sábado, 29 de setembro de 2012

O Triplo-X da Questão, por Lucas Portela



Pollock, novamente
A Trigésima (por extenso, e se verá que isso é um retorno do recalcado) Bienal Internacional de Artes Visuais de São Paulo vem mais uma vez mostrar a situação de bolha especulativa da assim chamada arte contemporânea, ou pós-modernidade. Não por acaso escolheu o tema vago "Iminência das Poéticas" para comemorar seus sessenta anos - algo assim como "ao redor do buraco, tudo é beira". Nem Eminência das Poéticas, sacralizadas, nem Imanência das mesmas, na sujidade cotidiana da vida - Iminência: aquilo que, prestes a acontecer, não acontece jamais. Não se poderia ser mais eleático...


Para-além do problema da preguiça, ausência de real trabalho estético, e caráter especulativo da dita conceptual-art (cheguei mesmo a ver uma parede com um saco plástico de supermercado pendurado, e um chiclete mastigado dentro), a questão talvez seja mais de gigantismo: grandes bienais, como grandes museus (exceção talvez ao Afro-Brasil, ao lado do Pavilhão do Ibirapuera, e graças ao bahiano de Santo Amaro da Purificação, Emanoel Araújo - aliás negro, apesar de carlista), se tornam um não-lugar, vago e disforme. Penso na excelente Bienal de Artes Visuais do Recôncavo, em São Félix: não se trata apenas de sua curadoria ser melhor realizada e previlegiar as formas tradicionais de objetos de arte (cerâmica, mural, pintura, gravura, escultura), uma vez que há também nela instalações. Nem é um evento medíocre de cidade do interior (o Recôncavo é o útero do umbigo do extremo-ocidente, diria Milton Santos). Mas a antiga fábrica de charutos Dannemann se integra perfeitamente não apenas ao cais de São Félix do Paraguaçú e à Ponte Dom Pedro II, mas também à fronteiriça Mui Heróica & Leal Cidade de Cachoeira assim como a cidades mais longínquas da região, Maragogipe, Cruz das Almas, e não se exclua a capital Salvador, que é também, ao menos em parte (e na metade que nos interessa e é cosmopolita) Recôncavo (e quem não o é jamais seria Reconvexa).

Claro que é possível no mar de nulidades especulativas da Bienal de São Paulo encontrar algo digno de nota - por exemplo a sala com obras de Arthur Bispo do Rosário (embora comumente se caia no erro de tomá-lo como um James Joyce das artes plásticas, o que ele não é). E claro também que uma Bienal precisa ter espaço para o erro - estimular obras cretinas ao ponto de serem descartadas, porque é do jogar-fora uma profusão de má idéias que as boas idéias podem surgir - mas não ao limite da autofagia, aliás sintomaticamente paulistana. Tanto mais se comparamos com a parte do acervo do MAC-USP recentemente exposta no Ibirapuera e no antigo prédio do Detran: sob o modernismo, as Bienais foram mais capazes de gerar obras, se não inteligentes, ao menos corretas, paradigmáticas. Hoje, como está, não é mais. Idem para a (imperdível!) exposição de Lygia Clark no Itaú Cultural: se ali nasce a instalação e a arte conceitual, está longe da banalidade, inclusive porque a exposição permite e incentiva a livre manipulação das obras - e sim, é uma exposição de grande porte, só que muito mais discreta que a propaganda enganosa que é, por exemplo, Caravaggio no MASP.

E sobre a Trigésima (por extenso), vai aqui a explicação de trás pra frente: das melhores salas expositivas desta Bienal é com as fotos proto-paparazzi e voyeur de Alair Gomes, com seus garotos de Ipanema displicentemente homoeróticos sem saber que estão sendo fotografados enquanto trabalham seus corpos, acrescido de outras fotografias do mesmo autor, explicitamente pornográficas, e realizadas em estúdio. A melhor sala da XXX Bienal é X-rated - da Bienal que, sendo 30º, evita grafar-se em X X X, esse código dos tempos da internet discada e paga para sites de putaria.

*Lucas Portela é editor do excepcional blog o Último Baile dos Guermantes e colaborou conosco em virtude de suas recente viagem para a São Paulo.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Sobre Antropólogos e o Desejo, Psicanalistas e Índios

Pollock
Alguns antropólogos estão para o desejo como os psicanalistas estão para os índios. Ou pelo menos é isso que eu sinto quando me deparo com análises como esta de Eduardo Viveiros de Castro, sem o perdão da heresia, lembrando sempre o velho Foucault e seu desgosto por chancelas e honrarias academicistas. De fato, as coisas vão mal, mas o problema, ao meu ver, é outro -- mas não o Outro. Enfim, lemos mais do mesmo daquilo que se tornou usual no discurso da esquerda: o consumo é o problema, ao povo falta educação, a catástrofe está à espreita, tudo isso somado a, finalmente, uma tese original; eis que o problema é o PT, por ser afinal um partido "paulista", junto com a paulistanização à qual ele submete o Brasil.

Pois bem, o início deste post não é questão de fazer aqui um trocadilho espirituoso para demonstrar como alguns antropólogos, assim como os nossos velhos amigos, os técnicos do desejo, perpetuam o status quo de forma parecida pela maneira como se relacionam com o seu objeto -- embora pudesse ser mais do que isso --, qual seja, o homem -- ou dependendo de como se alimente o mito do bom selvagem, o índio -- e o desejo. Nada disso. Não se trata de um jogo de palavras, essa afirmação alude ao choque com um Outro incompreensível, que é, ele mesmo, a causa do problema. 

Se há algo que se pode chamar de essência humana, como bem pontuou Spinoza, isso é o desejo. E, como disseram Deleuze e Guattari, "toda produção desejante já é imediatamente consumo e consumação" [O Anti-Édipo, p. 30 ou p. 23 do original]. O antropólogo que se põe, na prática, tão distante de um Outro, incompreende o desejo tanto quanto o técnico do desejo compreende um índio, alguém sem lugar na máquina antropológica que ele se esmera para manter; é a ilusão de ótica de quem olha do alto de uma torre como se estivesse na praça pública: por que a conveniente separação do Brasil, e que bom que existem aqueles que desejam o autoritarismo (e nós não, estamos imunes, não é mesmo?); há vários brasis, com efeito, dentro do Brasil, mas eles são resultados dos cortes da realidade das lutas reais. O Brasil que deseja o fascismo não é o outro, mas, antes de mais nada, nós mesmos.

Será o PT um partido paulista? Pois bem, os PT's no qual se constitui o PT é sim, por nascimento, mas isso não é tão simples: ele nasce precisamente da brasilidade em toda sua multiplicidade -- paulista, inclusive -- cujo êxodo confluiu na pauliceia e ali se reorganizou em um modo resistente. O problema não é São Paulo, esquecer convenientemente que a condição de paulista não é necessariamente expressão da maioria é esquecer Adoniram: todas as lutas e toda a resistência que acontece no locus paulista; se São Paulo não é nada disso, caímos em um caminho perigoso no qual, de repente, o Leblon não fica mais no Rio ou Belvedere em Belo Horizonte: o problema é São Paulo, o desenvolvimentismo (e seus problemas) vira monopólio de Dilma e do PT (apesar do desenvolvimentismo verde de Marina e de Cornell para Plínio e Serra).

Paulistanizar o Brasil é reacionário? Sim, tornar o Brasil um São Paulo o é. Como torna-lo um Rio idem. Como torna-lo um Nordeste também. Tornar é fazer ser, o que em se tratando de uma partícula em relação a um todo gerará um processo negativo. A paulistanidade não é universalizável, como a cultura carioca também não, logo, teríamos um problema. O que difere do devir. O devir-São Paulo do Brasil -- a multiplicação de mutirões ao som dos demônios da garoa se espalhando pelo Brasil, fazendo rizoma --, ou o devir-Rio do Brasil, pertence a outra ordem de coisas -- como o devir-Brasil de ambos -- um experimentar encontros entre as dobras e redobras, uma troca de trocas intensidades. Mas sequer é paulistanizar o Brasil que o PT pretende: é mais o Rio atual, enquanto metrópole, que o governo Lula-Dilma traçam, de forma criticável, como modelo para o país. É o tornar-se Rio do Brasil o problema. Em São Paulo, o petismo é mais estrangeiro do que um índio do xingu.

