segunda-feira, 22 de abril de 2013

Julgamento do Carandiru: Do Domínio do Fato ao Fato do Domínio

André Dahmer, indispensável como sempre

O julgamento de 26 policiais que participaram do massacre do Carandiru, ocorrido em 1992 no presídio homônimo da capital paulista, terminou com a condenação de 23 deles à pena máxima. Trata-se do julgamento do primeiro bloco de réus, os quais totalizam 84. O governador paulista à época dos fatos, Luiz Antônio Fleury Filho, sequer sentou no banco dos réus, figurando apenas entre o rol de "testemunhas". 

O referido massacre foi o ponto limite do processo de colapso do então maior presídio do país: tratou-se da resposta sangrenta dada pelas forças de segurança estaduais à mega-rebelião promovida pelos presos. Na ocasião, além da superlotação, inúmeras epidemias devoravam a população carcerária local, inclusive de AIDS. Largados para morrer, os presos se amotinaram.

Do morticínio de 111 presos, decorreu uma fabulosa reação entre toda a população carcerária paulista, o que resultou na fundação do PCC, poderosa organização para-estatal, que hoje exerce domínio territorial em quase todos os presídios e territorialidades do estado.

O estado bandeirante deu mostras, na ocasião, que a prática de atos de exceção desconstituintes transcendem o binarismo democracia/autoritarismo: em plena vigência regular das instituições democráticas, praticou-se a mais brutal atuação das forças de segurança paulistas em tempos. Mais grandiloquente e pública do que, até mesmo, qualquer uma de suas controversas ações nos tempos da ditadura militar.

Não é o caso de alimentar a defesa de uma punição penal de quem que seja como meio de responder a um problema dessa ordem. No entanto, pela dogmática do direito penal vigente, a punição dos policiais, por terem matado civis desarmados em massa -- no cumprimento de ordem manifestamente ilegal -- não é equivocada -- a premissa talvez sim. Causa curiosidade, no entanto, como o governador passou incólume nesse processo todo.

Ironicamente, depois do julgamento do Mensalão, no qual alguns réus daquele caso foram condenados pelo STF sob os auspícios da "teoria do domínio do fato" -- ou de uma aplicação particular sua, sequer avalizada por um de seus principais idealizadores -- vemos que, conforme a figura política posta em questão, o domínio do fato é outro.

O ex-ministro Bresser-Pereira indagou há pouco: será que a teoria do domínio do fato passaria a ser aplicada pelo judiciário brasileiro, a partir do julgamento do mensalão, também contra dirigentes de corporações envolvidas em casos de corrupção? Dificilmente. Se nem Fleury o foi, mesmo como ele admitindo sua "responsabilidade política" pelo massacre, quem dirá CEO's de organizações envolvidas, por exemplo, em meros crimes financeiros.

E a nossa questão aqui não é defender a universalidade da punição penal, mas de apontar como, na realidade concreta, todo punitivismo é essencialmente seletivista, salvo no caso de sadismo suicidário -- isto é, numa situação cômica como a da charge que ilustra este post. 

Se o domínio do fato foi forçado às raias da irresponsabilidade pelo STF, o judiciário paulista, sistematicamente, responde com sua não utilização contra o ex-governador paulista. Se os policiais em questão cometeram algum crime, foi o de obedecerem cegamente a uma ordem insana. Sem a ordem -- e o comando da polícia militar é político e civil desde 1988 -- não seria nem mesmo o caso de puni-los.

Para além de um debate abstrato sobre aplicação e cabimento da teoria do domínio do fato, a concretude das relações materiais nos empurra para outra direção: nunca há domínio do fato, mas o puro, simples e pungente fato do domínio -- seja de um governador, procurador/promotor de justiça, juiz ou soberano de um momento. 





sábado, 20 de abril de 2013

A Explosão da Violência em SP e o Mito da Maioridade Penal

Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas...

