quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Ano VI: No Meio do Caminho da Democracia havia um Fusca.

O ano de 2014 começou na velocidade da luz. Para quem apostou no fim, ou no enfraquecimento, das manifestações a potência do protesto contra a realização da Copa do Mundo surpreendeu. Antes, o fenômeno dos rolezinhos impôs uma dura derrota ao elitismo e ao racismo tradicionais. Neste post, que marca o aniversário de cinco anos d'O Descurvo e a entrada no Ano VI, a nossa hipótese para essa tremenda esfinge é a seguinte: não se trata de um processo explicável pela análise de correlação de forças políticas, do equilíbrio macroeconômico ou algo do tipo, mas sim de algo que decorre de uma nova composição social, de uma nova forma de sociabilidade e, até, de pensamento para além da vida em "sociedade". 

Parece simples, mas não é. O avanço do capitalismo cognitivo, o trabalho imaterial, a globalização, a internet etc trouxeram mudanças sim relevantes, mas o que interessa aqui é que graças a uma nova perspectiva antropológica tudo isso tomou um significado novo. E quando falamos em homem, com efeito, é de desejo que estamos falando: o que há de relevante nas mudanças brasileiras dos últimos anos, não é que tudo mudou pelo motivo de que reformas socioeconômicas mudaram objetivamente as coisas, mas que aquilo que há de relevante nessas transformações foi uma intensa liberação do desejo.

Trocando em miúdos, as gentes mestiças e pobres, as minorias oprimidas no sistema brasileiro, sentiram-se autorizadas a desejar. Numa sociedade marcada por um esquema rígido de exclusão e opressão, isso mudou tudo. É, numa simplificação grosseira, uma nova sociedade brasileira, marcada por novas tensões e, consequentemente, um novo equilíbrio. É preciso aceitar que um novo mundo já está aí, e que no Brasil, mais ainda.  

Enquanto os velhos atores políticos conservadores procuram criar, do caos, a saída para seu beco sem saída, a esquerda partidária aproveita mais porque se reporta, e quer se reportar, a um mundo que não existe mais -- um mundo no qual o partido, o sindicato, o jornal geravam tendências.

Nunca antes na história [recente] desse país houve tanto movimento para gerar transformações. Mas ao mesmo tempo, a resposta que nós temos é a retranca política. A realização da Copa do Mundo, que será ainda objeto de muita discussão e quetais, é simples: exige envergadura política do governo. Não adianta surfar em uma onda de repressão e escândalo público. A Copa exige geração de direitos. A juventude precisa olhar para o horizonte e poder sonhar com mais do que uma vida média. 

Da parte da esquerda, é necessário independência, prudência e a fuga constante do fascismo. Não como ameaça externa, mas como o próprio risco de nos tornamos algo menos do que vampiros. E não apenas o fascismo sujeito histórico, mas o conceito de fascismo. A vontade de resolver o que não se compreende pela violência, a atração fatal pelo poder. A diferença entre o autoritário e o democrata será sempre a postura adotada face aos questionamentos políticos, num primeiro momento, incompreensíveis. É isso. 

P.S.: Sem mais essa história essa de fusca queimado por manifestantes.  Não foi nada disso que aconteceu. A violência que importa, aqui e agora, é a violência de Estado (a menos que você concorde com coisas como isso ou isso).

P.S. 2: Se Dilma se reuniu ou se reunirá com sua equipe para discutir a Copa, eu não sei. Mas ela que se toque do que está acontecendo. Fazer política não dói, ou não deveria -- como o Mais Médicos poderia ter ensinado.





domingo, 26 de janeiro de 2014

Um País em Protesto: PMD(epedência do)B(rasil)

Fausto e Mefisto no monumento a Goethe de Roma
Não é nenhum exagero dizer que no lugar de uma crise política no Brasil, existe, na verdade, uma política de crise. Essa política de crise representa um mal funcionamento crônico das instituições que, no entanto, serve a uma oligarquia política. Do mesmo modo que a crise econômica mundial é, tanto mais, uma economia de crise, que vive do desespero causado pela instabilidade absoluta. Nesse contexto, o PMDB é personagem central, uma vez que compôs todos os governos democráticos do pós-ditadura, salvo o de Collor, que caiu da maneira conhecida.