Certamente, não seremos felizes no e pelo Capitalismo. Estejamos certos disso. Mas tampouco o Capitalismo "depende do crescimento contínuo", do contrário, não haveria crises cíclicas: o capitalismo varia em função do controle dos meios de produção como meio de, em último caso, capturar a vida. Se for preciso, ele promove a destruição criativa que precisar para garantir esse controle, ele cria crises para se recapitalizar -- e isso é parte do que vemos. A causa da crise atual é a própria sanha do capital que tomou de assalto os cofres públicos para recapitalizar os bancos. Não foi uma medida de crescimento contínuo, mas certamente foi capitalista. Se o Capitalismo fosse um sistema depende do crescimento contínuo, tudo seria apenas um modo de deduzirmos desse crescimento suas benesses exatamente como o projeto desenvolvimentista tenta fazer...

A saída parece tanto menos crescer mais ou menos. É escapar da métrica. É tirar a imensidão da produção da metáfora, é torna-la exceção às leis da métrica. Nem crescer menos nem crescer menos, fazer algo melhor do que crescer ou diminuir. É preciso vencer a ansiedade com o consumo, que tem sido usualmente a ansiedade dos velhos consumidores, o sentimento de falta da falta do Outro que passou a consumir o básico: essa perspectiva é a da luta de classes ela mesma. 



sábado, 15 de setembro de 2012

Sublime


Café Terraço à noite -- Van Gogh
Buzinas prepotentes, gargalhadas ébrias, violão assanhado. Sonhava durante toda a adolescência em me enraizar nessa dinâmica efervescente, paisagem colorida por todos meus sentidos infantis. Me escondia nas  próprias certezas incertas, à espera de um prazer que só se revelaria inatingível com os dissabores dos anos posteriores.

Depressão? Não sabia que amadurecimento tinha esse nome. Quanto mais fantasias se  tornam fantasiosas, os momentos de alegria viram mais reais. Consigo tocá-los com as mãos, ao recordá-los enquanto deitada no recanto de meu quarto. Sapateiam sobre meu peito, quando corro por cima do concreto paulistano na segunda-feira. Fecham meus olhos, gentilmente, quando  a rotina decide me golpear.


Álbuns velhos...Fotos indesejáveis... Memórias espalhadas pela rua, pelo bairro, pela cidade. Nem tive o trabalho de varrê-las para longe. Brotaram-se  sorrisos, expelindo-as dos meus sonhos durante madrugadas egoístas. Parece que nasci para  vê-las  morrerem. Quão sublime se tornaram os dias singelos. Conversas sobre livros favoritos, poemas, histórias de infância, amarguinho de café, lágrimas delicadas, almoços em um quilo, Yakisobas da liberdade, melodias esfuziantes, trilhas na Paulista, expedições no centro, cinemas de rua, pequenas grandes  vitórias, grandes pequenos fracassos.


Finalmente, a vista daquele mar de edifícios art decó desnudou sua beleza mediante meus olhos tímidos. A saudade de um passado inexistente foi substituída pela melancolia, devido à possibilidade do futuro desvirtuar o presente. Saudades de um presente concreto, digno  de um tema para um romance de Clarice Lispector. Deficiente, se comparado com uma idealização vitoriana sobre a vida.  A fumaça , abraçada com uma névoa tênue, embala a cidade ao anoitecer. Escura, gelada... Incomoda. Mas só o faz por que se pode senti-la. Faz o menino vestir o moletom ao retornar da escola, louco para assistir ao desenho de final da tarde enquanto janta, a contragosto da mãe. Faz o casal urbano relembrar, por algumas horas,  que amam mais um ao outro do que o trabalho.


Sentir, tocar, acariciar, cantar, rir, chorar, soluçar, suspirar, berrar, correr, beijar,  brigar, estudar, trabalhar, escrever, recitar...


Respirar o imperfeito... Perfeito.
Isabella Martinho Eid

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Em Defesa do Lulismo, Contra Russomanno

Embora tenha caído ligeiramente na última pesquisa Datafolha, se existe alguma novidade nesta corrida eleitoral paulistana, ela é Celso Russomanno, o ainda (e controverso) líder das intenções de voto do presente pleito. É uma novidade, mas digamos que não seja exatamente uma boa nova -- porque é fato novo, com personagens velhos, mas certamente não se trata de algo "bom". Russomanno rrata-se, sem dúvida, de uma figura peculiar que tem circulado nas últimas décadas por lugares tão curiosos quanto os bastidores do Palácio dos Bandeirantes na era Maluf -- onde logo depois de entrar, caiu nas graças do ex-governador e de aliados diletos seus --, a assessoria ocasional de Aureliano Chaves -- o vice do nosso último ditador-general, João Bapitsta Figueiredo --, programas de TV popularescos, o PSDB e, agora, o partido da Igreja Universal do Reino de Deus, o pequeno PRB -- se separando e reatando com o malufismo por diversas vezes no período.

Russomanno recebeu boas votações para os cargos que ocupou no Legislativo, nos quais teve atuação obscura e questionável -- a exemplo do que acontece com boa parte das minority celebrities brasileiras que se aventuram na política.  Apresenta-lo como telecandidato da fé, como fez a revista Piauí, em um bom perfil, não é incorreto, ainda que ele se trate de um fenômeno um tanto mais complexo do que isso: Russomanno vai de IURD hoje, à sombra do Lulismo -- com o qual ele se encontra, ironicamente, em uma batalha frontal --, de Maluf para além de Maluf -- o que é mais irônico ainda, uma vez que a maior polêmica do pleito atual foi a aliança entre PT e o PP malufista, mas é fato que a tradição malufista está em (e com) Russomanno, embora ele esteja rompido com o próprio em pessoa -- além de surfar em uma popularidade televisiva que está ancorada menos em tele-evangelismo e mais em programas policialescos -- como o Aqui-Agora -- ou em outros, poucos comportados, como o circuito night and day.

Dizer que se trata de uma candidatura de direita é uma obviedade, mas é curioso anotar como ele esteve com todos e com ninguém nos últimos anos -- algo que só é possível para quem é agudamente convicto de seu programa político, no caso, conservador --, passando por Maluf, o Tucanato e a base aliada do Lulismo. Depois de anos na berlinda, esperando quem sabe conquistar uma vaga de vice de alguém nesse pleito, Russomanno irrompeu agora: quase como um pequeno gêmeo maligno do Lulismo, ele o parasitou e agora se impõe, cordialmente, sobre suas pretensões. A explicação para isso não tem a ver com fé ou conservadorismo ostensivo: se Russomanno está em primeiro nesse pleito, para além da mídia corporativa e dos movimentos sociais, é porque sua retórica (supostamente) pró-consumidor finalmente atingiu, pelas condições históricas, um patamar de relevância que lhe permite estar onde está. 

A questão é: os pobres, os mesmos que assistiam aos seus programas durante a ditadura e a era FHC, agora consomem, não apenas por disporem de recursos para tanto, mas terem sido autorizado a fazê-lo. E ninguém sabe o que fazer com isso. Quando Russomanno fala em direitos do consumidor, ele se equipara a um gêmeo maligno do Lulismo porque se apropria da questão do consumo -- e do processo de sua expansão que aconteceu no governo de Lula e Haddad, afinal -- e a reduz regime dos direitos e das obrigações (o sistema das servidões); se Lula fez os pobres conseguirem consumir pela declaração de um estado de exceção à Lei mais óbvia e evidente da nossa sociedade, de que cada um deve saber o seu lugar, Russomanno faz o inverso, querendo trazer tudo de volta à regra. Tudo se torna uma questão ideal, a materialidade da questão, sua dimensão substancial e produtiva, é nublada pelo regime de direitos. Como se consumir (e produzir) fosse uma questão de ter um direito a, como se isso não fosse causado (ou cerceado como em FHC) por ações políticas bastante reais.

Nem a esquerda mais tacanha, que reclama do consumo a torto e a direito, realmente quer que os pobres não consumam. A questão dessa esquerda, cuja paixão pelo negativa a cega, não é uma deliberação anti-consumo dos mais pobres, mas uma relação problemática com o consumo no campo do inconsciente, pelo qual o consumir é associado à culpa. Mas nem o mais recalcado esquerdista defende medidas que, na prática, reduziriam o consumo -- embora, por conta disso, eles não saibam o que fazer com os pobres uma vez desejantes --,o que não livra seu discurso de assumir uma forma política desastrada: como dizer para os pobres não consumirem se eles precisam? Como dizer isso, se você mesmo é um consumidor (pois, como anota muito bem Homero Santiago, consumidor é sempre o outro)?  Certamente, isso não agrada muito.

