, no caso o PASOK) se alternando no poder com suas matizes. 

Na Grécia, essa ópera bufa sempre teve contornos piores, uma vez que os establishments partidários giravam em torno de famílias e oligarcas. Os socialistas sempre foram tributários da família Papandreou, enquanto entre os conservadores, podemos dizer o mesmo da família Karamanlis. E desde de 1974 são eles que se alternam no poder, com algumas crises tópicas, como aquele que resultou num grande governo de solidariedade nacional no fim dos ano 80 - que incluiu mesmo os comunistas - além de uma queda dolorosa de governo para a centro-direita, há pouco tempo, que trouxe o PASOK de volta ao poder para ter uma posição ambígua  com as políticas de austeridade que a Europa lhe obrigou; fenômeno que resultou no gabinete do governo técnico de Lucas Papademos (apoiado por uma coalizão ampla, a exemplo do governo Monti, na Itália), implodido pelas circunstâncias.

O cenário atual, passados sete dias das eleições nacionais, é o rescaldo de uma tempestade: com uma abstenção relevante (na casa de 35%), a pulverização total dos votos - com a pior votação da história do Nova Democracia e a pior, desde que se tornou um partido relevante, do PASOK -, a ascensão de um partido nazista ao parlamento - o Aurora Dourada, cujo símbolo, uma suástica disfarçada, indica bem a que ele veio - e a impossibilidade de se formar governo imediatamente, fecham o quadro de desgoverno. A vantagem relativa que o Nova Democracia possui no parlamento é fruto, inclusive, de uma distorção pró-governabilidade no sistema eleitoral grego: se 250 das 300 cadeiras do parlamento são divididas conforme o voto proporcional, as outras 50 são um bônus para o partido que ficou em primeiro lugar (relativamente, que seja).

O ponto é que a vantagem do Nova Democracia de Antonis Samaras - 108 cadeiras contra o Syriza, uma coalizão de vários grupos da esquerda radical, que fez 52 deputados - se explica unicamente pelo bônus eleitoral. Se isso foi criado para construir uma vantagem para o vencedor das eleições em um país politicamente complexo, no cenário atual, apenas se torna um fator de distorção que constrói uma maioria abstrata e quase ilegítima. Mesmo com isso, um governo de direita na Grécia só seria possível caso Samaras resolvesse fechar com os Gregos Independentes (uma cisão de seu próprio partido) e com os nazistas do Aurora Dourada (sobre essa última opção, ela foi aparentemente descartada). Sem o Aurora, Samaras está em um mato sem cachorro. E existe a possibilidade que o PASOK consiga, apesar da terceira colocação, fazer o governo.

O atual estado de coisas do Estado grego é de pura indeterminação: a perda de crédito na política parlamentar - fundada na representação partidária com interface nas instâncias da União Europeia - além dos confrontos campais e quotidianos entre manifestantes e a polícia nas praças públicas geram uma pressão suficientemente grande para que haja uma crise no sistema, mas também não resultaram na construção transversal de uma nova organização. 

Se por um lado a esquerda venceu nas urnas (dentre os partidos que superaram a cláusula de barreira de 5%, que juntos representaram 80,97% dos votos válidos, a esquerda venceu por 57,5% a 42,5%) , por outro, a divisão dos vários partidos fez com que nenhum partido dela recebesse o bônus de 50 deputados, o que caiu no colo do Nova Democracia, garantindo a vantagem em cadeiras que, no voto, a direita não teve (162 a 138). Pior ainda, não há, entre os partidos organizados, um programa - ou uma disposição - suficientemente clara e forte para resistir às "políticas de austeridade", um eufemismo para o estrangulamento financeiro ao qual a Grécia é submetida neste exato momento.

O naufrágio está desenhado e o quadro grego é uma versão extremada do que não deixa de ser o de toda a Europa. O crescimento da extrema-direita - minando os velhos partidos de centro-direita, seja em versões mais moderadas, como o Front National da França ou, sem máscaras ou eufemismos, na forma do nazismo praticamente declarado como no caso do Aurora Dourada -, o desinteresse pela política partidária e a dificuldade dos movimentos sociais em constituírem alternativas concretas, produzindo um efeito pendular entre velhos modos de governismo (ou alternativas de esquerda que variam entre a velha social-democracia, o eurocomunismo e um suposto novo-esquerdismo) e o desgovernismo. 

