quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Django Livre: o Anti-Obama, Anti-Spike Lee

Django Livre possivelmente é o melhor filme de Quentin Tarantino. A exemplo das demais obras do cineasta, trata-se de um projeto tecnicamente irretocável: da trilha sonora às atuações, passando pela fotografia e pelas incomparáveis cenas de ação. No entanto, há algo de superior em Django em relação aos demais filmes de Tarantino -- que é justamente o modo praticamente perfeito como a narrativa habita seu locus histórico. Poucas películas pontuaram tão bem a questão racial americana quanto ela. O cowboy é negro, o anti-racista é alemão, o grande vilão é a servidão voluntária -- que é prontamente desnaturalizada; não é uma questão de mocinhos e bandidos, é uma questão de vontade de potência contra paixões tristes.

Há dois pontos em Django que incomodaram mesmo o movimento negro americano (o que é revelador): o primeiro é que se trata de um filme bem humorado, o segundo é que a servidão voluntária é retratada como o centro de gravidade do esquema racista da Casa Grande. Talvez incomode ver a KKK sendo ridicularizada antes de ser destroçada por Django na cena mais engraçada do filme -- mas quem não se agrada do riso é, certamente, digno de alguma desconfiança (como, aliás, já lembrava um tal Foucault). Talvez incomode admitir o colaboracionismo negro no esquema da escravidão ou mesmo que não conciliação possível. Mas ter cutucado essas feridas é o torna Django sensacional.

Leonardo de Caprio interpreta não o antagonista da trama, mas uma marionete deprimente de um esquema no qual Samuel L. Jackson, manipulador e inteligentíssimo, move as pobres mentes brancas para a manutenção de uma ordem na qual ele prepondera como chefe e morador distinto da Casa Grande (sem ele mesmo deixar de ser escravo ou, também, uma peça do jogo). O racismo americano é demonstrado em toda a sua dimensão sistêmica, sem se rebaixar ao discurso de conciliação -- como o de Obama na política ou mesmo aquele visto em películas como Invictus -- ou ao maniqueísmo -- como insiste um Spike Lee que não viu e não e não gostou do filme.

A personagem sensacional de Cristoph Waltz, um dentista alemão que se tornou caçador de recompensas e nutre um ódio sem limites à escravatura, não media nem conduz nada: ele é tanto mais um xamã, abrindo portais para novos mundos, do que qualquer outra coisa. E o problema não está no alemão, no outro -- o evidente inimigo e vilão -- mas sim na elite branca e ignorante dos Estados Unidos. Kerry Washington, como a amada de Django, sequestrada e torturada, expressa essa dor sem fim (e duplicada) da mulher negra.


E Jamie Foxx está soberbo. O seu Django é a expressão máxima e definitiva da potência da gente negra. Se ele realmente não era a primeira opção de Tarantino, seguramente, entrará para o rol dos grandes planos B da história do cinema. Deus abençoe o fato de ter sido ele, e não (o cada vez mais irrelevante) Will Smith, o Django. Só o negro é capaz de romper os grilhões que lhe prendem -- e o olhar cortante (de amor, de paixão) de Foxx traduz isso perfeitamente. O inimigo está aqui dentro. Django para lá da farsa histórica e do discurso auto-indulgente: é tudo questão de força, pura força e puro estilo, é questão de confrontar e saber confrontar. Sem isso, não existe liberdade -- e o que interessa: os negros podem. 

Django acerta um tiro certeiro no coração do racismo americano. E também nas duas faces nas quais se desdobra o lado asceta do movimento negro. Aquele discurso que gira em torno da culpa, seja tirando a culpa dos brancos (como no caso de Obama) ou colocando-a paranoicamente sobre eles (no caso de um Spike Lee). Não é questão de culpa, mas sim das coisas como elas realmente estão -- e de que é preciso fazer a diferença optando pela libertação. Não há motivo para se temer o riso. 

P.S.: Esta postagem é a primeira do ano V de O Descurvo, ontem foi aniversário de quatro anos do Blog.

domingo, 27 de janeiro de 2013

Pinheirinho: Entre Espaços Vazios e a Plenitude da Luta

-- Um ano após desocupação violenta da comunidade do Pinheirinho, em São José dos Campos, é preciso escrever memórias sobre este presente em esquecimento --

Muitas vezes, comentados e refletimos aqui sobre uma notícia, desta vez, a questão é outra: temos uma não notícia. Há pouco mais de um ano, a notícia da desocupação da comunidade do Pinheirinho corria o mundo. Tratou-se de uma pantomina judicial lamentável, cujo resultado foi um saldo de milhares de famílias arrancadas à força do terreno no qual residiam, pacificamente, há anos. Esta notícia foi repercutida sobretudo nas mídias sociais alternativas, como este perseverante blog: duas das postagens mais lidas desta Casa em 2012 (aqui e aqui) trataram justamente do Pinheirinho, muito embora sequer tenhamos sido cobrados, reles doze meses depois, por não termos publicado qualquer coisa sobre o caso no exato aniversário do feito. 

Pois bem, um ano depois, o imenso terreno no qual residiam as famílias segue vacuoso, abandonado, sem uso enquanto as milhares de pessoas estão por aí, à deriva, errantes. Se viviam em condições precárias antes, agora, depois de perderem o pouco que tinham, vagam por aí. Estão alocados numa condição pior no seleto grupo que fazem parte: dos mais de 10% da nossa população que se encontram na zona do "déficit habitacional brasileiro", isto é, no grupo daqueles que foram deixados para morrer ao relento em (e por) nossa sociedade -- e vivem nas ruas, debaixo das pontes ou nas encostas de morros. Talvez se fale em respeito à propriedade privada alheia, mas o que se vê é a privação de propriedade e o desfazimento do habitar em comum, próprio de uma coletividade.

Não faltam imóveis em grandes cidades brasileiras, por óbvio. O número de imóveis desocupados em um município como São Paulo é semelhante ao número de famílias carentes de moradia. No Brasil, não faltam terrenos e espaço para terrenos habitáveis -- tampouco faltam terras férteis e cultiváveis, o que é a tônica do mundo, uma vez que o problema não está na produção, mas na distribuição de alimentos. É certo dizer que se trata de um mistério. Mistério no sentido teológico da coisa, pois é de teologia que tratamos quando pensamos no complexo edifício capitalista e na forma de organização política nossa, estatal. Não há excesso de produção pelo fato dos pobres consumirem -- inclusive espaços habitáveis --, mas por não consumirem, uma vez que se produz não para consumir, mas para vender, o que importa em acumulação e negociações com os excedentes -- ou mais do que isso: com a expectativa de tais excedentes, fantasmas: o excedente real é convertido em déficit prático pela maneira como é produzido, e isso não muda per se.

A educação medieval prestava bastante atenção aos intervalos, aos espaços entre, os intervalos: quadrivium; aritmética (os intervalos abstratos), geometria (os intervalos entre as coisas sólidas), música (o intervalo entre os sons) e astronomia (o intervalo entre os astros e as grandezas enormíssimas). O intervalo, eis aí aquilo que importa tanto quanto o que sobra, ele é quem marca o que é -- e a forma como ele repete é expressão do regime. A tônica do capitalismo é de largos intervalos, caóticas concentrações em núcleos: mas são os vazios, grandes espaços vazios, mesmo nas concentrações que dá o tom de como funciona a coisa; por isso, aqui mais do que em qualquer outro lugar, importa mais o que se silencia do que aquilo que se conta. Esses espaços são bolhas: desde a constituição física de um terreno como o que abrigava a comunidade do Pinheirinho às construções ficcionais das finanças.