(Rosa de Hiroshima, Vinícius)

Na esteira de sua infindável crise de segurança pública, o estado de São Paulo viu-se nos últimos dias diante do debate de leis punitivas mais duras, sobretudo contra menores. O estopim foi  um latrocínio chocante: um jovem de 19 anos foi morto a sangue frio na entrada do prédio em que morava durante um assalto. Ele sequer reagiu. O responsável pelo crime é um menor de idade. O episódio foi o arremate terrível dessa nossa grande tragédia cotidiana. Mas há mais em torno disso tudo do que parece.

O governador Geraldo Alckmin, pressionado, respondeu dizendo ser favorável à redução da maioridade penal e, assim, recebeu amplo destaque na grande mídia: é tudo culpa da lei em abstrato, como se mudanças jurídicas, por elas mesmas, operassem transformações reais. Agora, ele recua, ameniza o posicionamento, mas foi ao Congresso propondo mais dureza contra menores infratores. A falta de políticas públicas, no entanto, não encontra espaço no mesmo noticiário.

Quando o ministro da justiça José Eduardo Cardozo fez referência à inconstitucionalidade da proposta de redução da maioridade penal, a mídia corporativa apresentou a declaração como se fosse opção política. Não é. A redução da maioridade penal é inconstitucional mesmo. O que Alckmin propôs é falso. Tanto que teve de voltar atrás. 

Mesmo um conservador como Michel Temer é capaz de imaginar a falácia por trás disso tudo:"Li hoje um argumento para reduzir a maioridade para 16 anos, mas, e daí, se o sujeito tem 15 anos e meio, e comete um crime, vamos reduzir para 15 anos? Não sei se é por aí a solução"


E nem ao menos em abstrato é válido: se a questão é punir, hoje, jovens condenados a "sanções sócio-educativas" recebem, na prática, um suplício tão ou mais pesado do que maiores de idade enviados para prisões convencionais -- quando sua internação deveria voltar-se para a reeducação e reinserção sociais. Ambas, no entanto, são pura punição. E não tornam nossa sociedade menos cruel.

Isto é, a proposta do governador é impossível de ser cumprida juridicamente e falaciosa materialmente: não é por falta de punição que jovens cometem infrações. E mesmo que fosse, ainda, ele teria de investir em uma estrutura de servidores para a área, coisa que a rigor não existe em área alguma do serviço público paulista. Recebe-se mal e as carreiras vão pior em toda parte da administração pública estadual. Para além de planos e projetos ruins, por certo, ainda faltaria quem os executasse.  

O fato é que a violência simplesmente explodiu no estado desde o ano passado. Mês a mês, a quantidade de crimes de todas as naturezas tem aumentado. O sucesso da política de paz armada foi posto em xeque. Essa política é o resultado da articulação entre uso massivo da polícia militar, ministério público inquisitorial, judiciário inclemente e sistema prisional infernal -- e relações obscuras e "pragmáticas" com organizações criminosas que mantêm domínio territorial nas áreas mais pobres do estado. 

Há uma dura e cruel ironia nisso tudo, para além do crime que motivou toda essa conversa: em nossa sociedade, jovens, sobretudo negros e pobres, são o grupo mais expostos à violência homicida. É o grupo mais vulnerável em termos de homicídios. E sofrem violência social e de Estado. São mortos em ações clandestinas ou mesmo oficiais. E, na contramão disso, não são os jovens a cometerem a maior parte dos crimes.

O corpo infantil do jovem é para onde é investido essa violência. Como sempre foi, sobretudo desde a Revolução Industrial. Há algo de perverso nisso.

Existe um contrassenso aí também a respeito das vitimas e autores. Independentemente da enorme carga trágica do crime em questão. Não se costuma pedir punições duras contra jovens ricos acusados de crimes contra pobres ou desvalidos. Tampouco em razão de crimes cometidos entre jovens da mesma classe. Mas as coisas mudam quando há vítima e autor correspondem, respectivamente, à camada média/alta e baixa da nossa sociedade.