Por outro lado, se Russomanno fala sem parar em consumo há tempos, embora de forma torta, sem perceber que seu público, ele mesmo, não podia consumir -- o que tornava pouco efetiva sua conversa --, é ele um dos maiores inimigos do consumo: foi e a ditadura militar, seus sucessores, ou mesmo o PSDB que tocaram políticas de arrocho cujo efeito, na prática, afastava boa parte dos pobres do consumo.Não resta dúvida que é Russomanno, ao desvincular o consumo da produção e do concreto por meio do argumento juridico, que é o maior inimigo do consumo, muito mais do que um PSOL e seus recalques discursivos em relação ao consumo: a produção é colocada em um plano ideal desvinculado da questão da produção.

Mas é ele, mais do que ninguém, que consegue perceber o momento histórico em que vivemos, que consegue compreender como é falso o antagonismo que a esquerda estabelece entre uma sociedade de direitos e uma sociedade de consumo: como se pudéssemos ser livres sem consumir (o que, afinal, produzimos), como se o direito não fosse ele mesmo escravizador -- e que vivêssemos em uma sociedade com tantos direitos que nos sobram -- e que uma sociedade de direitos implica, ela mesma, em uma sociedade de direito(s) do consumidor (o que não é bom).  O consumo, e o consumo do consumo, só são possíveis pela suspensão do funcionamento regular e da própria sociedade, mas a esquerda brasileira, em grande parte, continua a sonhar com uma sociedade de direitos que, nos termos exatos em que ela sonha, é impossível de se realizar: falamos de uma grande bola quadrada.
 
É besteira, portanto, associar o fenômeno Russomanno ao Lulismo ou à nova classe média como faz, por exemplo, Leonardo Sakamoto. É besteira pelo simples motivo de que, a bem da verdade, essa nova classe média é uma mera ideia, um projeto, nada empiricamente existente -- o que existe é o povão que melhorou de vida, devindo excedente, cuja decisão eleitoral determinou, diga-se de passagem, a derrota dos conservadores no último pleito nacional. É besteira, também, pois antes (ou mesmo) durante o governo Lula, a direita já venceu eleições em São Paulo, todas as vezes disputando contra o próprio PT (como agora), levando ao comando da cidade, inclusive, figuras pífias como Pitta e Kassab -- com os votos da classe média, aliás. É besteira, por fim, na media em que que se existe uma possibilidade de mudar o quadro atual, é o PT pela sua capacidade de se agenciar com esse mesmo povão, essa classe sem nome, ao contrário de, p.ex., o PSOL que corre o risco de não registrar nem 1% dos votos (isso é sério, ou melhor, é verdadeiro).

Se parte da esquerda continua a insistir que o consumo é um problema e que ascensão social no Brasil dos últimos anos é, necessariamente, conservadora, ela não está fazendo outra coisa senão jogar o povão para o colo da direita como ela não cansou de fazer ao longo da recente era democrática. Ela não será ouvida e se for, prejudicará bastante quem ela apoia. Foi precisamente esse pensamento tacanho que causou as três derrotas de Lula para a presidência -- o que se reverteu quando o próprio, em pessoa, parou de ouvir certos setores e, por mais problemática que tenha sido a Carta ao Povo Brasileiro em alguns aspectos, é isso que realmente importa nela. Curiosamente, é Lula, muito mais do que FHC, que está envolvido de corpo e alma na presente campanha eleitoral de Haddad, sendo mentor de uma candidatura em um campo de batalha duríssimo.  Porque o Lulismo -- não o Lula pessoa, ou pessoa política, mas o Lula evento -- apesar de seus problemas todos, foi o primeiro vez em nossa história no qual as coisas saíram (realmente) do lugar e, por isso, ele precisa ser defendido.

Hoje, defender esse Lulismo é (muito) mais defender a candidatura de Fernando Haddad do que racionalizar as políticas gerenciais de Dilma no plano federal -- muito menos fazê-lo acriticamente, como se vê aos borbotões. E não há ameaça maior para o Lulismo do que Russomano, justamente, pela maneira como ele se apropria do que aconteceu no Brasil nos últimos anos -- e tanto menos por ele estar em primeiro. Serra não é uma ameaça menor porque sua rejeição é alta e suas chances de se eleger -- ou mesmo de passar ao segundo turno -- são menores a cada dia, mas porque nenhum governo tucano é capaz de realmente afetar o Lulismo, pois todos eles o atacam de fora: a maior ameaça da Revolução Francesa -- e seu algoz, afinal -- foi a burguesia e não o velho regime, foi aquele que veio de dentro do seio revolucionário e o engoliu, não o que foi derrubado por ele. Nenhum eventual retorno ao absolutismo, como aconteceu em vários momentos no século 19º, foi capaz de deter a afirmação da ordem do capitalista. Do mesmo modo, dizemos que não é o velho PSDB, mas sim o novo-velho Russomanno, por dentro da base aliada, a ameaça real.


O que aconteceu neste país nos últimos anos foi revolucionário. E como toda Revolução, estamos diante sempre dos riscos da termidorização: de tal modo, as lições da França são bastante válidas; se a ignorância disso custou muito caro aos russos, não pode nos custar o mesmo. Não que na História se repita o mesmo, mas os padrões se repetem ainda que com seus desvios-padrão: é preciso escapar à fatalidade das transformações, constituir uma exceção à regra ao destino triste das revoluções, opondo a antropofagia à autofagia, devorar os inimigos em vez de se deixar devorar a si mesmo. Não é questão de nos tornarmos Lula (pessoa ou pessoa-política), mas sim de devir-Lula, o evento Lula, e escapar à sorte triste das revoluções e da nossa vida política.


quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Rainha Morta, Rainha Posta: Marta no Lugar de Ana no MinC

Meme contra Ana de Hollanda, ainda no início de sua gestão (Barbara Szaniecki)
Ontem, Ana de Hollanda foi demitida do Ministério da Cultura (MinC) após uma reunião de meia-hora com a presidenta Dilma Rousseff, sendo substituída pela senadora Marta Suplicy (PT-SP). A escolha de Ana de Hollanda para o Ministério da Cultura, lembremos, foi a primeira grande polêmica de Dilma na Presidência. Não só pelo fato disso ter marcado um recuo e, de certa forma, o desmonte nas políticas inovadoras e libertárias de Gilberto Gil e Juca Ferreira no MinC como, também, pela própria torpeza da ocupante do cargo, uma irmã obscura, e com pouquíssimo traquejo político, do antológico cantor e compositor Chico Buarque. 

Muito do que diz respeito à continuação descontinuada de Dilma em relação a Lula, sobretudo tudo no que toca ao giro Ordem & Progresso, é, não raro, ignorado ou relativizado pela competência dos ocupantes dos ministérios, o que não acontecia no caso de Ana: politicamente indefensável e odiada pelos militantes e especialistas da área de sua pasta, ela foi uma bola fora sob qualquer ponto de vista. Foi sob a gestão de Ana que o MinC deixou de usar a licença creative commons no seu site -- um belo simbolismo no que toca à capitulação ao lobby dos direitos autorais --, que voltou a rufar os tambores para o mito da "classe artística" -- em detrimento de pensar a produção cultural como multitudinária e plebeia -- além de manter sem ânimo e (quase) por inércia os programas da gestão anterior.

Poderíamos começar especulando o motivo que levou Ana a cair, mas seria melhor questionar, antes de mais nada, por que diabos ela não caiu antes. Não caiu porque Dilma teve problemas em ministérios demais em tempo de menos -- pois, paradoxalmente, se quase não há mais oposição neste país, também não parece haver mais do que alguns elétrons livres na chamada base governista -- e porque, no limite, o projeto de Ana não destoava do giro promovido pela própria Dilma em outras áreas. Depois, ela caiu porque roeu a corda, rompeu com aliados pesados seus como Antônio Grassi -- seu fiador junto ao lobby da "classe artística" no Rio de Janeiro -- e teve uma carta sua para a ministra do planejamento, Miriam Belchior, na qual fazia duras críticas ao "estado da cultura" no país -- isto é, o valor insatisfatório da verba da pasta --  repercutida pelo jornal O Globo.