O efeito prático é um existir vacuoso expresso em uma determinada concepção de tempo: é o tempo do nosso tempo, e é a maneira como percebemos, e em certa medida que criamos, o tempo que implica no nosso viver. Há a extensão e o movimento descrito nela, o tempo está em função do espaço, da medida e desmedida do existir. E é a reinvenção do tempo que marca uma passagem, que pode constituir uma verdadeira revolução como bem lembra Peter Pál Pelbart. A disputa pelo tempo, no entanto, passa pela constituição de uma ordem dos espaços, exige uma cartografia do terreno e uma construção que conceba a cinética: é preciso que os fluxos passem, fluam sem interditos que conduzem aos coágulos -- os grandes espaços do capitalismo são, precisamente, essas zonas de interdição, que cortam e sujeitam o movimento dos fluxos, delimitando uma métrica do tempo que estabelece uma forma de existir, submissa.

É por isso, não sem razão, que David Harvey concebe o potencial revolucionário da metrópole. É lá onde sobra, onde se excede de gente, no qual a capacidade de síntese do capitalismo esbarra no aglomerado de corpos sem encontrando que ele precisa apartar, afastar, mas não pode destruir por sua operação. É onde o tempo pode ser reinventado de modo mais livre, portanto. Como lutar contra os enormes espaços vazios? Contra o apartamento do encontro dos corpos? O que é pleno é a luta e luta é movimento, a física que interessa aqui, novamente, é tanto mais uma cinética do que uma óptica. Nas concentrações caóticas das metrópoles, causada pela pressão das bolhas vacuosas rurais, as pequenas e inúmeras bolhas internas vem à tona e são confrontadas.

Pinheirinho é um desses enormes espaços vazios. Um desses enormes espaços de vacuidade que, por ser espacial, torna-se existencial, torna-se tempo vago. Mas se a favela não pode ser objetificada enquanto fetiche pós-romântico, ela também não é catástrofe em si, mas sim resistência, nem doce, nem amarga, sublime. É esse excedente de movimento, de inquietação, de afirmação de que um outro destino possível que se trata a luta. É isso que pode tornar pleno o que é oco. É preciso lutar, protestar, discursar, articular, mas, também, escrever memórias, não de um passado, mas de um aqui-agora em esquecimento. A luta que constituía sua re-existência era o que há de pleno, e essa plenitude da luta é que nos resta frente à imagem vacuosa, a bela superfície esmaltada com seu interior oco (ou podre), que o capitalismo nos oferece.

Mais do que nunca, a palavra de ordem é Ocupar! as vastidões de mundos criados para serem estéreis, vazios, inúteis que decorrem da produção sob o regime do capital; expressões plenas da capacidade humana desperdiçada. Para além da catástrofe ou do idealismo -- ou melhor, dos dois pólos do idealismo -- existe uma instância que nos torna algo mais do que formas vazias a vagar, um desejo sonhador e impetuoso de eutopia que nos completa. É preciso ocupar o que há de vazio em nós mesmos no mesmo movimento que fazemos isso externamente: o formalismo e o idealismo são o latifúndio do pensamento. É preciso ser ingênuo, devir-criança como na fábula de Andersen, sem abrir mão jamais da coragem.



quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

As Prisões Privadas, Mercantilização da Vida e o Robocop

-- Está em construção, no estado de Minas Gerais, a primeira "prisão privada" do Brasil: viveremos sob os desmandos de uma indústria prisional movida pelo negócio lucrativo de prender gente? --

No Brasil, até hoje, prisões são construídas e geridas pelo poder público. Por força da Constituição de 1988, largamente garantista, instituições prisionais deveriam ser o destino de pessoas condenadas depois de terem acesso ao devido processo legal, sob plena presunção de inocência -- e, eventualmente, também para presos provisórios ou em flagrante delito. Nada mais de tortura ou maus-tratos, só a justiça e nada mais. Um doce devaneio idealista, sem dúvida. A realidade material das relações sociais brasileiras fez isso cair por terra. A nossa desigualdade intrínseca, a precarização nas condições laborais (desemprego, queda dos salários) nos anos 90, a favelização das cidades pela carência de políticas habitacionais dispararam a violência, o que foi respondido com o elitismo do judiciário, o punitivismo alimentado pela mídia e o desejo de exceção das classes média e alta. O resultado disso é que, hoje, temos uma das maiores populações carcerárias do mundo

Grande parte dos nossos presos são provisórios -- isto é, nem sequer foram condenados, mas o judiciário, que deveria tratar tal questão como exceção, a converte em regra:  todos passam a ser culpados até que se prove o contrário. Tais presos provisórios, em geral, respondem a processos por crimes patrimoniais de pouco potencial ofensivo. São negros e/ou pobres. Se o chicote da tortura parou para os brancos e bem-nascidos com o fim da Ditadura Militar, para negros e pobres, tudo continua como sempre foi.

O sistema prisional, então, se tornou um problema para o Estado pela sua saturação. Grandes organizações criminosas, como o PCC, nasceram de dentro dos presídios, enquanto rebeliões e quetais perturbam a boa sociedade. Se prisões são como infernos reais, o inferno entrou em colapso, abalando todo o edifício teológico-político no qual se constitui nossa forma de sociedade. Eis que alguns burocratas passaram a exclamar, há algum tempo, que privatizar presídios seria uma boa saída. Afinal, o capitalismo é uma máquina de síntese quase perfeita, logo, entregar prisões às corporações, com seu interesse privado, resolveria as coisas. Eles lucrariam de algum com modo com a construção e gestão dos presídios e tudo passaria a correr bem.

É desse processo que nasce o pioneiro complexo prisional privado de Ribeirão das Neves, em Minas Gerais. A construção da referida prisão se dará por meio do pouco claro regime de Parceria Público-Privada, cuja legislação aprovada no governo Lula deveria ser uma forma de lidar melhor com o elemento privado, sobretudo para a construção de grandes obras de infraestrutura, mas acabou longe disso: ela termina por consistir em uma nova forma de gestão privada das obras públicas. A medida específica da construção da prisão mineira é do governo local, tucano, sempre tão afeito a privatismos vários.

O referido complexo obedecerá o modelo inglês, segundo seus idealizadores. Talvez isso seja só um jeito pomposo para dizer que não terá o modelo americano, uma vez que as empresas não lucrarão com o trabalho dos presos -- uma bobagem sem tamanho, haja vista que não poderíamos ter, pela natureza do nosso sistema jurídico (da legislação penal à administrativa), nada parecido nem com o primeiro modelo, nem muito menos com o segundo (os presos só seriam escravos penais do consórcio concessionário no caso de um desrespeito mais flagrante ainda da Constituição). O que teremos, afinal, é um originalíssimo modelo brasileiro, uma vez que ele incorpora modelos estrangeiros à realidade local de um modo, não raro, contraditório com as próprias necessidades e diretrizes.

Enfim, da mesma forja que produziu a antropofagia, potente e libertadora, também nasceu também uma forma de síntese colonizadora que serve ao poder. O nosso sistema de controle de constitucionalidade -- o juízo de exceção --, por exemplo, é uma mistura do europeu com o americano sem ser uma coisa ou outra. É, pois, brasileiríssimo. Mas é brasileiro no sentido de ser um converter-se em mundo do Brasil -- e como nenhum país faz tanto isso, nada mais brasileiro, afinal. Uma antropofagia é um devir-mundo do Brasil que é exatamente o contrário e o antagônico: é devorar o mundo por o amar e não se deixar devorar sadicamente por ele.