Deleuze, por certo, tinha razão ao dizer que não havia governos de esquerda, mas também acertou quando colocou que não era possível encontrar uma saída apenas desconstituindo o posto: é preciso constituir o novo, a negação permanente do velho, por si só, é uma sombra, uma versão do Mesmo (um anti-governismo de desafortunados pelas urnas ou pela política, no caso). Esse é o desafio grego no momento, como também não deixa de ser dos franceses, é preciso trabalhar maquiavelicamente com o que está posto sem perder de vista o horizonte histórico - porque é lá para onde vão as linhas de fuga. Um desgoverno - uma "crise de governabilidade" - é apenas um governo às avessas, é preciso um anti-governismo obstinado, o que passa pelo enfrentamento positivo do Estado.

P.S.: Existe a possibilidade do PASOK formar o governo, apesar dos pesares, a única vantagem disso, em si, é que Berlim sofreria o segundo golpe duro em poucas semanas, o que freia a política de estrangulamento da Troika. Seria uma vitória no sentido de um recuo, ainda que não alente uma transformação tal como necessária.


Atualização de domingo, 20/05: Sem governo, novas eleições foram marcadas para Junho, mas as pesquisas tornam a dar vantagem para o Nova Democracia, levando pequena vantagem sobre o Syriza. O impasse está longe, bem longe de ser resolvido.

domingo, 6 de maio de 2012

O Presidente Hollande

Eleitores de Hollande comemoram sua vitória
Sim, como previsto há meses, o socialista François Hollande conseguiu uma previsível vitória contra Nicolas Sarkozy, algo que estava claríssimo depois do 1º turno - sobretudo com linhas curiosas: Hollande venceria por pouco, mas dificilmente deixaria de vencer. Conforme previmos por aqui, embora as pesquisas apontassem para uma vitória em torno de 55%, o voto silencioso talvez favorecesse Sarkozy como de fato aconteceu, com o atual presidente francês perdendo apenas em torno 52 a 48.

A vitória apertada de Hollande, é claro, não é nenhuma novidade: Mitterrand, que a exemplo dele derrotou um gaulista pleiteante à reeleição (no caso dele, D'Estaing), também venceu por uma margem bastante parecida - e apesar de em ambos os casos os pleiteantes à reeleição derrotados tenham sido figuras egressas da ala mais liberal do gaulismo (ao contrário de Chirac), as semelhanças param por aí: a política externa de D'Estaing foi profundamente não-aliada aos EUA, com direito a flertes com a União Soviética (com quem sempre manteve boas relações), enquanto isso, Sarkozy foi o primeiro mandatário francês, desde o colaboracionismo, a abrir mão da autonomia em matéria de relações internacionais, se curvando aos EUA e à Alemanha.

E embora maus resultados econômicos tenham ajudado a derrubar D'Estaing e Sarkozy, é preciso entender a conotação diferente com a qual essas degradações foram percebidas, uma vez que há uma inegável transversalidade entre economia e política externa na Europa atual, o que trouxe o centro de gravidade da questão para o segundo campo: a União Europeia e a unidade monetária estão aí com todos os seus problemas e suas problemáticas. 

Isso explica porque em uma eleição na qual a direita levou vantagem durante o 1º turno, mesmo assim, viu o candidato esquerdista vencer no 2º turno sem maiores dificuldades: Hollande foi eleito para confrontar o consenso de Bruxelas que cada vez mais se parece com a ditadura de Berlim; Sarkozy, visto como um covarde nesse sentido, não conseguiu capturar votos preciosos do seu próprio campo político. Fora a vitória a passadas largas de Chirac no 2º turno de 2002, quando uma aberração da natureza - isto é, alta abstenção e um número absurdo de candidatos - colocou Le Pen e não Jospin para disputar a segunda volta, e a de De Gaulle em 58 (talvez a sua vitória confortável em 64, ainda que no 2º turno).