Se Dilma sabia que, no fundo, só era ela mesma a segurar a ministra no cargo, por outro, imaginava que ela viesse a ter qualquer tipo de gratidão profunda por isso. A carta n'O Globo foi o fim da linha, como fica claro na declaração oficial de apaziguamento em meio à polêmica, tornando Ana uma ministra sacrificável no jogo político. Sua queda, contudo, talvez tenha sido adiantada pelas tensões relativas à disputa pela prefeitura paulistana, onde a tentativa de costurar apoio de Marta Suplicy à candidatura de Fernando Haddad, dentro do próprio PT, parecia impossível, tornando o oferecimento do MinC para a senadora -- a exemplo do que já tinha sido feito com Aloísio Mercadante e o Ministério da Educação -- uma possibilidade selar a união do partido da estrela. Foi o que aconteceu. A entrada "para valer" de Marta numa campanha na qual ela relutou até o último momento se deu junto de sua entrada no MinC.

Certamente, a entrada de Marta no cargo marca, por si só, a possibilidade de uma melhora na pasta, o que não quer dizer muito, mas não é de um todo ruim. Mas Marta não é da área e resta saber que direcionamento ela vai dar. Sua gestão na prefeitura de São Paulo (2001-04) foi marcada por iniciativas ousadas na forma de projetos que ela bancou -- embora nem sempre tenham sido de sua lavra pessoal, como os CEU's, criação do ora candidato Fernando Haddad -- e, por outro lado, aproximações com o mercado e a iniciativa privada, sobretudo no que diz respeito à área de moradia e urbanismo, cujos resultados práticos foram ruins. No entanto, Marta certamente foi melhor prefeita do que líder partidária. Fica o detalhe para a completa incógnita de Marta no MinC, uma vez que alheia à área da pasta, ela será o que os assessores que ela escolher -- possivelmente segundo o que partido orientar -- forem. Fora do eterno confronto Bahia x Rio na Cultura, Marta pode ser tudo e nada. 

Essa articulação sela a paz no PT -- pelo menos até o ponto que demanda a presente eleição municipal paulistana -- em momento no qual Haddad cresce, possivelmente ultrapassa José Serra, mas precisa adquirir mais massa crítica para tirar de Celso Russomano um eleitorado que é petista, votaria em Marta, mas não está com ele agora -- embora a classe média e os mais jovens venham se aproximando de Haddad de um modo que não se aproximariam de uma nova candidatura Marta (como foi, aliás, nos pleitos de 2004 e 2008). Interessante notar pelo menos dois coisas: como a candidatura Haddad forçou o PT paulistano à esquerda,  obrigando Dilma a compensar forças conservadoras, e em certa medida personalistas, com espaços no plano nacional -- Marta no MinC, Mercadante no MEC, Tatto na liderança do PT na Câmara -- e, é claro, o descompasso e a falta de diálogo de Dilma com os ativistas da área de Cultura, muitos dos quais seus fiés apoiadores em 2010; Ana de Hollanda terminou caindo por motivos diversos e até estranhos ao debate travado ao longo dos últimos vinte meses...




quinta-feira, 6 de setembro de 2012

A Ascensão Selvagem da Classe sem Nome

Antropofagia de Barbara Szaniecki sobre a obra de Tarsila -- (Uninômade + 10)

Íntegra da minha fala no colóquio a Ascensão Selvagem da Classe sem Nome -- da série Brasil Menor, Brasil Vivo! --, cujo tema da minha fala acabou incorporado como título da minha fala. Passo um pouquinho por temas comuns a'O Descurvo e acrescento mais alguns itens e polêmicas.


A ASCENSÃO SELVAGEM DA CLASSE SEM NOME -- (ou subtítulo subdeleuziano de Tatu or not Tatu)*
POR HUGO ALBUQUERQUE


PALAVRAS-CHAVE: 1.Ontologia. 2.Filosofia Política. 3. Antropologia 3.Spinoza. 4.Marx


RESUMO: O presente artigo se presta a lançar novas questões, partindo de um exame da função do Nome para o exercício do poder pela máquina teológico-política, em relação às polêmicas que pairam sobre as transformações sociais, e antropológicas, do Brasil, ocorridas ao longo da última década -- sobretudo naquilo que concerne ao advento da monstruosa nova classe e a questão do consumo.

Uma classe sem nome ascende, de modo selvagem, deixando o debate político brasileiro em chamas. E dizemos que ela é sem nome justamente por ter tantos, por haver tanta insistência no fato de que ela precisa ter um: classe c, nova classe média, subproletariado, consumitariado, proletariado endinheirado, batalhadores e tantos outros possíveis e imagináveis. Mas ela assume a todos e, assim, os recusa plenamente, pondo em sobrecarga a máquina paranoica de identificação. E dizemos que esta classe ascende de modo selvagem no sentido antagônico a civilizado em sua acepção moderna: se o moderno nos diz, à moda de Kant, que devemos agir, apenas e tão somente, reproduzindo condutas que possam ser universalizáveis na convivência, no Brasil, isto se cristalizou no seguinte mandamento: aja sabendo qual o seu lugar.

Se mesmo os universais, enquanto abstrações ideais, ganham sempre um modo prático, é precisamente este o que a materialidade das relações sociais lhe deu por aqui: saber onde fica a Senzala e a Casa Grande e ter em mente, de forma clara, a qual desses dois mundos (afinal, são apenas dimensões do mesmo), você pertence. A classe sem nome ascende, pois, pela suspensão dessa lei universal, demonstrando que o rei está nu, que a lei gira no vazio -- já que uma vez criação humana, ela pode ser suspensa pelo desejo, pela vontade de potência: ela faz tumulto, indo para espaços que não são seus por direito [mas passam a ser de fato]; se ela orkutizou o Orkut, agora, ela orkutiza a vida, os aeroportos e o próprio Facebook.

O fato dessa classe ter tanto nomes e, no fim das contas, não ter nenhum, alude ao ponto-chave desta conversa: a importância do nome como forma de controle e domínio, uma vez que só pode ser submetido a uma ordem aquilo que, antes de mais nada, tem um nome próprio que permita a boca que ordena circunscrever, previamente, sua capacidade de agir -- e, acrescentamos, só não sucumbe à máquina paranoica de identificação aquilo que detém uma potência imensa e é capaz de a efetuar; e por imenso entendemos, à moda de Spinoza, não aquilo que é muito grande [sentido metafórico], mas aquilo que escapa à regra das leis da métrica [sentido literal]; o imenso é uma exceção à medida, é aquilo que não é sintetizável pela máquina de medir (que é a mesma de identificar, afinal), o que, neste presente debate, se expressa como uma exceção à lei universal da identificação, declarada pela virtuosidade do devir de uma classe. Trata-se de uma exceção, no campo social, como é o movimento Anonymous na Internet.    

O esforço científico, objetivo e [supostamente] desinteressado no que toca à atribuição de um nome à essa classe se refere à necessidade de dar estatuto que permita, à maquina paranoica do poder, reduzir sua capacidade de ação real a uma capacidade de ação devida -- e se a classe sem nome diz hoje que “bem, realmente não devemos, mas podemos”, espera-se que, assim, ela faça o inverso no porvir "até podemos, mas não devemos", restando castrada e obediente como antes. O processo em questão é vendido ideologicamente como boa ciência, sob a chancela sempre conveniente da hermenêutica -- não se atribuiria nada, não haveria criação de rótulos, mas apenas estaríamos a descrever a realidade tal como ela é, estaríamos desvelando-a. Trata-se, com efeito, de mais uma ilusão do transcendente.

Não que não possamos, nem deixemos, de nos referir a um nome quando precisemos enunciar um processo -- mesmo quando consideramos que se trata de uma classe sem nome, estamos a fazê-lo de certa forma --, mas é preciso trazer isso para o plano da imanência: se o moderno é uma junção dos pensamentos helênico, romano e hebraico na forma da teologia-política, é verdade que há um hebraísmo importantíssimo nessa equação: Deus não tem, nem pode ter, nome, mas é ele quem atribui todos os nomes, iniciando uma escala hierárquica de nomeações; do mesmo modo que é sempre o pai que nomeia os filhos, portanto, o Pai Primeiro não poderia ter nome algum (não por um critério lógico, mas por tradição); eis aí o mitologema definitivo do exercício do poder no ocidente moderno, isto é, a vedação de nomear o Deus-Pai que, ao mesmo tempo é quem nomeia a todos.