Para piorar a situação, existe uma blindagem eleitoral do governo de São Paulo. Custe o que custar. Mesmo que isso signifique não enfrentar as causas da violência. E, em certa medida, fazer essa blindagem por meio de itens de consenso social, funciona: as pessoas têm medo da violência em cada esquina e reagem com o desejo de punição contra o outro, é quase automático. 

É até mais do que medo. É desespero. E é preciso segurança absoluta, total. Mas raramente os meios empregados correspondem à sua justificativa discursiva. A crise paulista tende a se arrastar e pode se agravar mais e mais. A aparente tranquilidade construída na última década repousa em areia movediça e enfrentar isso é, antes de mais nada, lutar contra os nossos próprios demônios interiores.




terça-feira, 9 de abril de 2013

2014: Entre a Economia Doméstica e as Domésticas na Economia

"O medo é de que isso nunca fosse parar. Se davam férias remuneradas aos operários, todos os privilégios burgueses estavam ameaçados. Os locais frequentados eram como questões de território. Se as empregadas vinham para as praias de Deauville era como se, de repente, voltássemos à era dos dinossauros. Era uma agressão. Pior do que os alemães. Pior do que os tanques alemães chegando na praia! Você entende? Era indescritível!"
(Gilles Deleuze, in o Abecedário, entrevista-documentário dada a Claire Parnet).

O cenário de 2014 se desenha. O debate eleitoral já foi adiantado, embora não traga nada de, substancialmente, novo em relação a 2010. O mundo se agita: a Coreia do Norte balança a Ásia, Thatcher morreu depois de uma longa demência -- deixando reminiscências sobre o que o globo tornou-se. Aqui, o grande debate é qualquer coisa relacionada aos direitos civis, alguns avanços de lado, muita demagogia de outro -- o que dá mais votos, o setor da nossa sociedade que quer ser mais livre ou que quer que os outros sejam menos livres? Passado isso, temos a questão das domésticas, que ganharam, como já não era sem tempo, direitos trabalhistas semelhantes aos dos demais trabalhadores empregados.

Empregadas domésticas eram uma espécie em extinção. Sua função, uma versão moderna das escravas de dentro-de-casa, as mucamas, resistiram ao tempo e são uma expressão de como o capitalismo articula formas pré-capitalistas na sua atualidade. As melhoras sociais dos últimos anos, no entanto, produziram efeitos interessantes: a proporção de empregadas domésticas caiu fortemente, enquanto seus salários se elevaram em 86% entre 2006 e 2011. A queda aguda do desemprego, a recusa ao trabalho mais pesado e as novas condições da distribuição do trabalho no Brasil produziram não só uma onda de evasão do trabalho doméstico como uma tendência de alta nos ganhos -- pela expectativa de redução drástica na oferta dessa "mão-de-obra".

Uma medida como equiparar os direitos das domésticas aos demais empregados, olhado sob certo aspecto, não deixa de ser conservadora -- daí a apologia à medida por parte de figuras como Elio Gaspari e Delfim Netto --, uma vez que não deixa de garantir, no futuro, condições mais favoráveis para atrair, ou manter, mão-de-obra no setor. Acabar com o trabalho doméstico no Brasil de hoje seria apenas o caso de manter, inercialmente, os ganhos laborais gerais em alta, sem dar vantagens às domésticas, pois, assim, elas continuariam a deixar a profissão. Como sabemos, um direito trabalhista é uma complexidade pura: ao passo que tem uma natureza estabilizadora da ordem, pois oferece um quinhão maior aos trabalhadores para que mude tudo para nada mudar, por outro, os potencializa, permitindo que eles sejam capazes de exceder sua condição vil. 

Os adeptos de um capitalismo científico -- mezzo-keynesiano, mezzo-positivista -- como Delfim acalentam, quem sabe, a possibilidade um capitalismo sem burguesia, administrado tecnicamente, com trabalhadores profissionais e sem arcaísmos. Não raro, eles se colocam em rota de colisão com os liberais por esse motivo. Como aqui.