Que o PMDB é o fiel da balança da política partidária brasileira, há muito tempo, ninguém duvida. Mas a pergunta de um milhão de dólares, ou de vinte centavos, é "quem é o PMDB?", ou melhor, quem se coloca como peemedebista nas polêmicas da academia, nos almoços de domingo ou nas mesas de bar? Ninguém sabe, ninguém viu. O PMDB é o partido de maioria silenciosa. Segundo partido mais votado para a Câmara Federal e para os Municípios, detentor da maior parte das prefeituras e dono da maior número de filiados da política partidária brasileira, o PMDB, hoje, é como o Mefisto de Goethe: um agente sedutor e sorrateiro que se move no claro-escuro dos gabinetes, sempre a procura de liquefazer o desejo (aqui, político) em um mero contrato; aí, projetos políticos se tornam mera matéria para o toma-lá-dá-cá nosso de cada dia.

E não é verdade que o PMDB seja a favor de qualquer um que esteja no poder, mas, muito pelo contrário: todos os que estão no poder se tornaram a favor dele. Quando o vice-presidente Michel Temer, peemedebista de longa data, explica sua vinculação tanto com o governo FHC quanto com os governos Lula/Dilma, ele não mente ao dizer que apenas aceitou as ofertas feitas por PSDB e PT, quando estes o procuraram. A refutação para essa constatação é usual: sem maioria no Congresso, tucanos e petistas precisariam fazer acordos, sobretudo O Grande Acordo, com O Grande Parceiro, para, assim, governar. Isso é uma falácia. Evidentemente, a dependência do PMDB varia conforme a indisposição dos partidos "programáticos" em se relacionarem com as pessoas comuns, e suas instituições.

Ai chegamos nessa enorme obsessão de governo e oposição em, respectivamente, manterem e derrubarem a família Sarney. O último episódio dessa novela foi a revelação da tragédia humanitária da prisão de Pedrinhas, no Maranhão, estado governado há décadas pela família e seus aliados. Agora, a pergunta, quantos votos José Sarney, patriarca do clã, teria se fosse candidato à presidência? Poucos. Mas ele certamente tem votos suficientes no Congresso, dentro e fora do PMDB, para obstruir e desobstruir muita coisa. Num jogo onde as principais forças partidárias estão sedentarizadas nos gabinetes e palácios, ele se torna um personagem central. Não à toa, é notório que Dilma dependa e recorra mais a Sarney do que Lula mas, mesmo assim, amargue cada vez mais derrotas parlamentares.

Embora seja possível colocar o peemedebismo como expressão partidária do cordialismo brasileiro, à maneira do filósofo Marcos Nobre, isso é certamente superficial. O PMDB pode exprimir essa confusão, essa geleia geral, mas ele é um sujeito com um lugar histórico bem determinado. Não há "peemedebismo" fora do PMDB e, mais ainda: esse peemedebismo não é a realidade triste da política brasileira, mas sim o próprio tecido conjuntivo dessa formidável colcha de retalhos que é o nosso sistema político.

O PMDB nasceu com MDB em consequência do golpe de 64 -- que não era, logo de cara, um plano de perpetuar uma ditadura militar fascista, mas sim o de criar uma democracia de fachada na qual, a exemplo do México e, sobretudo, da Venezuela da época, os elementos populares e comunistas estariam fora do jogo. Aí, teríamos uma democracia de brincadeira, com "conservadores" na Arena e "liberais" no MDB numa possível alternância sem surpresas -- seja para a burguesia brasileira ou para Washington.

Com a ascensão da linha dura do exército na Ditadura, o endurecimento da política americana para a América Latina na Guera Fria e outros fatores, a ditadura se prolongou, o país ficou em um impasse e o PMDB se tornou, involuntariamente, uma das soluções para um problema do qual ele, na verdade, fazia parte. Se a ditadura era, como hoje sabemos, civil-militar, o termo civil da encrenca se dividia entre arenistas/conservadores (Sarney, ACM et caterva) e emedebistas/liberais (Tancredo, Ulysses etc) -- enquanto, de outro lado, os próprios militares se dividiam entre a linha-dura/conservadores (Costa e Silva, Médici os golpes dos fins dos anos 70) e a "turma da Sorbonne" (os "ilustrados" da conversa, isto é, Castelo Branco, Geisel, mesmo Figueiredo).