O Estado, máquina teológico-política definitiva, dá ordens, e, no limite, existe uma palavra definitiva vinda dele que não é passível de controle, pois há uma ordem primeira [inquestionável] que sustenta o vazio de uma decisão; a máquina teológico-política é ordenante mas também inordenável -- portanto, e antes de mais nada, nominante e inominável. É o inominável do nominante o vínculo secreto e perverso entre a norma hipotética fundamental de Kelsen e a decisão final de Schmitt -- e é ele contra quem precisamos nos voltar; a classe sem nome o é uma vez selvagem e recusa nomes, mas se o tiver (nem que seja anônima), este não é o problema, a questão é que aquilo que tem necessidade de nomeá-la precisa vir à tona.  

Quem dá um giro copernicano nesse sentido foi, novamente, o judeu Spinoza ao postular o anátema Deus ou Natureza: ele atribuiu um nome ao inominável e assim afirmou a imanência. Não há mais mistério, há problema. Uma vez tendo nome por uma heresia que vem novamente tirar o monopólio do fogo do Sagrado -- e das variadas vestes que ele pode assumir -- não há uma suprema irresponsabilidade e, por isso, Spinoza é adversário tanto do esclarecimento quanto do obscurantismo ao mesmo tempo -- o velho polidor de lentes sabia que não é só o exagero de sombras que nos cega, mas também a demasia de luzes. Por isso, sob a ótica da filosofia derivada dessa iconoclastia, não precisamos cair em um vazio de anonimatos, em um sentido niilista; ao contrário, o anonimato é ele mesmo meio resistente, uma força da natureza enquanto derivação de uma potência imensa.

A tarefa que precisamos levar a cabo, contudo, é maior e positiva, pois implica em nomear o próprio mecanismo de nomear e, assim, descontrolarmos o próprio controle -- como no direito à insolvência negriano pelo qual causaríamos a própria obrigação de desobrigar; nada de desligar o dispositivo, mas de constituir uma alternativa a ele, enunciando o processo de exploração da forma como outro judeu, Karl Marx fez, ao ousar dizer a palavra proibida: Capitalismo. Nem por isso, precisamos ter ansiedade de dizer um nome, construir um conceito estanque, um nome, não é esse, ao meu pensar, o nosso papel porque, pelos motivos expostos, não se trataria de uma tarefa libertadora, positiva, mas de uma forma tirânica, dispositiva. Enquanto o paranoico exige os nossos nomes, respondamos: meu nome é multidão, mas tu tens nome também.

É claro que não será o nosso esforço, voluntário ou não, que fará a classe sem nome assumir algum rótulo. É sua potência imensa que decreta sua não sujeição ao regime do nome, é o imenso que determina sua capacidade única de produzir diferença: como a multidão, o tumulto ou a legião, se faz parte delas sendo eu e todo mundo ao mesmo tempo; nesses casos, o poder é capaz de recortar o evento, mas sua força de individuar seus fatores capitula à potência daqueles em produzir diferença enquanto partícipes dele -- e, ao nosso, ver, ele individua vetando a diferença ou reduzindo-a à regra do semelhante pelo mecanismo da autorização; quando ocorre esse escape dessa lei, quando sua eficácia é frustrada, como no caso em questão, é a diferença em si mesma se afirmando.

Portanto, a classe sem nome possui também um paralelismo histórico com os sans culottes: a ausência de culotes daqueles revolucionários franceses era a metonímia para sua ausência de estatuto social, a monstruosidade de não pertencerem exatamente a nada tanto no Velho Regime quanto no (ainda nascente) Novo Regime -- moderno e burguês --, o que os tornava potência revolucionária par excellence; e ambos são “sem” alguma coisa enquanto ausentes, mas ausente como diria Drummond em alguns de seus mais belos versos -- que, aliás, servem de epitáfio ao mestre Guattari --, não há falta na ausência, a ausência é um estar em mim. A intensidade de não ter nome, de não ter aquilo que é essencial ao poder, é, no entanto, algo mais profundo. É sem no sentido de estar em mim ou, aqui, de estar em si, livre de assujeitamentos, que estamos tratando.      

Para além da ontologia -- ou melhor, de uma filosofia primeira -- é preciso pensar pela política, que a precede histórica e logicamente: poderíamos dissertar à moda dos estatísticos, baseados em proposições molares -- ou molarizantes -- para demonstrar que o nível de emprego aumentou, o salário mínimo e a renda média do trabalhador idem -- assim como a proporção da renda do trabalho na renda nacional --, que o Índice de Gini caiu acentuadamente -- em um momento histórico no qual a tendência é precisamente inversa -- assim como cresceu o acesso aos ganhos não-laborais por parte dos mais pobres, graças a programas como o Bolsa Família e os Pontos de Cultura. Mas nossa direção é outra. Todas essas mudanças poderiam, até em caráter mais radical,  ter sido perfeitamente operadas dentro de uma rigidez e uma imobilidade simbólica: com cada um no seu lugar, marchando para a frente, mas é fato que nos anos Lula isso se deu dentro de um discurso que autorizava o pobre a desejar -- é isso que está em jogo aqui, trata-se de uma preocupação com as colateralidades moleculares do processo. O discurso da Ordem e do Progresso e, depois, da esperança -- “do Brasil, o País do Futuro” -- caiu por terra pelo menos naquele instante, uma vez que poderíamos experimentar isto aqui-agora (embora ainda poluída pelo negativo de um certo esperançantismo, que reemergiu em Dilma).

É justamente por algo ter acontecido (e ainda, de certa forma, acontecer) que criticamos o governo Dilma, pois se Lula era muita coisa -- e dentre elas, Dilma também --, Dilma é ela própria e nada mais. Seu objetivo é permitir, por meio da modernização, a continuidade do processo: que o tumulto se torne missa civil, ordenada e pacífica, com a classe sem nome destinada a tornar-se “classe média”, consolidando o “país de classe média”. Análises que dizem que Dilma, ou o Governo, desejam que o índio vire pobre, quando o correto seria o pobre virar índio, mais do que desconsiderar a potência da pobreza e confundir virar com devir -- como pontua muito bem Bruno Cava em “Devir-pobre, devir-índio”, post de seu blog, Quadrado dos Loucos  -- é ignorar o que o governo Dilma planeja: traduzir, de alguma forma, o imenso em mensurável e atribuir-lhe um rótulo, gerando, assim, um estatuto social (bastante tradicional, aliás), instituir o respectivo dispositivo; isso vale para a classe sem nome e para os índios. O projeto modernista em voga não quer índios ou pobres, ele quer, porque precisa, traduzir-lhes em classe média o que implica no seu sujeitamento ao regime de normalidade normalizante social -- e, nesse sentido, ele precisa instituir um regime que faça com que nos tornemos o que devemos ser segundo a Lei do progresso e do futuro.   

Aliás, quando dizemos classe sem nome, não nos referimos imediatamente à pobreza, embora sejam dois processos que andem lado a lado. Do mesmo modo que os sans-culottes não eram o mesmo que os artesões e camponeses franceses do final do século 18º, embora houvesse uma (óbvia) relação evidente entre eles; a classe sem nome é o próprio devir-excedente dos pobres -- incluso aí os proletarizados e os que escapam a isso -- e é ela quem tem afirmado no plano político -- eleitoral ou extra-eleitoral --, na cultura e em outras instâncias o clamor por uma alternativa ao Brasil tradicional e à regra da classe média -- seja do sujeito de classe média existente agora ou ao proje(c)to de nova classe média mirado por Dilma (e, também, de uma maneira ou outra, também pelos seus adversários, sejam liberais ou socialistas) . A classe sem nome, portanto, é um monstro como aqueles que se perfilam no claro-escuro do entretempo entre o velho mundo que morre e o novo que tarda a nascer -- para citar aqui Gramsci lembrado por Bruno Cava. Enquanto monstro, essa classe é ambivalente, mas tal ambivalência se desfaz no fato de que, no fundo, ela, como qualquer monstro, apenas deseja ser amada, embora suas feições assustadoras não ajudem muito na empreitada: e o que vemos, hoje, no Brasil senão uma perseguição fantástica com tochas e arados contra essa classe sem nome, esse monstro feito dos retalhos possíveis -- e como o PT, ele mesmo, se comporta como um Dr. Frankenstein extemporâneo (mas igualmente neurotizado), em desespero por ter autorizado essa criatura a desejar, quando poderia ter lhe dado uma vida meramente vegetativa, se era o caso de fazê-la viva.

