quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

As Prisões Privadas, Mercantilização da Vida e o Robocop

-- Está em construção, no estado de Minas Gerais, a primeira "prisão privada" do Brasil: viveremos sob os desmandos de uma indústria prisional movida pelo negócio lucrativo de prender gente? --

No Brasil, até hoje, prisões são construídas e geridas pelo poder público. Por força da Constituição de 1988, largamente garantista, instituições prisionais deveriam ser o destino de pessoas condenadas depois de terem acesso ao devido processo legal, sob plena presunção de inocência -- e, eventualmente, também para presos provisórios ou em flagrante delito. Nada mais de tortura ou maus-tratos, só a justiça e nada mais. Um doce devaneio idealista, sem dúvida. A realidade material das relações sociais brasileiras fez isso cair por terra. A nossa desigualdade intrínseca, a precarização nas condições laborais (desemprego, queda dos salários) nos anos 90, a favelização das cidades pela carência de políticas habitacionais dispararam a violência, o que foi respondido com o elitismo do judiciário, o punitivismo alimentado pela mídia e o desejo de exceção das classes média e alta. O resultado disso é que, hoje, temos uma das maiores populações carcerárias do mundo

Grande parte dos nossos presos são provisórios -- isto é, nem sequer foram condenados, mas o judiciário, que deveria tratar tal questão como exceção, a converte em regra:  todos passam a ser culpados até que se prove o contrário. Tais presos provisórios, em geral, respondem a processos por crimes patrimoniais de pouco potencial ofensivo. São negros e/ou pobres. Se o chicote da tortura parou para os brancos e bem-nascidos com o fim da Ditadura Militar, para negros e pobres, tudo continua como sempre foi.

O sistema prisional, então, se tornou um problema para o Estado pela sua saturação. Grandes organizações criminosas, como o PCC, nasceram de dentro dos presídios, enquanto rebeliões e quetais perturbam a boa sociedade. Se prisões são como infernos reais, o inferno entrou em colapso, abalando todo o edifício teológico-político no qual se constitui nossa forma de sociedade. Eis que alguns burocratas passaram a exclamar, há algum tempo, que privatizar presídios seria uma boa saída. Afinal, o capitalismo é uma máquina de síntese quase perfeita, logo, entregar prisões às corporações, com seu interesse privado, resolveria as coisas. Eles lucrariam de algum com modo com a construção e gestão dos presídios e tudo passaria a correr bem.

É desse processo que nasce o pioneiro complexo prisional privado de Ribeirão das Neves, em Minas Gerais. A construção da referida prisão se dará por meio do pouco claro regime de Parceria Público-Privada, cuja legislação aprovada no governo Lula deveria ser uma forma de lidar melhor com o elemento privado, sobretudo para a construção de grandes obras de infraestrutura, mas acabou longe disso: ela termina por consistir em uma nova forma de gestão privada das obras públicas. A medida específica da construção da prisão mineira é do governo local, tucano, sempre tão afeito a privatismos vários.

O referido complexo obedecerá o modelo inglês, segundo seus idealizadores. Talvez isso seja só um jeito pomposo para dizer que não terá o modelo americano, uma vez que as empresas não lucrarão com o trabalho dos presos -- uma bobagem sem tamanho, haja vista que não poderíamos ter, pela natureza do nosso sistema jurídico (da legislação penal à administrativa), nada parecido nem com o primeiro modelo, nem muito menos com o segundo (os presos só seriam escravos penais do consórcio concessionário no caso de um desrespeito mais flagrante ainda da Constituição). O que teremos, afinal, é um originalíssimo modelo brasileiro, uma vez que ele incorpora modelos estrangeiros à realidade local de um modo, não raro, contraditório com as próprias necessidades e diretrizes.

Enfim, da mesma forja que produziu a antropofagia, potente e libertadora, também nasceu também uma forma de síntese colonizadora que serve ao poder. O nosso sistema de controle de constitucionalidade -- o juízo de exceção --, por exemplo, é uma mistura do europeu com o americano sem ser uma coisa ou outra. É, pois, brasileiríssimo. Mas é brasileiro no sentido de ser um converter-se em mundo do Brasil -- e como nenhum país faz tanto isso, nada mais brasileiro, afinal. Uma antropofagia é um devir-mundo do Brasil que é exatamente o contrário e o antagônico: é devorar o mundo por o amar e não se deixar devorar sadicamente por ele.

O sadismo aqui está no fato de que prender pessoas, de ato estatal, se tornará um negócio qualquer, o que torna tudo pior. Existirá um cliente -- o Estado, munido com o erário público --, uma demanda permanente da parte dele -- encarcerar quem sai da linha no regime --, é só trabalhar. O problema não está no fato de que a iniciativa privada não possa melhorar presídios, está no fato de que prender mais gente e ter gente "penitenciável" se tornará ótimo. Não será mais interessante não ter gente presa. E quem será preso não serão os outros, seremos todos nós. O lobby punitivista grassará e terá dinheiro para tanto. Na prática, a gestão da administração penitenciária, monopólio do Estado, será delegada de forma branca a um consórcio privado por uma derivação lógica do processo: ainda que o Estado não vá delegar nada, na prática, o direito de gerir o presídio permitirá que um consórcio privado faça as vezes do poder público em certa medida.

Ironias do destino, é uma fábula semelhante à clássica série cinematográfica Robocop (um dos últimos exemplares da ficção científica futurista crítica dos anos 80): em um futuro próximo e pós-apocalíptico (não por uma catástrofe, mas pelo desenrolar dos fatos, sob o neoliberalismo, no qual até o excesso de raios ultravioleta é ensejo para o comercial de um protetor solar ridículo) uma corporação gerencia uma decadente Detroit -- a OCP, Omni Consumer Products -- e usando os restos de um policial morto em ação, ela faz um ciborgue policial que se torna seu carro-chefe de sua política de mercantilização da segurança-pública e gentrificação da cidade. Enfim, com essa medida, o Brasil chega ao futuro e o futuro é o passado ou a realidade histórica de opressão em sua dimensão maquínica.

Prisões privadas são o fecho de um movimento que já está posto com a privatização da gestão dos espaços urbanos (pelo conglomerado de imobiliárias) e rurais (pelo agronegócio), somado a universalização pública da segurança privada (a universalização das empresas de segurança e seus aparatos por toda a parte) e a universalização privada da segurança pública (a polícia republicana convertida mais e mais em milícia de classe). Não há catástrofe. Não há barulho. É o funcionamento cotidiano e silencioso do sistema que nos conduz a tal futuro, que mais e mais se torna presente. A única saída para a violência radical da nossa sociedade, e de produção, é uma transformação de sua organização produtiva e social, coisa que se viu, em pequena medida nos anos Lula, com uma queda de 8% na violência homicída: envolver a base e a ponta do processo dentro das mesmas relações materiais é aumentar o problema, não diminuí-lo. Só a constituição de novas políticas sociais pode efetivamente mudar isso, sempre tendo em mente que tornar uma sociedade violenta é fácil, mas o contrário, nem tanto.


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