O sadismo aqui está no fato de que prender pessoas, de ato estatal, se tornará um negócio qualquer, o que torna tudo pior. Existirá um cliente -- o Estado, munido com o erário público --, uma demanda permanente da parte dele -- encarcerar quem sai da linha no regime --, é só trabalhar. O problema não está no fato de que a iniciativa privada não possa melhorar presídios, está no fato de que prender mais gente e ter gente "penitenciável" se tornará ótimo. Não será mais interessante não ter gente presa. E quem será preso não serão os outros, seremos todos nós. O lobby punitivista grassará e terá dinheiro para tanto. Na prática, a gestão da administração penitenciária, monopólio do Estado, será delegada de forma branca a um consórcio privado por uma derivação lógica do processo: ainda que o Estado não vá delegar nada, na prática, o direito de gerir o presídio permitirá que um consórcio privado faça as vezes do poder público em certa medida.

Ironias do destino, é uma fábula semelhante à clássica série cinematográfica Robocop (um dos últimos exemplares da ficção científica futurista crítica dos anos 80): em um futuro próximo e pós-apocalíptico (não por uma catástrofe, mas pelo desenrolar dos fatos, sob o neoliberalismo, no qual até o excesso de raios ultravioleta é ensejo para o comercial de um protetor solar ridículo) uma corporação gerencia uma decadente Detroit -- a OCP, Omni Consumer Products -- e usando os restos de um policial morto em ação, ela faz um ciborgue policial que se torna seu carro-chefe de sua política de mercantilização da segurança-pública e gentrificação da cidade. Enfim, com essa medida, o Brasil chega ao futuro e o futuro é o passado ou a realidade histórica de opressão em sua dimensão maquínica.

Prisões privadas são o fecho de um movimento que já está posto com a privatização da gestão dos espaços urbanos (pelo conglomerado de imobiliárias) e rurais (pelo agronegócio), somado a universalização pública da segurança privada (a universalização das empresas de segurança e seus aparatos por toda a parte) e a universalização privada da segurança pública (a polícia republicana convertida mais e mais em milícia de classe). Não há catástrofe. Não há barulho. É o funcionamento cotidiano e silencioso do sistema que nos conduz a tal futuro, que mais e mais se torna presente. A única saída para a violência radical da nossa sociedade, e de produção, é uma transformação de sua organização produtiva e social, coisa que se viu, em pequena medida nos anos Lula, com uma queda de 8% na violência homicída: envolver a base e a ponta do processo dentro das mesmas relações materiais é aumentar o problema, não diminuí-lo. Só a constituição de novas políticas sociais pode efetivamente mudar isso, sempre tendo em mente que tornar uma sociedade violenta é fácil, mas o contrário, nem tanto.


quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

A Intervenção no Mali, Françafrique, a Velha Europa

-- Um espectro ronda a Europa, mas desta vez não é a Revolução, mas sim algo, digamos, um tanto menos vivo --
Além da crise da União Europeia, questão recorrente no noticiário nos últimos anos -- com o poder europeu misturado ao sistema financeiro, Alemanha à frente e acima, no esmagamento dos países periféricos  --, agora temos a intervenção francesa no Mali -- um tanto mais direta e presencial do que a, digamos, nada pequena participação franco-britânica na Líbia. Uma palavra nova entra no nosso léxico: Françafrique -- o neologismo definitivo para definir a doutrina neocolonial francesa sobre suas ex-colônias africanas; trata-se de uma ironia precisa (e polêmica) de François-Xavier Verschave, em livro homônimo dos anos 90, para a relação nebulosa entre a França e suas ex-colônias.

Esqueça o fascismo ou o velho imperialismo: vivemos em uma época outra, onde qualquer conservador faz objeção de princípios a líderes opressores e grandes assassinos, mesmo os de extrema-direita. O fato é que o sistema não precisa mais matar, ele deixa morrer com estilo e sem cerimônia; os velhos genocidas fascistas são, portanto, instrumentos ultrapassados destinados ao descarte no ferro velho da esquina. O máximo de intervenção e combate que podemos testemunhar é o dos poderosos exércitos da civilização, enquanto força de polícia cosmopolita, pondo ordem na Casa. O sistema não mata, ele deixa morrer em nome de uma responsabilidade pessoal transcendente -- ou mata sob a prerrogativa da preservação da civilização global.

O Centro produz a periferia dialeticamente. O processo civilizatório é dialético na medida em que a civilização cria seus bárbaros e selvagens para, vejam só,  homologar-se enquanto tal. Do mesmo modo que o capitalismo, ao criar riqueza, cria pobreza, pois só é rico alguém ou algo que tem um pobre para lhe servir como referência homologatória: o rico o é não por ter muito, mas por ter quem tenha menos em relação a si. O etapismo e o enriquecimento sustentam as duas dialéticas: o esforço da periferia em ser centro é o que permite a existência de uma zona periférica, o esforço do pobre em ser rico é o que mantém a pobreza. Na essência do problema, pelo menos da questão geopolítica levantada, está a aliança entre a elite africana e francesa contra os pobres de canto a canto -- no outro exemplo, é a aliança entre o pobre dominado por paixões tristes (a dívida, p.ex.), o pobre que não devém pobre, e o rico que sustenta a "desigualdade social".

Quem está em colapso é a Alemanha de Merkel, como sempre insistimos por aqui, não Portugal, Espanha, Grécia ou Irlanda. Mas é ela quem tem o poder, via Euro, de sufocar os mais pobres, jogar-lhes a culpa e a dívida -- que bem sabem os alemães ser a mesma coisa -- e se alimentares. O capital alemão na sua dimensão esfomeada já se alimentou dos recursos humanos da antiga máquina burocrática da falecida da Alemanha Oriental, já mandou plantas industriais para a China aos borbotões, e, agora, come os periféricos da Europa. Hollande, que não deixa de ser um contraponto à Alemanha internamente no jogo europeu, não deixa de ter o apoio da maioria, da Otan, dos próprios germânicos para comer pelas beiradas uma resolução da ONU que falava em forças africanas para "estabilizar" o Mali, não francesas. Mas a guerra é sempre urgente, necessária; discordar torna-se, rapidamente, o mesmo que estar a favor dos rebeldes.

Os rebeldes malineses, terríveis "islamistas", estariam armados com os despojos do arsenal de Kadafi, déspota líbio recentemente derrubado -- e cruelmente morto por "rebeldes" apoiados pela aviação de combate da França. Não só, o Mali, que hoje vê sua capital cercada, já se encontra em problemas há tempos. O governo, ora sitiado, é ilegítimo e ascendeu via golpe de Estado. Governo este responsável, inclusive, pela maior estagnação do país em seus cinquenta e dois anos de existência pós-colonial. Mas só agora, e dessa forma, houve alguma mobilização. Nada conspira pela legitimidade desta ação ou para sua funcionalidade. É como uma volta ao passado, quando Guattari comentava com Lula sobre as ambiguidades da política externa da França de Mitterrand: a denuncia do imperialismo americano por uma mão e a deflagração do botão da guerra na África pela outra.