Parte da esquerda brasileira, sobretudo aquela que flerta com variadas formas da ontologia negativa, está preocupada -- a exemplo do filósofo uspiano Vladmir Safatle -- em denunciar o monstro criado pelo Lulismo; afinal, aquilo que o Lulismo fez desejar contrariou as regras postas, as determinações eternas, o estatuto do controle do desejo tal como compreendido, mas também as regras que a esquerda brasileira estipulou para fazer a revolução; sua existência desejante-- e mais do que isso, seu devir-desejante -- contraria o estatuto da dialética Casa Grande/Senzala. Se seu próprio criador, a julgar pelos eventos recentes não sabe exatamente o que fazer com ele, imaginemos os outros, os sábios, os técnicos do desejo, os burocratas encastelados, os arautos da velha ordem e aqueles que sonham em caiar o Leviatã de Vermelho (ou quem sabe de Verde, para ser mais usual). Mas esse monstro existe e resiste e está exposto a quem estiver disposto a ir até ele, ama-lo -- do mesmo modo que é capaz de confrontar muito bem, se provocado. O problema não está no fato de que o monstro não resista, ao contrário, é a própria intelectualidade de esquerda que prefere desistir, que são desistentes em contraste com a resistência própria ao monstro. Mas não há vácuo na política. Se muitos candidatos evangélicos estão bem cotados nas pesquisas eleitorais para as eleições municipais deste ano, a exemplo da boa votação que eles já tiveram para a Câmara dos Deputados Federais em 2010, é porque, antes de serem evangélicos, eles vão ao monstro, mesmo que seja para seduzi-lo.

Não à toa, o esquerdismo brasileiro atual, mesmo com os defeitos do PT, não consegue se impor, seja fora das urnas ou, especialmente, dentro delas. Há uma dificuldade de compreensão, por parte desses setores, de que é preciso se agenciar com esses pobres, com esses pobres que devêm-excedente, que suplantam hierarquias; não basta ser meramente simpática a eles, mas sim criar algum tipo de vínculo empático -- que lhe permita se colocar na posição daqueles pelos quais essa esquerda, suposta ou realmente, advoga; é uma tarefa que demanda, antes de mais nada, saber que a posição dos pobres não é a dela, esquerda bem nutrida e educada, certamente muito mais confortável. Se falar em nome dos outros é uma das piores indignidades possíveis, como nos ensinou Michel Foucault, isso só é possível se, previamente, o monstro tiver um nome. Aí, voltamos ao ponto anterior e fundamental: é preciso embarcar no devir social anônimo dessa classe, nessa excedência e nesse estado de exceção à regra social brasileira -- coisa que a (extrema) esquerda brasileira, sempre a espera da catástrofe, não fará, pois aí, imagina ela, esses pobres estarão famintos demais para serem “enganados” e seguirão, enfim, o messias da revolução. Como se a solução para a Casa Grande/Senzala fosse um furacão [fabuloso, transcendente] que destruísse ambas as edificações, deixando todos nós desprotegidos.

Tampouco deseja a direita brasileira excluir quem quer que seja do processo. O regime capitalista cognitivo não admite mais exclusões absolutas, não há lado de fora, uma vez que estamos sob a regra da subsunção real e, para completar, a nossa direita sempre foi vanguarda na retaguarda; por exemplo, ninguém nunca se esforçou tanto em colocar os pobres e os negros nas universidades públicas brasileiras quanto os nossos conservadores, mas sempre em uma condição de inferioridade: é claro, antes disso, é preciso construir uma repartição das funções dentro da Universidade, o estudante estuda, o professor professa e o funcionário funciona [como uma pecinha de uma engrenagem] -- isto não mudou com Lula ou com Dilma, mas aqueles cujo destino era uma designação de trabalhar como funcionário mudou. Não é que a Casa Grande/Senzala tenha desaparecido, mas as coisas saíram do lugar, ainda mais agora com as cotas de 50% na educação superior federal. Mas a direita, além de criar essa repartição, garantia a rigidez em que iria fazer o quê, o que implica desde as cotas [de facto] para as nossas elites estudarem  na Universidade Estatal até o destino de pobres e negros serem apenas funcionários.

Essa direita, é claro, hoje toma vestes modernistas -- o que não é raro na nossa História, basta ver o Positivismo -- a exemplo do modernismo no qual se investiu a própria esquerda petista. Mas a nova direita brasileira -- não a velha direita que vivia à base do clientelismo, do coronelismo e do antipetismo franco, mas sim aquela que vive de gerentes, do softpower e da fagocitose “por dentro” do petismo -- está perfeitamente pronta a capturar esse monstro e usa-lo a seu favor, como uma mula de carga. Até porque a direita é bem resolvida em sua paranoia -- ironicamente, como bem observa Giuseppe Cocco no seu MundoBraz, o futuro [ou o futurismo] do Brasil mira o passado [glorioso?] da Europa (do mundo maior e grandioso do primeiro mundo), continente cujo presente, entretanto, se parece mais conosco do que gostaríamos; enquanto miramos neles, eles miram em nós, parecendo-se cada vez mais com o Brasil, em um movimento no qual os dois fantasmas estão prestes a se abraçar no tornar-se Mundo do Brasil e no tornar-se Brasil do Mundo; o que difere, por óbvio, do devir-Brasil do Mundo e do devir-Mundo do Brasil; não é à toa que nos parecemos, morbidamente, com a França de 1965, tão bem descrita por Guattari e outros na elaboração de As Nove Teses da Oposição de Esquerda: estamos repartidos entre uma direita arcaica, uma grande geleia modernizante e uma esquerda catastrofista.

Pior ainda, é que a negatividade desse tornar-se entrecruzado entre Brasil e Mundo emerge na própria questão da economia da dívida, que se afirma no Brasil contemporâneo: o sistema financeiro brasileiro foi tornado mundial nos anos 90, com a abertura aos bancos estrangeiros, movimento que é acompanhado da dívida pública antes externa (mundial) ter sido tornado interna (brasileira). Devemos agora para os bancos brasileiros tornados, em grande medida, mundiais ou abertos a esse capital no próprio âmbito interno do sistema financeiro. E é da economia da dívida, com a capilarização e expansão do mercado creditício que o projeto modernizante visa a construção de sua missa civil, sempre com os olhos no futuro: Para aliviar as pressões inflacionárias -- a própria reação no campo econômico dos proprietários de meios de produção pressionados pelos ganhos salariais --, pode-se prescindir do crescimento dos salários pela abertura da torneira do crédito, gerar um novo mercado capitalista -- desta vez, financeiro de microcircuitos -- e ainda gerar controle social ímpar: eu tenho dinheiro para pagar porque, do contrário, não me emprestariam, mas não tenho o tempo nos termos que eu preciso; devo, tenho de pagar, trabalho como eles querem que eu trabalhe.


O homem endividado do novo Brasil, a exemplo do futuro que miramos -- isto é, a vida nos países ricos -- tem o crédito como suplemento para ganhos salariais insuficientes e, não raro, pode se endividar não porque tem bens e um trabalho que garantam; ao contrário, ele é antes endividado para que procure emprego para pagar o que deve. O regime da dívida, aquele mesmo que tornou, nos EUA, o cowboy de cabelos loiros e esvoaçantes que mirava o Oeste em sua fuga em Homer Simpson -- o perfeito homem sedentarizado -- se anuncia no horizonte; não tanto porque Dilma seja exatamente uma Thatcher, uma paranoica disposta a salvar o capital britânico de sindicatos incômodos -- embora incapazes de fazer uma revolução --,  seu objetivo é salvar o trabalho apenas como tal -- um trabalhismo, o que implica em salvar, pela outra ponta, o capital, do mesmo modo que o trabalho não acaba com Thatcher, embora tenha mudado consideravelmente.