Golbery, estrategista da Ditadura, pôs fim ao plano do bipartidarismo para, num ambiente político amplo, manter a unidade da direita na Arena/PDS e ver o centro e a esquerda fragmentados. Isso também deu errado, com a formidável derrota conservadora no pleito estadual de 1982, mas o que não quer dizer que a ascensão do PMDB -- e sua ampla hegemonia ao longo dos anos 80 -- tenha marcado uma democratização efetiva. Nem poderia. O PMDB serviu como cooptador dos setores de transformação social, ao centro e à esquerda, enquanto atraía líderes conservadores como Sarney e tantos outros, tornando-se um partido-ônibus.

Se o PT era o local próprio onde se reuniam operários da indústria, ambientalistas, agentes de pastorais, militantes comunistas, camponeses e outros, forçando uma democratização substancial do país, o PMDB era o arranjo liberal onde a constituição dos direitos rumava para uma cristalização na forma de um direito constituído, estratificado, previsível. O PMDB, mesmo quando se afigurava uma força transformadora, já trazia em seu ventre a nova velha ordem. O próprio PT experimentou isso quando, após as derrotas nas eleições estaduais de 1982, foi cooptado pelo PMDB, respondendo no famoso manifesto da "articulação dos 113", na qual foi solidificada uma posição em prol da manutenção do partido -- censurando, assim, tantos nomes que viam na dissolução da então jovem legenda no PMDB como a saída.

A aparente desidratação peemedebista, com o racha em São Paulo que deu no PSDB, o crescimento de outros partidos e o fracasso de Sarney minorou sua posição, mas não a apagou, como sabemos. Se o PSDB era a manifestação de que o PMDB se tornou impossível para si mesmo, por outro lado, ele se viu obrigado a se reunir com sua matriz em defesa do neoliberalismo nos anos 90, o que era para sua própria proteção, tanto programática quanto  eleitoral -- num momento em que o consenso dos contentes, olhe só que coisa, era combatido pelo PT. Mas foi no governo FHC que o PMDB manifestou sua face atual: um partido incapaz de admitir uma liderança, como Quércia tentou ser, um projeto, para ser apenas um grande, e diverso, balcão de negócios políticos. E isso implicava, inclusive, em rachas e divergências no apoio ao governo FHC, sobretudo por parte do grande bloco nacionalista da agremiação.

A aliança com Lula é outro capítulo: feita à base da inimizade aguda de Sarney com José Serra, e pelo naufrágio da estratégia petista em comandar um Congresso a partir dos pequenos partidos, ela se aprofunda com Temer sendo imposto vice de Dilma em 2010 para, afinal de contas, tomar proporções gigantescas. O PT, que preferiu se distanciar das suas bases sociais, seu grande diferencial, ao longo de sua estadia no poder federal, terminou enredado pelo maior dispositivo quando da opção gerencial-burocrática de Dilma no poder.

Novamente, voltamos a Nobre e sua hipótese de que as jornadas de Junho seriam, na verdade, revoltas "antipeemedebistas" -- como bem resenhado recentemente por Bruno Cava --; a bola levantada pelo filósofo escapa à tão necessária avaliação da nova composição, e dinâmica, de classes sociais, embora acerte, ainda que de maneira desfocada, o alvo no que toca a um dos principais desdobramentos do processo atual, qual seja, a insuficiência das formas políticas postas e a centralidade do PMDB nisso. O PMDB, pois, é uma das múltiplas consequências do republicanismo brasileiro, a agenda oculta -- e positivista -- de Estado, menos e mais do que Nobre imagina, mas certamente algo a se afastar e, até mesmo, a confrontar. 

As revoltas de Junho, por certo, exprimem um quadro de miséria política causada não pela falta, mas pela sobra de energia causada pela transformação imensa que a sociedade brasileira passou nos últimos anos. O sistema político, pois, foi encurtado, apequenou-se diante da intensidade que despertou. No momento em que o PT preferiu os gabinetes, a estatística e o cálculo aritmético em vez do ritmo da vida -- e os demais partidos de esquerda, por seu turno, não foram capazes de dar vazão a esse fluxo --, a enorme correnteza foi ao mar. Obviamente, o desembarque do formalismo, do projeto inclemente -- e antidemocrático -- do Estado brasileiro passa hoje por uma nova política,  colocar em outras bases qualquer forma de relacionamento com o Congresso, o que é o mesmo que esconjurar o PMDB. 