Hollande conta com alguns ases na manga. Um deles é de que, de fato, o governo (de facto) do Mali foi quem pediu ajuda à comunidade internacional, sobretudo à França. O outro, é que a intervenção é brutalmente popular na França. Para um governo apagado como o de Hollande, cujas tentativas de emplacar políticas anticrise e de reduzir a hegemonia alemã na Europa resumem-se, quase sempre, ao discurso e à pirotecnia, ter uma ação aprovada por três quartos da sua população não é pouca coisa. Mais até do que isso,  por questões políticas e econômicas, fazer guerra nunca foi de um todo mau para o capitalismo, sobretudo quando se faz guerra contra organizações não-capitalistas ou pré-capitalistas.
Não é uma questão nacional, por óbvio. É da interface imperial do sistema global que estamos falando. Do arcaísmo  fundamentalista como colateralidade do funcionamento da economia-mundo. Da guerra como negócio derradeiro, desafogo da política e forma de incentivar a fabricação de bugigangas bélicas. O que resolverá mais essa guerra se ela existe como consequências do fracasso da intervenção na Líbia e do fracasso do sistema global? Mesmo com todas as suas reticências, a pergunta de Mélenchon é válida: esta guerra servirá para algo?

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

A Cultura, a Classe sem Nome e o MinC de Marta

Carnaval -- Carybé
A questão da Cultura é essencial. Não à toa, ela tem sido alvo de intensos debates no Brasil, sobretudo no governo Lula, na  passagem de Gilberto Gil pelo Ministério da Cultura. Pela primeira vez se deflagrou uma política de democratização cultural, rompendo a barreira da visão da "cultura" como mero enfeite -- ou apenas um instrumento para alavancagem da indústria de entretenimento massificada. Um dos eixos dessa transformação foi a execução do programa Cultura Viva, idealizado por Célio Turino, que resultou nos Pontos de Cultura. O processo se seguiu durante a gestão de Juca Ferreira, mas atolou com a nomeação de Ana de Hollanda por Dilma. As políticas democratizantes deram um giro de 180 graus, passando para o lado da defesa do lobby da grande indústria do entretenimento para o horror de ativistas da área. Ana cai -- sob a pressão de movimentos da área, declarações mal dadas e o jogo das eleições municipais --, Marta Suplicy ascende e uma nova rodada de lutas se inicia.

Antes, uma breve recapitulação. Por que a Cultura importa? Foi no campo da Cultura, e não na corrida espacial ou armamentista, que os Estados Unidos tomaram a dianteira na Guerra Fria em relação à falecida União Soviética -- e a última encontrou seu desfecho triste, por sua crise interna. Em suma, o principal arsenal de Washington é, há muito, sua indústria de entretenimento e sua política cultural (espertamente invasiva): o que moldou o mundo à imagem americana é, justamente, o imaginário produzido por sua indústria que, docilmente, introjetou seus tipos de formas de vida; não é mais possível imaginar uma história de amor sem fazer referência a um filme de Hollywood, como bem observam Negri e Hardt em Commonwealth.

O centro de gravidade não está no medo, mas na esperança (e mais e mais na pretensão de segurança) de viver tal e qual -- boa parte do que foi operado em favor da hegemonia norte-americana, por sua vez, pouco teve a ver com invasões e golpes (embora não possamos exclui-los), mas sim com condutas espontâneas, no nível macro e micro, causados pela maneira como o american way of life foi naturalizado. Mas não é a forma de viver americana em um sentido nacional -- eles contra nós --, é a forma de viver americana como uma das hipóteses de modelo de vida adequável e útil para realizar o Capitalismo. A Rede Globo não repete essa estética pelo bem de Washington, mas, antes de mais nada, pelo Capitalismo.

Uma vez rompida a Guerra Fria, aquela estética extravasa as fronteiras nacionais americanas. Com a Globalização, o modelo americano torna-se global e precisa cada vez menos dos Estados Unidos em si. Um filme chinês que exalta a glória dos noventa anos do Partido Comunista local tem, também, estética hollywoodiana -- e não há nada estranho nisso. Há um Império global que nasceu do ovo americano, mas não se confunde mais com ele com tanta exatidão. Se a realidade funciona de um modo dialético é difícil dizer, mas o capitalismo certamente o faz. Ele se autossupera e se ultrapassa a todo instante.

Por outro lado, os países socialistas ao longo do século 20º, grosso modo, insistiram que a chave para a libertação estava na tomada do Estado para, assim, assumirem o controle do progresso da civilização, dando um sentido outro aos seus rumos -- processo do qual, automaticamente, resultaria uma cultura nova. Não resultou em coisa alguma como sabemos. É a cultura que dita as regras dá linha no processo civilizatório, é o discurso, a representação. Inclusive porque a civilização é só uma das múltiplas possibilidades da cultura. A civilização capitalista demanda uma cultura capitalista para que ela funcione no seu avanço sem fim.

No Brasil, existem dois vetores muito fortes no campo. Um é o da grande indústria do entretenimento, cujos tipos de formas de vida esboços remetem à manutenção do que está posto, outro, é uma animada e potente cultura popular. A hegemonia cultural dos grupos de mídia tradicionais no Brasil -- oligopólios familiares, a bem da verdade -- moldou os rumos da democracia brasileira. Nós nos informamos, nos imaginamos e nos sentimos de acordo com a produção de formas de vida ditada pelo grupos A ou B, com interesses bastante pontuados. É uma grande indústria, forjada na Ditadura Militar e que chega ao ápice com o Neoliberalismo -- a Ditadura não destruiu a música brasileira, mas o privatismo dos anos 90 sim. E isso tem implicações muito claras na funcionamento da nossa política.

Há, inclusive, uma confusão recorrente: como se a massificação galopante da Cultura brasileira nos últimos anos tivesse a ver com ascensão social atual. Como se a ascensão selvagem da classe sem nome fosse a ascensão do massificado, do pobre enquanto o ontologicamente deficitário. Nada mais falso. A massificação cultural corta toda a sociedade, ditando padrões, de maneira universal, para o jovem da periferia e para o advogado rico do bairro nobre. A massa não é o pobre que vê suas condições excederem os limites da Lei da Casa Grande, ela é o processo de homogeneização ao qual  todos são reduzidos, igualados apesar de suas diferenças, o que permite a manutenção de assimetrias brutais. Quem assiste ao pior talk show da televisão brasileira é a classe "a" também.

A massificação é um processo anterior e, acrescentaria até, antagônico a tal ascensão, uma vez que é um processo de sujeição que pretende, inclusive, dar um jeito nessa classe, pondo-a sob os limites de uma nova ordem. Trata-se de um vetor que busca capturar a potência dessa classe, sujeitando-a: quando uma telenovela "insere" e "descreve" a nova classe, ela é o faz submetendo-a a um regime que pretende determina-la, prescrevedo seu funcionamento. A classe sem nome passaria a ser isto, é uma "nova classe média", que se comporta, veste e ama de um modo determinado.

A massificação tem pouco a ver com exarcebação do consumo, mas sim com regulamentação do consumo: você irá consumir aquilo e aquilo outro, desta e daquela forma. Mas você não consumirá jamais os sujeitos e sujeições que o sistema usa para determinar a forma de produzir e de consumir os objetos. É uma vedação ao consumo. Por isso é preciso consumir mais e mais, devorar os objetos e também -- e sobretudo -- os sujeitos e sujeições. E [poder] consumir cada vez mais é enfrentar a máquina, não alimenta-la. O cenário atual é ainda de subconsumo.