Trata-se, também e sobretudo, de um tema incômodo que atinge em cheio o funcionamento da nossa sociedade. Pega tanto a herança dos tempos da escravidão, atravessa a questão de gênero e, de quebra, atinge o eixo dos discursos que dividem a nossa sociedade: tudo vira uma disputa entre "beneficiários" e "financiadores de benefícios", um discurso ao estilo dividir para conquistar a "classe média", tão não-proprietária quantos os trabalhadores e pobres, mas que precisa ser oposta a todos eles. Como se os tributos fabulosos pagos aos montes pela classe média fossem destinados a programas sociais -- e como sem os já existentes a situação não fosse pior. Mas esses setores médios, cujo estatuto social está em xeque, ficam ainda mais vulnerados.

Não à toa, mal aprovada a medida em questão -- por unanimidade, no Senado -- e a oposição liderada pelo PSDB já propôs a retirada do direitos, recém-conquistados, das domésticas. A empregada doméstica, uma herança própria à realidade colonial, patriarcal e escravocrata fundante do Brasil. Novamente, o argumento que vem à tona é o do risco de demissão em massa, não muito diferente daquele usado quando do fim da escravidão: o que será dos negros? Assim como uma série de questões que criam paralelos interessantes entre a abolição da escravatura e a laborização das domésticas como observa o professor Souto Maior.

A presença de uma empregada doméstica é algo de bastante profundo no ocidente. Como observa Agamben, os gregos reservavam a Casa, oikia, para a sua existência biológica, isto é, para as relações de produção, reprodução e autoprodução, onde um chefe de família, um despotes, era soberano diante de sua mulher, seus filhos e escravos; a cidade, a pólis, era o local de encontro desse despotes desinvestido de seu mando, no papel de cidadão, politikón, igual aos demais e cioso de alianças e acordos, o que abria espaço para a vida subjetiva, artística. Daí "economia", produzia-se em Casa: vivia-se de fato no ambiente doméstico e de direito fora dela, na praça pública.

O que complica essa coisa é quando a produção sai da Casa e se espraia. Aí, morre a mera possibilidade da antiga economia e entra em cena a economia política. Foucault acerta mais do que Agamben ao falar de uma biopolítica apenas na modernidade, haja vista que só na modernidade a produção deixa de ser doméstica, desconfinando a vida em seu aspecto animal. A economia, que era por natureza doméstica, torna-se da, na e pela cidade, feita muitas vezes sob um teto privado, mas não mais em torno da família ou da Casa. 

A economia política é, portanto, uma tensão extrema: de um lado a produção põe-se sob um processo de humanização, do outro, a vida política é animalizada. De toda sorte, a produção deixa a dimensão da filiação e toma outro caráter. A produção torna-se humana, o que demanda uma política que invista sobre as formas de vida (uma biopolítica). O que é um processo curioso e (aparentemente) contraditório em termos, mas cujo mistério se desfaz quando lembramos, graças a Marx, que o homem, em sua autofundação, na verdade não cria o homem, nem a cultura, mas o animal e a natureza. A saída da produção da Casa para a Cidade é o seu fluir ontológico, a retenção e confinamento, estes sim, eram antinaturais. 

O dizer de quem a doméstica era quase de família, e que sua condição é irredutível a de trabalhadora, é menos do que uma constatação de sua atividade, mantendo as atividades do lar, e mais da relação mantida entre a família e a doméstica, conforme amparado até bem pouco pela Constituição. Uma confusão entre vida biologicamente considerada e trabalho, algo que só poderia ser concebido em um arcaísmo pré-capitalista: mas como a família não é mais unidade de produção, a sustentação material da empregada se mantinha nos ganhos oriundos da relação capitalista na qual os membros da família se inseriam.

A situação era pré-capitalista no capitalismo. Ao mesmo tempo que é impossível uma sociedade livre ter gente que faça os trabalhos domésticos para os outros -- e quem faz os trabalhos domésticos de mesmo quem é pago para fazer para outrem? A insustentável leveza da semi-servidão, na falta de possibilidade de uma servidão perfeita, tornaram a situação anterior insustentável. Os efeitos antropológicos disso repercutirão no pleito do ano que vem, sem dúvida alguma.