A vitória sobre Sarkozy, no entanto, teve um peso moral muito forte que favorece Hollande e dá forças ao PS para, nas eleições legislativa de daqui a um mês, conseguir reverter a maioria gaulista na Assembleia Nacional. Caso assuma sua agenda, sobretudo no que toca ao enfrentamento do projeto europeu atual, ele atrairá para si, fatalmente, o apoio da base mesmo do oposicionista Front National ou até do enfraquecido gaulismo. 

É perfeitamente natural que se faça referência ao efeito dança das cadeiras quando se analise as eleições francesas, mas é mais complexo do que isso: se onde era governado pela centro-direita passou para a centro-esquerda (e vice-versa), nos aproximamos de um momento culminante, porque cada espectro da política europeia está tendo suas oportunidades de pôr sua política em curso. 

Até agora, as políticas de austeridade de Merkel, ressoadas pelos governos de Passos Coelho e Rajoy - respectivamente em Portugal e Espanha, que trocaram a centro-esquerda pela centro-direita - não tem surtido nem tendem a surtir qualquer efeito sobre a crise. A conveniência da centro-esquerda com esses mecanismos, inclusive, foi causa das quedas dos socialistas na península Ibérica - e também no Reino Unido. O projeto de Hollande, ao contrário, é um significativo não, por parte da social-democracia europeia, ao consenso, ainda que seja muito comportado.

Se a fórmula da austeridade faz a Europa caminhar para a falência do seu sistema político, o que, no momento, seria o mesmo que joga-la na mão da extrema-direita - olhem a nova Constituição húngara, p.ex. -, agora existem novos vetores: a pressão dos movimentos sociais que lotou as praças por toda a Europa e essa cisão na cúpula do poder são exemplos disso. No entanto, para que uma nova esquerda seja constituída, a esquerda que vai às ruas, precisa produzir novos espaços e formas de intervenção à altura de intervir no grande jogo político, enquanto a esquerda parlamentar precisa reconhecer esses atores e, uma vez no governo, intervir na questão do Euro que, está bem claro há algum tempo, é a pedra de toque dessa conversa toda.

O abalo produzido na dinâmica de funcionamento da União Europeia, no entanto, foi relevantíssimo, embora para o pior não acontecer, ainda precisemos de muito. 

terça-feira, 1 de maio de 2012

Dilma e a Dívida Infinita

A Noite, Beckmann
Na véspera do Primeiro de Maio, Dilma Rousseff surgiu na televisão e, a exemplo do ano passado, não deixou de fazer uma declaração eloquente nessa data: atacou os bancos comerciais, criticou as altas taxas de juros que eles praticam - a despeito das quedas na Selic - e fez aquela que, sem dúvida, foi sua fala mais corajosa no ano, ancorada numa popularidade recorde e na implosão de sua oposição. A fala de ontem, comemorada entre apoiadores desanimados, mais do que um gesto de petismo aflorado foi, sem dúvida, um eco do velho trabalhismo de onde a Presidenta é, afinal de contas, egressa: só que não é isso que nos interessa, mas as implicações do gesto de ontem - o primeiro de cunho massivamente público - sobre a economia da dívida.  

Dilma tem um problema dentro do seu projeto: ela precisa de uma ampliação do mercado interno, tanto pela via do aumento de salários e empregos quanto pela ampliação e capilarização do mercado creditício. Sobre o segundo item, é fato que para além de uma taxa Selic alta, os bancos comerciais ainda sustentam altas taxas e estão pouquíssimo preocupados em fomentar o consumo - existem atividades mais seguras e rentáveis como o próprio financiamento da dívida pública. Mesmo que a manutenção da taxa sobre cheque especial, p.ex., não seja compatível com as últimas quedas da Selic, é o valor ainda alto daquela taxa que permite essa morosidade nas quedas, pois torna o mercado de financiamento da dívida pública um centro de gravidade irresistível para os fluxos de crédito.

É fato que Dilma poderia determinar uma nova queda da Selic, a taxa de juros de curto prazo, mas nesse momento, ela precisaria mexer na fórmula de cálculo do reajuste da poupança - o que não seria prudente num ano eleitoral - e, ainda assim, restariam taxas altas para o fomento ao consumo porque elas não se devem unicamente ao valor da Selic, mas à própria desídia dos bancos em concorrerem nesse segmento: é cômodo viver dos títulos da dívida pública, por menor que seja a inadimplência dos consumidores.