Então é dentro de um cenário de incertezas não só internas ao MinC, mas também das mudanças ocorridas nos últimos anos, que Marta Suplicy assume a pasta. Não são poucos os problemas internos e os desafios. A vitória recém-conquistada da aprovação do Vale-Cultura -- algo que pode se tornar um equivalente cultural do bolsa família -- é importante: ele cria mecanismos que permitem aos trabalhadores (que ganham até cinco salários mínimos) acessarem bens culturais com um bônus de R$ 50,00 mensais dados, por seu turno, pela empresa onde estão empregados em troca de isenções fiscais para a mesma. 

Não à toa, a Folha já se levantou contra o projeto -- e Marta respondeu, hoje, com muita precisão.  Os argumentos do editorial da Folha não são diferentes daqueles vistos por certa parte da esquerda que vê, no incentivo ao consumo, o problema do governo Lula-Dilma. O temor dos setores conservadores é justamente não saber qual a extensão da liberação do consumo por parte desses setores (ou pela menos a parcela dele que está empregada) e isso Marta captou bem -- antes o problema fosse a aquisição de blockbusters e de livros de auto-ajuda, muitos dos quais promovidos e endossados pela mesma mídia que ora os critica: o que incomoda mesmo é a possibilidade disso permitir a massa ir além de sua condição e ter meios para, minimamente, se integrar ao mundo do qual é alijada. O sistema vive desse subconsumo.

Mas um ponto tão crucial quanto. É a própria regulamentação do Cultura Viva, que gira em torno da aprovação do projeto de lei 757/2011 de autoria da deputada federal carioca Jandira Feghali (PC do B). Idealizado por ativistas da área e pelo criador do Cultura Viva, Célio Turino, o projeto aprimoraria o mecanismo de prestação de contas por parte dos Pontos de Cultura e facilitaria repasses e gastos por parte dos Pontos de Cultura, dentre tantas outras coisas -- hoje, engessados pela mesma legislação que dispõe sobre grandes obras e grandes compras públicas, totalmente carentes de uma legislação específica. Assim, a produção cultural em nível molecular, por gente comum do povo, poderia ser expandida em toda a sua diversidade.

Na última segunda-feira (14/01), em audiência pública com militantes da cultura e ponteiros, Marta se deparou com o quadro do Cultura Viva. O ponto positivo, desde já, foi a realização de uma audiência pública depois de anos de interdição do diálogo. Mas ficam patentes as dificuldades e a situação do MinC depois do vendaval Ana de Hollanda.  O aprimoramento do Cultura Viva é, ou pode ser, o ponto diferencial na história. Seria a possibilidade de dar conta da "fome pelo acesso à cultura" ao qual Marta faz referência ao avaliar o quadro brasileiro. E daria conta por meio da produção de um bom alimento. E a fome, aliás, tem a ver, sempre, com a relação entre consumo e produção.

Marta quer e precisa fazer acontecer no MinC. E isso é legítimo. Mas ela só vai conseguir êxito caso se der conta da importância da dimensão da pasta que tem em mãos -- e monte uma equipe que dê conta disso (e pelo jeito falta isso). O Cultura Viva é o principal projeto do MinC e seria o tecido conjuntivo para mais e mais políticas do setor -- como o próprio Vale-Cultura e o CEU das artes, que ela idealizou --, sua efetivação definitiva é, portanto, pauta prioritária. Se empreender esforços para a sua regulamentação, terá obtido uma grande vitória. Sem diálogo e sem a participação da multidão -- que não é este ou aquele militante ou este ou aquele movimento -- não há como avançar e não haveria razão de ser para o Cultura Viva. A abertura ao diálogo, a disposição em entender o quadro e a vontade de fazer coisas são um caminho, mas há muito ainda a trilhar. Marta tem, no entanto, a faca e o queijo na mão.

domingo, 13 de janeiro de 2013

Aaron Swartz e a Liberdade sem Fim

O ciberativista Aaron Swartz (foto) cometeu suicídio, na última sexta, aos 26 anos. Swartz acabara de ser condenado pela justiça de Nova Iorque a 35 de prisão, o que levou ao gesto desesperado. A acusação? Disseminar na rede artigos acadêmicos, tornando-os de domínio público. A morte de Swartz, portanto, é um evento da maior relevância, uma vez que não se trata de uma mera tragédia pessoal, muitíssimo contrário, ela sublinha três eixos de reflexão centrais: o significado do suicídio, a questão dos direitos autorais e a do punitivismo penal. São três eixos que em algum momento já debatemos por aqui e constituem as questões definitivas do nosso tempo.

Pois bem, já não é de hoje que toda sorte de aparato teológico-político condena o suicídio, direta ou indiretamente. O suicida é um pecador, um maldito e só não é um criminoso pela falta de possibilidade de ser sancionado (embora eventuais colaboradores terminem por ser penalizados). É justamente esse detalhe final que enseja sua condenação ideológica. O fato é que nenhuma máquina teológico-política deseja fazer uma pilha de mortos, mas sim uma imensidão de escravos. E em último caso, o suicídio é uma forma de libertação de uma existência miserável -- como a de um Walter Benjamin cercado por perseguidores nazistas ou, ainda, de um Salvador Allende prestes a ser massacrado pelos golpistas chilenos em pleno palácio presidencial. 

O gesto do suicida político, portanto, importa em si, mas, sobretudo, no seu impacto simbólico: ele afirma que mesmo na situação limite na qual o fascismo se torna total, há uma saída, há uma possibilidade de dispor sobre o próprio corpo, mesmo que seja em caráter derradeiro. O sistema não mata seus adversários pelo simples fato de mata-los, mas dar o exemplo público que pode matar qualquer um que lhe desafie -- ou, como no caso, que dá a última palavra sobre o corpo de qualquer um. O suicídio, por seu turno, é a afirmação de uma outra verdade, de que no limite o fascismo não é absoluta, mesmo quando é máximo. Não que o suicídio como protesto seja algo belo em si, é uma tragédia, e de tão trágico é belo. Não à toa, nosso mundo está recheado de imolações de toda sorte, o que quer dizer muito.

Ato contínuo, a ditadura dos direitos autorais diz respeito à outra não menos importante faceta do sistema atual. O riqueza hoje é imaterial, é o conhecimento, o conceito, a marca, o design. Controlar a produção disso, as válvulas e portas que comportam o fluxo de saberes, informações e quetais é estratégico. Não existem, a bem da verdade, direitos do autor fora do plano ideológico: falar em direitos do autor, em remuneração daqueles que produziram é só uma forma de legitimar os direitos do capital cognitivo em reter para si o valor decorrente do conhecimento comum. 

Nem é preciso dizer que músicos, escritores ou mesmo acadêmicos ganham apenas uma mixórdia perto do que termina nas mãos de gravadoras e editoras. Produzir conhecimento é inovar, mas inovar mediante uma mixagem dos saberes comuns. Obviamente, o produtor merece sua remuneração, mas isso não pode implicar no impedimento ou retardamento da circulação do conhecimento, embora o problema nem seja este (antes fosse): quem retarda, na prática, são os capitais do futuro, os capitais cognitivos. Aliás, gravadoras e editoras nem são o que há de ponta neste esquema, haja vista as redes sociais e toda sorte de exploração anestésica e invisível que se vê na própria rede.