Mas isso não é o mesmo que derrotar apenas um partido, uma cultura política  que giraria em torno dele, mas uma concepção de política baseada na ausência das pessoas comuns, na prevalência do funcionamento do sistema -- político, econômico etc -- sobre o desejo delas e na crença de um evolucionismo civilizador implacável e no culto ao poder constituído -- no lugar da luta pela constituição de direitos. No que toca ao PMDB, em particular, o que interessa é saber que para além de qualquer devaneio com os riscos de uma ditadura, o perigo está na própria democracia liberal -- formalista e institucional -- e o enorme vazio na qual ela se constitui. É preciso mais coragem não para jogar o jogo, mas lutar onde se pode lutar, isto é, no terreno do próprio imaginário, na criação da realidade política do país.

P.S.: A defesa da aliança entre o governo de Dilma Rousseff e o PMDB passa pela ideia da necessidade de governabilidade. Mas de tanto falar em governabilidade, hoje, no parlamento e nas ruas, o governo tem sofrido derrotas relevantes; aos oligarcas do Congresso, nenhuma concessão basta, para o povo, é impossível tolerar mais concessões. Quando tudo dá errado, o próprio PMDB não hesita em largar o PT aos leões, como na recente demissão, por e-mail, dos petistas lotados no governo estadual carioca. Ou nas incontáveis derrotas do governo no Congresso.  Em outras palavras, é tanto realismo que falta realidade.





domingo, 19 de janeiro de 2014

Arrancou os próprios dentes -- e se matou na contramão atrapalhando o trânsito

Tirésias e Ulysses -- Füssli
Caso você, caro leitor, também achou essa hipótese absurda, prossiga e continue a ler este post.

Eis que há poucos dias Kaique foi encontrado morto na Avenida Nove de Julho, uma das mais movimentadas da Capital, com o rosto desfigurado, os dentes arrancados, um ferro enfiado na perna dentre outros sinais de tortura. A polícia, no entanto, trabalha com a hipótese de suicídio. Como numa anedota cruel. Kaique, por um acaso, era homossexual e talvez isso ajude a entender a brutalidade do crime e as conclusões preliminares da "investigação". Mas o que realmente nos interessa é que Kaique não é um caso isolado.

Os crimes de ódio perpetrados contra homossexuais têm aumentado brutalmente. É, de fato, difícil quantos homossexuais são mortos agora em comparação a momentos passados, mas não crimes de ódio, nos quais a orientação sexual da vítima é elemento essencial para o crime -- e na gradação de violência empregada no seu cometimento. Os grupos gays têm denunciado esses gráficos, além dos casos singulares, com certa ênfase há algum tempo.

Paradoxalmente, nos últimos anos, os homossexuais conquistaram direitos, visibilidade e algum lugar na sociedade brasileira. E isso é fruto da ação corajosa de tantos ativistas anônimos e grupos organizados, literalmente remanda contra uma maré da mais crônica intolerância. Por outro lado, há uma reação social difusa que tem gerado mortes demais. Essa reação é turbinada pela ação de alguns grupos políticos, em geral extremistas cristãos, que se espalham por quase todos os partidos conhecidos -- mas ela resulta, sobretudo, de vergonhosas omissões das grandes forças políticas brasileiras.

O Brasil, por exemplo, comeu pelas beiradas ao fazer a autorização para o casamento gay no país não passar pelo Congresso, mas sim pelo Supremo Tribunal -- num processo que começou na permissão da União Civil em 2011 e passou pela resolução de 2013 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Não se diga que as grandes forças políticas, incluso aí (sobretudo) a própria presidência da República, não intervierem para o bem,  por meio do posicionamento da Advocacia-Geral da União (AGU), mas o fato disso não ter sido feito (con)frontalmente gerou precisamente essas sequelas. 

Na nossa vizinha Argentina, a aprovação do casamento gay assumiu a forma de uma conquista legal-parlamentar e não de decisão judicial. A presidenta e sua base confrontaram a base conservadora e trouxeram a questão à baila. Tudo ficou às claras.  No Brasil, as grandes forças políticas se mantêm escondidas do debate público sobre a questão, ou surfando na onda da homofobia ou, simplesmente, recuando diante do discurso homofóbico organizado -- como fez Dilma, no episódio do Kit anti-homofobia, quando declarou que seu governo "não faria propaganda de opção sexual" ao ser pressionada por grupos religiosos contrários...ao ensino do repúdio à homofobia na Escola Pública. O impacto simbólico disso foi grande.