Nesse sentido, ela foi inteligente em repetir o gesto de Lula, no auge da crise em 2009 e, assim, usar os bancos estatais para furar esse acordo de cavalheiros entre os bancos privados. Para entender melhor isso, é preciso recapitular ao início do Governo Lula e seu principal feito: ter nacionalizado a dívida pública - até ali conhecida pelo palavrão "dívida externa". Esse foi o verdadeiro giro copernicano de seu governo: reposicionar a principal dívida econômica do Estado e, assim, alterar uma série de relações políticas, sociais e econômicas.

Vejamos, o processo descrito não implicou apenas no "fortalecimento" do Brasil junto à comunidade internacional, mas sim em outro ponto pouco explorado: o sistema bancário brasileiro é recente e atrofiado, se desenvolveu parasitando a hiperinflação - e quando ela acabou, entrou em colapso demandando dinheiro público, na saída privatista que FHC fiou via Proer - e não tinha nada a oferecer para o fomento ao consumo. A abertura do mercado brasileiro a bancos estrangeiros, verificada nos anos 90, não funcionou 

Lula, ao repassar a dívida pública para os bancos lhes deu fundos pela primeira vez na história e, a partir daí, pode estruturar uma política de alavancagem do crédito. O ágio favorável ao mercado financeiro que existe entre a emissão de moeda pelo Estado brasileiro e a remuneração do Estado pelos títulos da dívida é, na verdade, o custo do recém-inaugurado sistema creditício nacional. A manutenção da dívida pública é, na verdade, meio: o Estado paga os bancos, emite dinheiro, faz reserva em moeda estrangeira; os bancos ficam capitalizados e passam, assim, a ter meios para emprestar dinheiro e, por fim, a realizar o valor no capitalismo nacional.

Isso está no mesmo patamar do que foi o New Deal para os EUA ou aquilo que representou a Boa Nova na história do monoteísmo: uma renegociação da dívida infinita, gerando uma alteração da articulação dos modos estruturantes das relações. Mas Lula deixou o processo inacabado: graças à internalização, ele foi obrigado a manter taxas de juros abaixo das de FHC, mas ainda altas - em relação sempre ao tamanho do crescimento do PIB e da inflação projetados - e, por tabela, bancos preguiçosos para emprestar dinheiro - o que só aumenta o custo do crédito para o consumo. 

Dilma não descerá tão cedo a Selic, mas pode baixar as taxas praticadas usando os bancos estatais - Banco do Brasil à frente -, o que força os bancos privados a se moverem - embora o valor da Selic em relação as taxas de crescimento e inflação do Brasil ainda os deixem, não à toa, pouco preocupados em fomentar consumo de pessoas físicas (por mais baixo que seja o risco da primeira atividade, mexer com títulos da dívida pública é igual a risco zero no novo Brasil). É um paliativo funcional, embora no médio prazo a Selic precise cair mesmo, por mais transtornos que mudar a forma de cálculo da poupança possa lhe trazer.

Esse pequeno tour pelo Brasil recente aponta para o seguinte: o que importa, em matéria de Capitalismo, é como se dão as relações ordenadas pela dívida e como aquela designa as relações de sujeição na sociedade, dentro de sua dinâmica conflituosa - uma vez que mais do que os produtores estão alijados dos meios de produção como, também, produção de valor e sua respectiva realização estão separados perpetuamente neste sistema. 


A luta de classes, ainda em curso, não pode ser enxergada de forma desvinculada ao modo como o financismo se articula e a dívida, por sua vez, ocupa uma posição central nas relações humanas: mas a problemática em questão é ambígua, se a apropriação de bens e serviços via dívida prende, em um extremo, os viventes a uma certa escala de servidões, no outro, verificamos que a dívida é ficcional e a posse daquilo que foi adquirido é real. O sistema nunca esteve tão garantido quanto está ameaçado e mesmo que nada vá se operar por si só, o campo está aberto, sobretudo no que toca à reivindicação de um direito à insolvência, talvez o único direito que mereça ser realmente reivindicado pelo seu caráter intrinsecamente anti-jurídico.