A equação se fecha com o punitivismo penal. Punir, inflingir dor sobre o corpo de outrem de maneira ritual, legitimada e pública é tão velho quanto a humanidade. E o é pelo seu caráter sedutor. Não se trata apenas de punir para eliminar, ou fragilizar, o corpo do insurgente -- ou mesmo de fazer isso um exemplo: a ritualística da punição representa um meio da massa descontar todas as suas frustrações, toda a dor de uma humilhação cotidiana e não entendida. As massas que assistiam às sessões de decapitação durante a Revolução Francesa raramente tinham motivos pessoais, ou políticos, para tanto. Mas se sentiam vingadas. Elas projetavam a sua dor e as suas frustrações no prazer perverso de ver o martírio alheio.

O fetiche punitivista cega a muitos. Basta a ver o Brasil de hoje. Mesmo à esquerda, não importa bem como nem por qual motivo, importa que houve uma condenação penal; é o resultado de uma crença na justiça por meio de transcendência, processo que exige a intercessão da sanção penal. O sistema penal anglo-americano está cheio de aspectos absurdos nesse sentido. Há uma desmedida. E a importação disso somado com o estatalismo europeu é, não custa lembrar, um dos maiores problemas do Brasil de hoje.

Assim, a equação se fecha e converge no caso Swartz. A pergunta que fica é quantos jovens precisarão, ainda, se sacrificar, pela impossibilidade de uma vida plena? É preciso ir além de velhos dogmas e enfrentar uma máquina horrenda que é, ela mesma, fetiche, puro feitiço: ou há algo mais irreal -- e cheio de fantasmas (a dívida sem fim, o Estado, o medo) -- do que este estado de coisas no qual "vivemos"?

Atualização das 19:50: vale muito a pena ler o post do nosso Rafael Zanatta sobre o caso.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Venezuela: Chávez, a Crise e a Geração de Direitos

Marcha pró-Chávez em Caracas, ontem, 10/01
O presidente venezuelano Hugo Chávez está gravemente doente. Depois de sua quarta vitória eleitoral, Chávez, que governa aquele país desde 1999, teve uma séria recaída de um câncer que enfrenta há mais de um ano -- e agora está em meio à dura recuperação de uma cirurgia delicada. Sem condições de tomar posse para aquele que seria o seu quarto mandato, e com seu terceiro mandato expirado, se impôs uma situação de indefinição: de um lado a oposição surge com o argumento de "grave violação constitucional" -- a mesma oposição que, em 2002 deu um golpe de Estado contra Chávez, chegando até mesmo a sequestra-lo --, enquanto a suprema corte local entendeu pela constitucionalidade do adiamento da posse (cuja decisão, na íntegra, pode ser lida aqui).

Como aponta Jânio de Freitas, não é uma situação muito diferente daquele que nós, brasileiros, vivemos em 1985, quando Sarney tomou posse no lugar de Tancredo, falecido pouco depois de ter sido eleito presidente pelo colégio eleitoral. Naquela situação, era impensável que Sarney, vice da chapa, não tomasse posse no lugar do falecido titular, uma vez que havia uma intensa comoção popular em prol da redemocratização do país, parte de um processo que vai da resistência à Ditadura, inclui o  movimento pelas Diretas Já! e culmina com a própria eleição de Tancredo -- ainda de forma indireta -- contra Paulo Maluf, o candidato da Ditadura.

Por uma análise jurídica que se prende meramente às formas, a posse de Sarney e o adiamento da posse de Chávez parecem violações. Mas não são. Ambas as decisões são a confirmação jurídica de uma intensa, e incontestável, afirmação do desejo democrático da multidão: ela quer, e precisa, instituir um arranjo político que sustente a constituição de seus direitos e tal fato, naturalmente, não pode ser posto em função de uma formalidade. Grosso modo, apesar de todas as maledicências ditas contra Chávez, é impossível negar os avanços e melhorias vistos nesses mais de dez anos -- em oposição a um processo de mais de vinte anos que, não obstante toda a pujante produção petrolífera local, fizeram a qualidade de vida na Venezuela se estagnar violentamente. Nos últimos quatorze anos, erros e acertos foram cometidos, mas todos eles se deram em função da geração de direitos para os desvalidos.

Alguém fará referência a certos aspectos militaristas e populistas de Chávez, mesmo seu apoio à regimes autoritários em nome de uma aliança anti-ocidental, mas elas são componentes laterais de um movimento complexo que, com o perdão da ousadia, é de natureza firmemente democrática: o Chavismo jamais deixou de consultar a população -- e de respeitar sua palavra, mesmo quando ela lhe foi negativa --, de se submeter a constantes votações (entre mais de uma dúzia de eleições e consultas populares, perdendo apenas uma) e outros quetais. Quem deu golpe foi a oposição, que na quartelada de 2002, apesar do apoio americano, se viu isolada no continente -- inclusive, e sobretudo, pelo Brasil então governado por FHC --, além de, logo adiante, ter aberto mão de disputar um pleito democrático, o que lhe deixou sem representação durante uma legislatura.   

Comparações e eventuais antagonização entre Chavismo e Lulismo permeiam o imaginário latino-americano. A verdade é que ambos os movimentos decorrem do mesmo processo -- a luta por libertação da praga neoliberal, que infestou o continente no período posterior à Guerra Fria --, sempre estiveram estrategicamente juntos -- embora tenham feito opções táticas diferentes de como atuar no Estado -- e ambos legaram um quadro social e político melhor para a sua gente -- e agora, por motivos diferentes, enfrentam uma fase decisiva na sua existência. Sempre haverá a discussão se teria sido melhor Chávez ter evitado polarizações, como fez Lula, ou se Lula deveria ter confrontado mais, como fez Chávez, mas o exercício do poder de Estado por uma força democratizante não é uma ciência exata ou uma construção meramente teórica.

É verdade que Chávez não resolveu muitos problemas e criou alguns. Como o da demasiada personalização do movimento que, incontestavelmente, lidera -- o que atrapalha o surgimento de novas lideranças e o engessa pela hierarquização. Tampouco constituiu uma alternativa efetiva ao modo de organização estatal, organizando tudo nos termos de um tradicional republicanismo. Seu apoio a governos como o do [falecido] Kadafi na Líbia ou ao de Ahmedinejad Irã, em nome da cruzada de confronto ao imperialismo americano, por outro lado, sempre colaboraram para a propaganda internacional contrária ao seu governo -- ao passo que o confundia com a figura de regimes e governos que, ironicamente, jamais colocariam em prática instrumentos democráticos como aqueles vistos na Venezuela, cotidianamente.

No entanto, o líder venezuelano executou mudanças relevantíssimas no seu país. Hoje, a Venezuela é o país menos desigual da América Latina -- registrando uma queda de 0,48 para 0,38 no índice de Gini --, erradicou em 2005 o analfabetismo, ampliou a rede de ensino superior local e, grosso modo, está atravessando a atual crise econômica com algum êxito. No mais, Chávez colocou a Venezuela no mapa-mundi, depois de décadas de ostracismo: uma vez eleito, seu governo não apenas se empenhou na democratização interna como, também, na integração latino-americana e na constituição de organizações internacionais como a União das Nações Sul-Americanas. Em outras palavras, o governo Chávez foi pioneiro na democratização continental, depois da onda de ditaduras militares -- impostas por Washington em quase todos os países do continente -- e da imposição do neoliberalismo de canto a canto. 

As "décadas de ostracismo" aliás, correspondem à época em que o país vivia sob uma falsa democracia, em decorrência do chamado Pacto de Punto Fijo -- documento fundante da IV República Venezuelana, uma ditadura disfarçada na qual os dois grandes partidos, a AD e a Copei, monopolizavam o jogo eleitoral por conta da alta cláusula de barreira que barrava os novos partidos além de outras regras cômodas, cujo efeito prático era a manutenção da população local à margem do processo decisório; um modo, digamos, limpo de produzir os mesmos efeitos que as ditaduras operavam no continente.