Não é que não se deveria ter usado desses, e outros, artifícios inclusive por dentro das instituições para gerar direitos para os gays, mas que era necessário sim assumir o processo e marcar uma posição inequívoca e divergente. Rosa Luxemburgo já ensinou, há tanto tempo que é o movimento que faz a maioria (numérica, a própria reunião de singularidades) e não o contrário. Esperar pelo "grande dia" no qual as cabeças mudarão para, assim, poder agir -- ou mesmo apoiar, no plano partidário, essa luta como grande segredo público é aceitar um sequestro voluntário. As consequências são essa brutalidade, aqui, ali e acolá.

Em uma época na qual os negócios se tornaram o modo de agir absoluto da vida, inclusive na política, os setores democratizantes precisam repudiar, a uma só voz, a negociação de gestos e posturas com extremistas, seja lá em qual situação for, mas sobretudo na defesa da conquista de direitos pelas minorias. Isso nem é prudente. Um sutileza de resultados é prudência prática, não implica em recuos retóricos como se fosse possível encontrar um meio-termo entre o necessário e o inaceitável por conveniências eleitorais. Que outros casos como este não se repitam, nem que isso termine esquecido no limbo de um presente em esquecimento.

P.S.: Além dos casos de crimes de ódio contra homossexuais, também se soma o aumento da violência contra outras minorias sociais, como os negros e os índios. É um processo em curso que exige atenção e ação.





segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

O Rolezinho: Ou Quando a Classe sem Nome Resolveu dar uma Volta

Exodo -- Descals

"Uma classe sem nome ascende, de modo selvagem, deixando o debate político brasileiro em chamas. E dizemos que ela é sem nome justamente por ter tantos, por haver tanta insistência no fato de que ela precisa ter um: classe c, nova classe média, subproletariado, consumitariado, proletariado endinheirado, batalhadores e tantos outros possíveis e imagináveis. Mas ela assume a todos e, assim, os recusa plenamente, pondo em sobrecarga a máquina paranoica de identificação. E dizemos que esta classe ascende de modo selvagem no sentido antagônico a civilizado em sua acepção moderna: se o moderno nos diz, à moda de Kant, que devemos agir, apenas e tão somente, reproduzindo condutas que possam ser universalizáveis na convivência, no Brasil, isto se cristalizou no seguinte mandamento: aja sabendo qual o seu lugar.

Se mesmo os universais, enquanto abstrações ideais, ganham sempre um modo prático, é precisamente este o que a materialidade das relações sociais lhe deu por aqui: saber onde fica a Senzala e a Casa Grande e ter em mente, de forma clara, a qual desses dois mundos (afinal, são apenas dimensões do mesmo), você pertence. A classe sem nome ascende, pois, pela suspensão dessa lei universal, demonstrando que o rei está nu, que a lei gira no vazio -- já que uma vez criação humana, ela pode ser suspensa pelo desejo, pela vontade de potência: ela faz tumulto, indo para espaços que não são seus por direito [mas passam a ser de fato]; se ela orkutizou o Orkut, agora, ela orkutiza a vida, os aeroportos e o próprio Facebook."
Ascensão Selvagem da Classe sem Nome, 06/09/2012.

Desde do final do ano passado, o fenômeno conhecido como Rolezinho se tornou um estouro. Trata-se de algo bastante simples: jovens pobres da periferia, por meio das redes sociais, convocam gigantescos flashmobs em shoppings. Lá, eles combinam de passear, ver as lojas, entrar num mundo que lhes é socialmente proibido -- mas cuja imagem é o próprio ápice do que o sistema oferece. De repente, o assunto se tornou caso de polícia nos maiores shoppings paulistas. Mas não há crime, apenas o fato de que os jovens "parecem querer bagunça" como admitem as próprias autoridades. No último caso, o shopping JK, inclusive, conseguiu uma decisão liminar na Justiça impedindo a entrada, sob ameaça de multa, de quem pretendesse adentrar nas suas dependências para participar do evento -- em uma decisão que, por certo, já entrou para os anais do nosso judiciário. 