A dívida é, aqui-agora, o mecanismo mais perigoso de captura para o permanente escape da classe sem nome porque desfaz, precisamente, o aqui-agora remetendo a classe sem nome para o futuro.  O imperativo do saber o seu lugar, pode voltar em outra forma, de forma não mais estamental e sim financeiro; a máquina de identificação, essencial ao Capitalismo e ao Estado poderia, assim, voltar a emergir promovendo, desta vez, a necessária destruição criativa para a manutenção do capitalismo. A potência transformadora que há em nosso meio é essa classe sem nome, devir-excedente do pobre, mas sua própria estrutura monstruosa faz com que tenhamos uma situação muito complexa, ainda mais com as limitações óbvia dos meios de organização clássicos da esquerda brasileira -- que preferem perseguir com tochas e arados o que não entende, a entendê-lo. É, contudo, o amor  -- força cósmica e revolucionária -- que reaparece novamente enquanto elemento central para a constituição dos agenciamentos e trocas que a virada que precisamos demanda: é o amor aquilo que pode produzir a aliança entre o monstro e o nômade, carnavalizando, assim, este tumulto, fazendo multidão.  


Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, 06 de Setembro de 2012


*um agradecimento especial ao meu amigo Bruno Cava e ao grande Giuseppe Cocco pelo convite e pela hospitalidade, a todo o pessoal da Rede Universidade Nômade, aos amigos presentes no evento e a Isabella e sua família pelo companheirismo e inspiração. 



terça-feira, 4 de setembro de 2012

Colóquio na Casa Rui, Tatu or not Tatu

Pessoal, na quinta desta semana, pela tarde, estarei na Casa de Rui Barbosa, no Rio, participando de um colóquio da série "Brasil Menor, Brasil Vivo!"  -- a Ascensão Selvagem da Classe sem Nome, Tatu or not Tatu. Além dos sempre atentos Bruno Cava e Murilo Duarte que sempre seguimos por aqui, estarei com a gente boa da Rede Universidade Nômade. Integrarei mesa com mestre Giuseppe Cocco, Homero Santiago e Alexandre Mendes. Quem estiver pelo Rio, apareça -- a minha fala, eu solto por aqui mesmo na quinta pela noite.


 

domingo, 2 de setembro de 2012

O Monstro e o Estado da Arte do Governo Dilma

Frankenstein, 1931
Não há Monstro que não seja ambivalente, mas não há nenhum que não queira apenas ser amado*. E há muitos eventos monstruosos em curso no Brasil de hoje; um deles é o da própria alteração correlação de forças sociais, alvo de muitas análises e ainda de muita incerteza -- o que vai para além de dados "objetivos", embora eles estejam lá: nos últimos doze meses, em plena crise mundiala desigualdade caiu e a renda familiar subiu no Brasil --; o outro é o da própria definição do projeto petista, ora no poder, de assumir-se como uma força progresso-modernista disposta a resolver as muitas dobras por via gerencial.

Certamente, esse não é um debate à luz (ou sob a sombra) das variadas ciências da população, não precisamos cair no mesmo objetivismo do governo atual, discutindo se essas mudanças ocorreram ou não, ou qual a qualidade deles por um paradigma molar: sim, porque o nível de emprego subiu nos últimos nove anos, a renda do trabalho cresceu -- em volume e em proporção --, a desigualdade social caiu -- em um período no qual a tendência mundial é inversa, o que embora agravado pela presente crise, mas é constante perversa desde o fim do socialismo -- assim como o número de miseráveis caiu absurdamente. Pois bem, não é por esse viés que estamos olhando, embora pudesse sê-lo. A questão é outra, e nós preferimos enxerga-la sob a ótica molecular.

Se nada disso tivesse acontecido, não estaríamos falando do governo Dilma que é, ele mesmo, um esforço grandioso de transformar o tumulto da ascensão da plebe em uma missa civil. Sem tumulto, o esforço para converter essa multidão em uma "classe média" não existiria, por que faltaria sua causa. Hoje, o Brasil se parece em termos gerais com a França do início dos anos 60, aquela descrita por Guattari em As Nove Teses da Oposição de Esquerda, onde temos uma direita arcaico-liberal cada vez mais isolada, um grande consenso modernista pelo meio -- que abrange os principais partidos -- e uma esquerda cujo programa já não era novidade naquela época, tampouco seu gosto (escatológico) pelo catastrofismo:

"Uma terceira ideologia passa principalmente pelo PC e por uma parte do SFIO, sendo uma espécie de tradicionalismo econômico de esquerda. Essa ideologia continua a esperar, sem nisso crer de fato, o advento de uma crise econômica catastrófica; ela considera escandalosa a concentração e a centralização, e assume todas as formas arcaicas da economia francesa" 
(In GUATTARI, Félix. "Psicanálise e Transversalidade: ensaios de análise institucional". Aparecida-SP: Ed. Ideias e Letras, 2004 [1974, texto de 1965], p.154)    

E esse tal modernismo se caracteriza por ser "partidário, em primeiro lugar, da modificação das estruturas do capitalismo em função da evolução das suas forças produtivas, e, em segundo, da intervenção do Estado para modificar essas estruturas, resolver as crises econômicas etc." [op. cit., mesma página]. Há, portanto, uma correspondência bastante clara entre isso e o governo Dilma, mesmo quando ele toma medidas -- aparentemente -- liberais como diminuir a alíquota de impostos como o de produtos industrializados (IPI) ou acentuar restituições do Imposto de Renda para, assim, estimular a "economia" na crise.

Aliás, das movimentações da política econômica neste ano, viu-se um esforço grande para consolidar a passagem do sistema financeiro brasileiro de fiador da dívida pública para mola motriz do fomento ao consumo, seja por meio da redução dos juros, do uso dos bancos estatais para pressionar os bancos privados ou mesmo pela pressão política aberta: se a passagem da dívida pública do exterior para dentro aconteceu, é porque o governo deu garantias -- inclusive por meio de superávits pesados -- de que pagaria os títulos da dívida regularmente. Isso não apenas criou uma proteção maior para a economia brasileira, nos livrando dos ditâmes da banca internacional, como abriu espaço para que os bancos pudessem ter meios efetivos para efetuar a ampliação e capilarização do mercado creditício.

A crítica desse processo à esquerda, assume um viés escatológico, que retoma a crítica medieval à economia da dívida, que é precisamente a denúncia (moral[ista]) da usura. De repente, o problema torna-se o quanto o Governo "paga aos banqueiros", esquecendo-se que isso é o que permite o Estado fazer emissões de dinheiro e, não só, o que dá condições para os bancos emprestarem -- o país não gasta um sexto do seu erário em juros da dívida, na verdade, isso não chega a um ágio de 5%, mas é o custo pago para termos a dívida rolada e, desse modo, poder existir um mercado de crédito acessível.

É claro que os banqueiros preferem o negócio seguro dos títulos da dívida e menos o oferecer crédito aos pobres -- o que é pouco arriscado, mas certamente mais trabalhoso do que emprestar ao Estado --, mas foi aí justamente que entrou Dilma pessoalmente em um confronto aberto, pelos meios descritos, para que os bancos fomentem o consumo. Para quem acusa Dilma não entra em brigas com poderosos, fica aí um aspecto que demonstra as ambivalências desses governo. Embora estejamos distantes de apoiar isso como a última bolacha do pacote, é fato que uma crítica à economia da dívida passa longe dos escatologismos de condenação da usura e mais pelo impacto que isso traz. 

A dívida, que é ficcional, cria uma série de práticas reais como a sedentarização e sujeição das singularidades, tornadas obrigadas a pagar uma dívida que é produto da riqueza comum que elas mesmas ajudaram a produzir, enquanto, por outro lado, dentro das estruturas capitalistas, isso permite à multidão dispor das ferramentas produzidas pelo Trabalho, no regime Capitalista, que lhes permite resistir, criando um tumulto: os exemplos do celular com câmera de vídeo que permitem a uma emprega doméstica denunciar a violência policial na favela onde mora, ou do notebook que permite o garoto de periferia tuitar a realidade de seu bairro são tão óbvios que merecem ser citados.

O problema, p.ex., não está no fato "do quanto o governo paga para os bancos" -- tanto, que ele próprio já iniciou uma outra etapa desse Plano --, tampouco na denúncia de que esse enriquecimento se dá "apenas" por meio de dívida, mas sim em como disputar esse processo desligando o dispositivo da dívida -- o que passa pela ativação das mixagens e usos variados da tecnologia (social e política, inclusive), um devir-antídoto dentro de uma luta pelo direito ao inadimplemento (como diriam Negri e os Negrianos) o único pelo qual, talvez, valha a pena lutar (acrescentamos). Naturalmente, o processo é normalmente confundido com a captura, o que em termos práticos nos obrigaria a jogar o bebê fora junto com a água do banho.