É fato que a situação da Venezuela é delicada e incerta. Mas grande parte das vozes que se erguem contra Chávez internamente, sem dúvida alguma, estão voltadas contra suas virtudes e não contra seus defeitos, basta conferir a biografia e o ideário defendido pelos ideólogos da oposição local. Chávez e o movimento bolivariano, apesar do discurso, ainda passa longe de pôr em prática medidas socialistas ou comunistas, mas ele incomoda como poucos o capital global numa época em que o poder das finanças devora direitos sociais mesmo na Europa. A ofensiva contra Chávez, nos termos atuais, é, portanto, uma ofensiva contra a democracia venezuelana e contra a democracia global.

P.S.: 68,5% dos venezuelanos é favorável ao adiamento da posse.

domingo, 6 de janeiro de 2013

O Mundo Jurídico, a Mulher e o Suicídio

Hera, a Deusa das Mulheres, e Prometeus (daqui)
No final de Dezembro, uma notícia chocante surgiu no noticiário: uma estudante de Direito de 21 anos se suicidou de forma dramática, algumas semanas antes. Ela se jogou do sétimo andar do prédio onde vivia, em um ato desesperado causado pelo trauma de um possível estupro sofrido por ela, vejam vocês, em uma festa de confraternização do escritório onde estagiava, o prestigioso Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados, no final de Novembro. Para mim, tudo isso foi particularmente chocante: Viviane (sim, ela tinha um nome, era um pessoal real) partiu no dia do meu aniversário e eu a conhecia -- estudava na mesma faculdade que eu, cursava o ano anterior e se formaria este ano, além de ter sido minha monitoranda em Direito Constitucional à noite.

A notícia foi chocante, não apenas pelo fato em si como também pela demora em registra-la: os jornais deram a notícia quase um mês depois, às vésperas da virada de ano, quando as pessoas estavam pouquíssimo preocupadas com o noticiário. Antes disso, aliás, o silêncio era sepulcral, ninguém sabia explicar a situação ao certo e tudo corria à boca pequena -- boatos volta e meia circulavam e depois sumiam. Esse silêncio, aliás, não é sinônimo algum de respeito à memória de Viviane, como constou em nota do referido escritório, mas exatamente o contrário como bem pontuou Ana Rusche em excelente artigo sobre o caso.

Este post, evidentemente, não se volta aos desdobramentos policiais e judiciais do caso, embora espere e se empenha para que as investigações corram bem e se apure, enfim, o ato terrível que levou Vivane ao suicídio. O ponto que me interessa, no entanto, é que uma menina morreu, da forma mais bárbara que se pode conceber: ela foi morta em vida por um ato absurdo que a obrigou, em um desfecho trágico, a precisar pôr fim à própria vida para extirpar uma dor insuportável; mas nada disso brotou do nada, ou deixa de estar inserido num contexto histórico pouco alentador.

Esclarecer isso e acabar com práticas sociais que, no limite, levam a tragédias como essa é o que exige o nosso (escritórios, estagiários, as faculdades de Direito, a sociedade etc) empenho agora. A nossa missão certamente não é  preservar a nossa própria imagem -- como talvez prefira fazer, erradamente, o escritório onde ela estagiava ou mesmo as pessoas ligadas ao meio jurídico em relação à imagem geral do próprio meio. Vidas importam, imagens não. O choque aqui é o choque não da surpresa, mas do previsível trágico acontecendo como em um pesadelo ou uma profecia.

No entanto, sublinhe-se que o imaginário do mundo jurídico na era do capitalismo cognitivo é um tanto diferente. O cenário hipercompetitivo, machista e explorador das grandes corporações do ramo aponta para um sentido diferente. Os estagiários, que quase sempre arcam com a pior parte do trabalho -- nem sempre tendo em troca os devidos ganhos -- são como as criancinhas que trabalhavam na tecelagens no início da era industrial: corpos suficientemente aptos a serem convertidos em meros objetos daquela atividade (no lugar de dedinhos suficientemente pequenos para fiar, cérebros privilegiados ou corpos suficientemente bonitos para serem desfrutados).

Há um nexo de relações sociais perversas. Muito trabalho, poucos ganhos -- exceto a promessa eterna de efetivação, o sonho com o paraíso profissional -- e uma exploração que se impõe ao quadrado sobre as mulheres -- além do cérebro que trabalha, há o corpo desfrutável. Nada disso é propriamente fruto de uma deliberação política, mas decorrência de um fenômeno social derivado da estrutura de produção -- de soluções jurídicas no caso -- que corre sob vistas grossas de todos. São omissões que ocorrem aqui, ali e em toda parte. Uma responsabilidade pessoal mítica -- entre partes inteiramente assimétricas -- volta e meia é invocada para expiar a culpa de todos.

No fundo, a questão não é, por suposto, moral. Não é um disputa sobre de quem é a culpa -- em sentido amplo, psicológico ou jurídico --, quem é a vítima, quem merece ser punido, quem mereceu o quê. É uma problemática que envolve a produção, o modo de produção contemporâneo, quais sujeitos e quais objetos são produzidos, tanto para trabalhar nisso quanto para consumir o produzido. Não é só qual o motivo de nosso sistema empurrar tanta gente para fazer um curso de Direito, onde e como alocar essa gente durante o curso e depois dele, mas sobre o, digamos, tecido conjuntivo simbólico e cultural que é construído para sustentar isso. 

Isso tem a ver com a precarização da condição do advogado e do estudante de Direito. A atividade advocatícia, que remete ao mundo antigo e sobrevive desde então, encontrou uma nova configuração no capitalismo cognitivo como uma espécie de fábrica necessária para dar solução aos atritos -- privados ou públicos -- inerentes ao sistema. Em uma atividade intelectual, na qual estaríamos livres da exploração do corpo, aparentemente restrita ao trabalho manual, encontramos a forma mais sofisticada e definitiva de exploração -- social, difusa, invisível, anestésica, anônima: ela está impregnada nas práticas cotidianas e é capaz de penetrar nas nossas cabeças; tanta ansiedade, medo, ressentimento para conseguirmos nossos lugares.

Se o caso particular implica na responsabilidade de alguém -- por ação ou omissão, inclusive jurídica --, o problema mesmo é menos sobre culpa ou implicações morais e mais sobre o que é esse mundo contemporâneo, qual a forma que a máquina capitalista contemporânea tomou e como não estamos, nem podemos, estar alheios a tudo isso.  Nós temos tanto fetiche na denúncia da exploração do corpo feminino, e dos corpos em geral, no mundo muçulmano ou mesmo oriental -- como no caso do estupro que consternou a Índia, recentemente --, mas não conseguimos enxergar nossos próprios problemas -- ou talvez só consigamos vê-los, ou admiti-los, quando surgem na forma de arcaísmo, portanto, como raridades. 