Não houve crimes, convocação para crimes ou preparação para atividades criminosas, tampouco para ilícitos cíveis. Isso, ninguém nega. Como também, até que se diga o contrário, a liberdade de ir e vir ainda está entre os direitos fundamentais da Constituição -- e não, não pode ser restrita pela simples vontade de alguém baseado em fundamentos moralistas. "Não gostamos deles, queremos fora!". Essa aparente disfunção jurídica, no entanto, revela o próprio funcionamento prático do sistema. Se o liberalismo jamais criou vedações formais para os fluxos, ele tratou de não criar jamais mecanismos que pudessem dar subsídios materiais para isso poder se tornar um problema. Com o advento das políticas social-democratizantes dos últimos anos, a universalização de informação e proteínas esticou o corpo do sistema: não é que o capitalismo científico tenha triunfado, ao contrário, ele fracassou redondamente, pois a universalização geral da vida burguesa mostrou seus pés de barro, isto é, trata-se de um modo de vida que só se sustenta a partir da existência de mestes e escravos.

Em um movimento espontâneo, livre, uma geração inteira nascida sob a égide da democratização da sobrevivência à mortalidade infantil, mas exposta a uma massiva violência -- inclusive, e sobretudo, de Estado -- na juventude, se vê diante de uma paradoxal liberdade: autorizada a cruzar a terra, descobrindo novos mundos, e forte o suficiente para fazê-lo, ela se vê atacada quando extrapola a camisa de força da vida cotidiana. Não tendo feito nada de errado, nem segundo o sistema. Daí, não é estranho o choque com a face real e inglória do sistema; a reação imediata é uma perplexidade existencial dolorosa, como a do garoto Douglas, morto pela polícia, que, antes de morrer, inquiriu o algoz: por que o senhor atirou em mim? No momento em que as barreiras jurídicas e econômicas são minoradas, o Estado revela sua verdadeira face: o exercício do poder é de fato, alheio ao próprio direito.

O exercício do mando no ocidente nunca foi o domínio puro e simples. O senhor, o dono, jamais abriu mão do monopólio da dádiva, da simulação da bondade, da construção de um ethos glorioso, mas, de um outro lado, sempre precisou do vilão, o próprio administrador da casa para delegar o monopólio do mal e, assim, administrar castigos. Essa dualidade entre o senhor e o capataz é do que falamos. Mas o tensionamento de certas relações força ao reconhecimento do óbvio: não há distinção entre os dois, ambos representam o mesmo teatro. Quando o sistema está em xeque, ele não vai ousar em usar de força pura e simples. E "estar em xeque" não é o mesmo que "vender pouco", ter o "patrimônio ameaçado", nada disso; é ver a ideia de exclusividade, de escassez, que possibilita a relação de fetiche da mercadoria estilhaçada: se algo se torna comum, como a área supostamente livre de um shopping de luxo, se esconjura o feitiço que permite aquelas relações, aquela falta, aquela agonia -- e a própria opressão.

Uma geração inteira de jovens -- dentre os quais, eu mesmo me incluo, embora a cor dos olhos, feliz ou infelizmente, sempre me tenha feita voar abaixo do grosso do radar da repressão -- experimenta a verdade da Coisa, da sua pior forma, mas não aceita mais ser matável, excluível ou ignorável. Não estão "alienados" pelo consumismo, apenas estão invocando o que é direito de qualquer um -- ou não é? --, não aceitam o apartheid -- social e racial -- de não poderem partilhar, mesmo como espectador, do que é valoroso, pelo menos até que se diga o contrário. Em tempos nos quais quase tudo se enuncia em inglês, algo bem tradicional do brasil se diz em grego: a lei da casa grande, a rigor, se fala agora macroeconomia. Eu não falo só do predomínio da preocupação com a índices, e indicadores, econômicos em detrimento da política, mas da própria ascensão de uma forma de organização que só concebe o homem como ser boçal e animalizado, pronto a receber o castigo do chicote: mercado, polícia e política, todos atados conceitualmente. Olhar o Brasil de hoje sem ver a dinâmica da composição de classe, e do próprio fundamento do que é uma classe ou uma sociedade, é um voo cego. 