Longe de desejar isso quando pensa em desenvolver o mercado creditício, o governo Dilma, contudo, gera essa colateralidade que está aí para ser (des)apropriada pelo movimento real: mas a esquerda escatológica prefere dizer que o problema é que ele não tem "consciência disso", logo, ele deveria ser substituído no campo da esquerda; é o governismo fora do Governo, que nutre uma crença na forma Partido e na forma Estado (supondo que sejam diferentes) e espera que será no plano do governo que isso se resolverá. Isso existe desde um modernismo de esquerda ou do catastrofismo.

O outro ponto é que medidas como os incentivos tributários à baila precisam ser vistos com cuidado: eles causam a diminuição da proporção de tributos incidente para gerar um crescimento da atividade econômica, o que não teria um efeito negativo sobre o erário público porque se ganharia no volume o que se perde na proporção de arrecadação. É claro que isso pode dar errado de diferentes maneiras, seja por não produzir crescimento ou mesmo por não gerar crescimento suficiente para compensar a perda do caixa, invariavelmente pode levar a arrochos nos salários dos servidores públicos.

Aí entramos num cenário pantanoso. Não, Dilma não está arrochando só os "mais fracos" -- embora os servidores públicos federais estejam longe de ser, digamos, a faixa mais vulnerada da nossa população --, uma vez que a redução dos juros joga uma pressão sobre o que há de mais majoritário no nosso meio que são, precisamente, os banqueiros. A questão, portanto, é outra, novamente não-moral, que é o risco disso ferir as espécies de servidores que merecem recomposições nos seus ganhos. Talvez manter os tributos e investir em projetos públicos fosse, potencialmente, melhor, mas isso demanda capacidade desenhar e executar tais projetos pelo Estado em caráter, quem sabe de contrapoder. Ainda assim, grande parte dos movimentos de servidores prefere se unir corporativamente a todos os outros e reivindicar aumentos  pelos aumentos.

Quais servidores e com qual critério? é essa questão. Professores de universidades federais possivelmente merecem ganhos maiores assim como um plano de carreira efetivo, mas existe, e disso ninguém tem muita dúvida, outros setores bem remunerados e que gozam mais até do que merecem -- relativamente à sua importância -- no meio dessa arenga. Mas os mesmos professores que reivindicam sem se separar de outros setores, são aqueles que também não conectam suas pautas às demandas sociais por educação. O movimento de professores das universidades federais se mantêm longe demais da demanda, p.ex., por cotas nas universidades onde lecionam  e perto demais de reivindicar apenas suas necessidades: o que é incorreto em termos de um plano maior e pouco astuto do ponto de vista político, como já dissemos aqui.

E para acirrar mais ainda a ambivalência suscitada, não custa considerar que a própria Dilma sancionou a lei que institui um programa salutar, quase revolucionário, de cotas nas universidades federais -- historicamente, feudos da elite brasileira, exceção talvez à elite bandeirante, cujos filhos estudam em universidades estaduais, embora igualmente públicas. É claro que isso se enquadra dentro de um aspecto de medioclassização do Brasil, mas a questão é: como a esquerda pode acolher e incluir (trocando experiências) com essa multidão que irá ingressar nessas universidades, que constituirá, fatalmente, um setor importante da elite intelectual brasileira nas próximas décadas?

A questão não é inclusão ou exclusão, pois ninguém trabalhou mais do que a direita brasileira para incluir os negros e os pobres nas universidades -- na condição de trabalhadores miseravelmente remunerados e não na condição de protagonistas do processo --, mas sim como se dará a inclusão que é a linha mestra do capitalismo cognitivo. Dilma espera ter pobres  e negros dentro das universidades como estudantes, o que ainda reitera a lógica de repartição de funções -- o professor, o estudante, o funcionário --, mas ao mesmo tempo tira as coisas do lugar.

Se a máxima de funcionamento do Brasil, antes ou agora, é que cada um precisa saber o seu lugar -- na sociedade excludente de outrora ou no capitalismo cognitivo de hoje, quando você será, de algum modo, para o bem ou para o mal, incluído --, o fato é que esse desencadeia um processo no qual todos são remetidos a desejar desterritorializa-se; a reterritorialização na Senzala, operada pela Casa Grande, é abalada fatalmente. Isso também abala a crença que Dilma quer um país de pobres, ela não deseja que ninguém vire pobre, mas sim que ela pretende que todos se reduzam à subjetividade médio-classista: fazer do tumulto missa civil, quando poderia muito bem o carnavalizar. 

Mas esse tumulto só existe pelo início do governo petista que traz algo muito mais importante do que os dados estatísticos citados no começo do post e disputados por vários setores: é o sim, você tem a potência de sair da Senzala, você não precisa morar lá se não quiser. Por isso que mesmo em outros momento, embora a participação dos trabalhadores e demais setores tenha sido grande "objetivamente", nunca ouve o burburinho que há hoje. Mas há um esforço grande, entre a direita e modernistas dos mais variados tipos, assim como a esquerda de enquadrarem esse tumulto: qual o nome que caberia melhor nessa classe sem nome? Nova Classe Média, (nova) Classe C, Batalhadores, Consumitariado etc etc. O nome, ou rótulo, como sabemos, cumpre uma função importante da dominação porque é ele quem permite circunscrever a potência de agir de uma singularidade tornando-a objeto potencial de uma ordem. O que é anônimo não é passível de dominação ou controle.

Nomes fracos como tumulto, multidão ou legião suscitam a força do processo que o Poder tenta atribuir um nome, mas cuja existência e (re)existência se impõe sobre o próprio mecanismo de identificação como um enxame. São antes de su(b)jeitos, modos (jeitos). E essa classe sem nome é, com efeito, um monstro, mas algo cuja função que irá cumprir depende menos de um enfrentamento, quase supersticioso, dele, com tochas e arados: não, não se trata de atacá-lo porque ele é diferente (e, afinal de contas, ele não tem um nome, é só um monstro), mas estabelecer algum modo de empatia; sim, novamente, insistimos, ele é mais do que neopentecostalismo ou tecnobrega e, embora seja ambos também, é justamente porque os evangélicos e o tecnobrega vão até lá! 

Candidatos como Ratinho Jr., em Curitiba, ou Celso Russomano, em São Paulo, estão bem cotados por serem antes por fazerem política junto à plebe rude do que por serem os "candidatos dos evangélicos" -- e o mesmo se explica pela própria popularização do neopentecostalismo no Brasil, enquanto a esquerda prefere se queixar dos pobres, quando ela mesma, não se mexe, ou prefere se mexer hostilizando os pobres em prol de um (su)jeito revolucionário que é ele próprio apenas um (pro)je(c)to: "a classe média intelectualizada". Apesar das alianças torpes do PT -- em Curitiba, p.ex. --, o fato é que em São Paulo as coisas começam a mudar justamente pela...candidatura própria do PT que se mostra capaz de conquistar apoio desse setor, ao contrário da candidatura do PSOL que faz pouco esforço nessa direção. O problema não é "o monstro que o petismo ou o lulismo criaram", como diria Safatle, mas quem prefere persegui-lo a ama-lo e, assim, o entrega ao primeiro conquistador.

Precisamos de menos ceticismo -- isto é, perspectivismo, do helênico σκέπτομαι [sképtomai, ver a distância, em perspectiva] -- e mais estoicismo: é preciso assumir que embora haja vários pontos de vista possíveis -- e que todos que podem existir, existem --, tomar um deles para si não é de pouca valia: o que assumimos aqui é o da stoa; pensar forçando para além o limiar do próprio pensamento, do ponto de vista daquilo que é limiar da pólis desterritorializada no Império. No Brasil de hoje, isso significa constituir uma ética que nos volte para os monstros vivos no nosso meio e nos permita antes de tudo estabelecer um vínculo empático -- nem sempre de forma amistosa ou cordial, é claro --, sob pena de terminarmos devorados, não por eles, mas antes de mais nada por nossa própria arrogância.

*frase baseada em palestra proferida pelo mestre (agora de fato e de direito) Bruno Cava na Semana de Recepção aos Calouros do Direito PUC-SP, no início deste ano.