Numa época de imagens -- como em uma casa de espelhos -- e de imaginários, é hora de recuperar uma paixão pelo real: e a realidade é aquela que remete ao fato de que muito mudou, mas apenas de maneira formal no que toca à contínua exploração do corpo. Essa realidade não pertece, apenas, ao interior do Brasil ou às periferias metropolitanas, mas à vida daqueles que estão inseridos em cursos de ponta em boas universidades. Esse é o nosso cotidiano, esse precisa ser o motor da nossa luta.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

No: a Alegria que já vem no Chile, Lula e Collor

No do cineasta chileno Pablo Larraín -- estrelado pelo excelente Gael García Bernal - é um filmaço. E o é por vários motivos. O primeiro deles é por seguir a esteira (exitosa) do cinema chileno contemporâneo, provando que a de união de qualidade cinematográfica com uma reflexão profunda pode resultar em um filme leve, instigante e assistível pelo grande público -- como um experimento capaz de se infiltrar pela massa desmassificando-a. O outro, é a reflexão propriamente dita, um belo panorama dos paradoxos da redemocratização chilena e, por tabela, da redemocratizaçao latino-americana, o que diz respeito a nós brasileiros, inclusive.

O realismo da película é tremendo. Baseada no texto de uma peça do dramaturgo chileno Antonio Skármeta -- jamais encenada, no entanto --, ela trata da campanha político-midiática em torno do plebiscito popular que Pinochet foi obrigado a convocar, por pressões internacionais, para deliberar sobre o futuro de seu regime: uma vez distendida a Guerra Fria com a perestroika, o mesmo Ocidente que patrocinou o golpe chileno agora constrangia, ironicamente, o regime por ele instaurado a realizar uma votação legítima, na qual os chilenos poderiam escolher entre a manutenção do jugo de Pinochet ou a democracia representativa. 

E a possibilidade de servidão voluntária jamais escapou do horizonte desse episódio histórico, o que é refletido com sagacidade pela lente de Larraín: sim, a disputa se daria em torno do programa eleitoral televisivo e, sim, as massas poderiam simplesmente escolher pelo velho general, uma vez que quinze anos de ditadura e de silêncio total das oposições seriam reduzidos a um binarismo: sim ou não a Augusto Pinochet Ugarte. A trama se sustenta como uma narrativa quase documental, na qual imagens reais da campanha se mesclam à ficção, tudo dentro da opção ousada de Larraín em filmar tudo como se fosse uma velha gravação dos anos 80. 

Bernal arrebenta no papel de René Saavedra, um publicitário que retornou do exílio no México, devido a perseguições sofridas pelo pai, e acaba contratado para ser consultor da campanha do Não, até se envolver de corpo e alma no processo.Saavedra precisa tornar a campanha do Não publicitariamente viável, o que o põe em confronto, a princípio, com a própria coalizão anti-Pinochet, que insiste em um programa carregado e pessimista, voltado à denúncia dos crimes do regime -- depois de 15 anos nos quais qualquer oposição foi calada dentro do Chile.

Existem dois grandes dilemas que decorrem do choque entre o discurso publicitário e o "político": até que ponto a mera forma não impõe uma materialidade, o quanto é funcional assumir uma forma massificada para passar, dessa vez, uma mensagem politicamente positiva como se forma e matéria estivessem desvinculadas? Como despertar o desejo dos eleitores que podem muito bem optar pela manutenção do regime por meio de sua legitimação nas urnas? Os dois eixos passam por questões importantes: a verdade e a produção da verdade na política e, depois, o desejo e a produção do desejo na mesma esfera. As massas creem naquilo que antes de mais nada elas querem crer. 

Não existem soluções fáceis no drama recheado de humor negro de Larraín. A vitória do Não no plebiscito, como a História nos contou, possivelmente não teria ocorrido sem um instrumento potente, como a moderna linguagem da propaganda, capaz de mobilizar os simbolos da sociedade chilena. Saavedra deu um giro copernicano na campanha, fazendo o dizer não a Pinochet tornar-se um sim a um novo Chile que só pode nascer pela alegria (que já vem, como no jingle) -- mas, por outro lado, qual o custo de uma vitória como essa, que engendra essa mesma alegria como em um comercial de Coca-Cola, e onde desemboca essa vitória? 

A conclusão de Larraín é sutilmente ácida, como o próprio desfecho do filme demonstra, certamente muito menos elogiosa do que podem supôr os ex-presidentes chilenos que assistiram à película em uma sessão especial. O esgotamento do modelo pós-Pinochet, um arranjo neoliberal cujo esvaecimento antes de ser de Piñera -- o desastrado e populista conservador que assume o poder depois de anos de derrotas da direita --, é das forças anti-Pinochet, inclusive da esquerda, que gerenciaram o privatismo e o mercadismo para o "bem" durante esses anos -- mas aquilo, de alguma maneira, já estava ali.

É possível traçar um paralelo entre esse episódio e a disputa entre Lula e Collor, na primeira eleição livre do Brasil, realizada um ano após ao plebiscito chileno. Embora não fossemos mais uma ditadura militar, é óbvio que o estava em jogo é que a nossa (aparentemente) ilimitada liberdade nas urnas nos punha entre optar pela manutenção do jogo conservador e elitista (na figura de Collor) ou no novo (com Lula e o PT). E lá estava tudo como no Chile: a hegemonia da televisão, a linguagem dos comerciais (o ápice da cultura de massa) e o risco iminente da manutenção do mesmo, por mais absurdo que fosse.

Certamente, Collor teve uma consultoria midiática um tanto melhor do que o regime de Pinochet, enquanto Lula, por outro lado, embora tenha feito uma campanha bonita (ainda que humilde), não se vergou à propaganda nos moldes da campanha do Não a Pinochet no Chile e, apesar do apoio de artistas e celebridades, perdeu.

Por aqui, a esquerda [positivistoide] se deparou com aquilo que considerava uma derrota "anti-histórica" -- para usar aqui as palavras de Leonel Brizola --, enquanto no Chile as forças democráticas experimentaram algo que Lula provaria só em 2002 pelas mãos de Duda Mendonça. O que No nos dá a pensar são os paradoxos da "nova política" latino-americana, no qual a redemocratização se dá, não por coincidência, na era do espetáculo triunfante -- e mais paradoxal do que glorioso -- dos mercados e a publicidade de massa dá lugar a uma política feita de encontros reais na praça pública. Como escapar da captura?

A resposta não é fácil. A prova dos nove é mesmo a alegria, e só ela pode mobilizar eleitores que podem desejar, como desejam frequentemente, o fascismo ou mesmo a conservação de estruturas políticas e socioeconômicas opressoras -- a narrativa da "verdade" no velho sentido socialista não rende voto --, enquanto, por outro lado, a linguagem publicitária que envolve a todos -- direita, esquerda, centro e quem não é nada disso -- como instrumento definitivo de produção de desejo pode ditar um conjunto de práticas que, no mínimo, estabeleça limites estreitos que sujeitam as forças políticas à homogeneidade conservadora.

Uma esquerda que aposte na consciência se perderá nas suas ilusões de verdade transcendental. A verdade é produção histórica e é o desejo que move montanhas, não a consciência, pois ela não passa do conhecimento da existência do que desejar crer como existente. Mas, ao mesmo tempo, aceitar os instrumentos e as alavancas midiáticas para mobilizar o desejo é uma armadilha sem tamanho.

Não resta dúvidas de que o Chile pós-Pinochet seja enormemente melhor -- embora sem uma reforma e uma radicalização democratizante da esquerda, tudo estará perdido e isso passa pela cultura -- e o mesmo podemos dizer do Brasil governado pelo PT -- apesar de que sem uma política democratizante para a área de comunicações e cultura, Dilma, herdeira direta do projeto, estará fadada a tropeçar nas próprias pernas a menos que se torne, talvez, aquilo que seus ora adversários já são.

P.S.: foi o último filme que eu vi em 2012 e o primeiro que eu comento em 2013. Atualíssimo, por sinal.