De todo modo, sim, nós sabemos agora porque o Senhor atirou: não poderia ser diferente, sendo você o que é. À la Gombrowicz, a Classe sem Nome faz arte, satisfaz os perturbados e perturba os satisfeitos.








segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

A Multidão foi ao Deserto de Bruno Cava: a Eterna Revolta de 2013

"Não seguirás a multidão para fazeres o mal; nem numa demanda falarás, tomando parte com a maioria para torcer o direito". Êxodo 23:2
<οὐκ ἔσῃ μετὰ πλειόνων ἐπὶ κακίᾳ. οὐ προστεθήσῃ μετὰ πλήθους ἐκκλῖναι μετὰ τῶν πλειόνων, ὥστε ἐκκλῖναι κρίσιν.> 
(texto original da Septuaginta, em grego, retirado daqui)

Bruno Cava realizou o lançamento paulista(no) de seu livro em uma animada roda de conversa no Club Noir, um espaço underground do Baixo Augusta, no meio de Dezembro último. Lá, entre tantas, ouvimos do mestre Paulo Cândido o seguinte: a multidão que foi ao deserto encontrará/construirá sua Jerusalém?  Eis a questão de um milhão de dólares, ou quem sabe de vinte cents, sobre o novo livro do editor Quadrado dos Loucos -- o qual reúne quase duas dezenas de posts de Cava durante as manifestações no Rio, alguns artigos e duas entrevistas extensas suas.

Os posts, reunidos em um só livro, tomam a forma de ensaios. Embora percam a dinâmica da forma-blog, ganham um certo ar elegante, literário, nas páginas de um livro; além disso, a composição frenética e contígua de Cava ao longo do segundo semestre de 2013, reunidas em um só espaço, tornam os fragmentos um plano precário e vivo: uma cartografia feita à base de peças de quebra-cabeça prático-teórico -- no caso, uma experiência militante em forma litero-filosófica.

Sim, Cava, antes de mais nada, é um marxista, portanto, teoria e prática estão juntas porque nunca estiveram, ou puderam estar, separadas; seu marxismo, contudo, é um envolvimento com o que poderíamos chamar de uso subversivo da teologia-política. De tal forma, certas e canhestras apropriações de Badiou e Negri lhe são inevitáveis -- e não à toa, o mestrado de Cava é sobre os dois. E, ainda que esta não seja uma obra acadêmica ou mais conceitual, temos, ao fundo, um pouco do que Badiou fez em seu São Paulo e o que Negri não deixa de fazê-lo, de certo modo, ao propor a possibilidade de um outro estado de exceção, que não aquele de Estado, mas exatamente ao inverso. 

Usar a teologia-política, empiricamente, de forma subversiva, no contexto das manifestações brasileiras é, portanto, do que trata o livro -- Isto é, se apropriar antropofagicamente da TP contra o Estado e contra o Édipo, quase como se faz em um antídoto: ele é feito, ironicamente, a partir da própria doença, ou veneno, que busca combater para que, assim, possamos resistir. Mas como na construção de qualquer antídoto, estaremos sempre diante de extremos que vão da cura à própria contaminação no processo. Mas Cava vai além e sua aposta é simples: por que não correr o risco? Por que temer a potência do evento? Por que se submeter à negatividade da Lei? Por que não uma anomia verdadeira como o Carnaval? Por que não o corpo no lugar do espírito?


O título do livro, a imagem potentíssima que anima cada um dos seus pedaços, é uma referência ao Livro do Êxodo: o segundo livro da Bíblia, ainda no Velho Testamento, no qual é narrada a fuga dos hebreus para o deserto, escapando da opressão da máquina despótica egípcia. Êxodo, naturalmente, é uma palavra e um conceito helênico: no original, em hebraico, falamos do Livro dos Nomes -- ואלה שמות, Shemot ou "estes são os nomes" -- em razão da tradição hebraica de dar como título de um livro suas palavras iniciais -- mas não só, o nome, já sabiam os antigos hebreus, é o dispositivo mediante o qual podemos receber ordens e podemos ser sujeitos [a um regime de regras], daí o fato do deus não ter nome, mas nomear a todos, competência delegada aos patriarcas e, depois, aos pais.  

O início do Shemot é a declinação de uma série de nomes que suscita uma tradição, e uma hierarquia, em fundação. A fuga do Êxodo fez-se, ou pelo menos foi narrada tal e qual, como empreendimento de Estado, a partir da edificação de um novo reino na chegada à Canaã, ou pelo menos do ponto de vista da realização dessa expectativa: é preciso narrar desde o começo uma nova ordem e uma nova hierarquia, como se a luta resistente contra o Faraó já fosse o prenúncio de uma nova ordem e não a abertura para, quem sabe, o nomadismo.

A  multidão dessa imagem e dessa passagem é um termo recorrente na Bíblia por força da vulgata, a tradução latina oficial das Escrituras -- obra de Jerônimo de Estridão, santo doutor da Igreja e conterrâneo de Zizek no Mundo Antigo --, que fez qualquer referência a grandes quantidades e a grupos plurais como multitudo, indiferenciando, assim, o majoritário do minoritário o que há, em muitos momentos, sobretudo nos Evangelhos -- e no Apocalipse --, é o ochlos (όχλος), isto é, a própria turba, ou massa. A multidão propriamente dita, um grupo plural e heterogêneo, é o pléthos (πλήθος) e aparece no Velho Testamento -- não à toa, título do Multidão de Negri e Hardt em grego

A confusão entre a multidão e a turba, na tradução latina, tenha sido feito deliberadamente ou não, esconde um descontinuidade narrativa importante entre o Velho e o Novo Testamento: talvez esconda que a primeira parte das Escrituras trata da luta de uma gente humilhada e escravizada, enquanto a segunda é sobre a forma como se manifesta o ajuntamento humano em torno do messia(ni)s(mo).

No entanto, a multidão, em hebraico, também quase desaparece: normalmente, é uma referência indeterminada como "muitos" -- isto é, para algumas traduções diretas do hebraico, o versículo acima, em vez de "multidão" falará apenas em "muitos". Tenham sido os setenta e poucos rabinos de Alexandria, alguns séculos antes de Cristo, ou Orígenes -- como apontam alguns --, o fato é que a tradução grega das Escrituras é criadora no sentido em que transforma um texto exclusivamente religioso em texto histórico -- sem mudar nada substancial. Os muitos são dispersos, mas a multidão é substantiva e sujeita em uma narrativa histórica -- ainda que seja um conjunto heterogêneo e composto por diferenças intensas, ela é, do ponto de vista da enunciação, bem determinada.

Paradoxalmente, os gregos o fizeram invocam um conjunto determinadamente coletivo, mas não unitário e sintético como, p.ex., povo. E se a tradução do Velho Testamento heleniza uma narrativa hebraica, por outro lado, ela também marca uma semitização do mundo clássico -- processo que se fecha com o Novo Testamento, este sim, já escrito totalmente em Grego. Mas no Apocalipse, essa formidável inversão dos Evangelhos (como bem anotou Lawrence comentado por Deleuze em Crítica e Clínica) a "multidão" que aclama o trono e máquina do Juízo [Final] é, na verdade, uma massa, o ochlos (Apocalipse 7:9-17). No Êxodo, quem foge e luta é uma multidão. E isso não é à toa. A escolha pelo Êxodo, portanto, foi feliz, apesar dos pesares e não se confunde com uma vontade aclamação ou de julgamento.

O problema da nova Jerusalém é bem mais do que especular se, e como, a multidão construirá uma terra prometida -- como se isso fosse sinônimo de saída ou se fosse questão de haver A saída -- depois de ter se retirado das engrenagens da máquina imperial que lhe assujeitava: na verdade, o ponto é se desse movimento ela irá ou não construir uma nova forma Estado -- ou menos, um novo governismo --, a exemplo daquela que lhe manteve cativa, ou assumirá uma liberdade plena. A obra põe essa questão, mas não a responde e se recusa a respondê-la.

O relato de Cava constitui-se, por seu turno, em um fino material bruto que não é, atente-se, escrito da perspectiva de construção de uma nova tradição, da futurologia ou da realpolitik, mas ao contrário, ele se anima que essa ida ao deserto em questão foi marcada pelo desejo de sua transição, não teve patriarcas, profetas (ou profecias) ou mesmo nomes: ele pega uma fagulha específica de 2013 e investe no devir revolucionário e não no futuro revolucionário. Talvez isso irrite. Certamente tem seus riscos e passe por cima de contradições e nuances inevitáveis ao processo em curso -- embora não seja insensível a elas --, mas é de uma intervenção no desejo pelo desejo que ela trata -- não de uma análise de conjuntura, mesmo que fosse a serviço de uma estratégia.

Como Negri e Hardt fizeram em seu Multidão, ao resgatar a potência que existe no Livro do Êxodo -- a fuga, o devir-nômade, a potência revolucionária das minorias etc -- apesar, e a despeito, de suas negatividades, Cava apropria-se do que há de potente em sua experiência justamente por desapropria-la por ação direta: e aí é desimportante se 2013 terminou ou se será um contínuo neste 2014, ou se 2013 não foi 2013, mas que o que está em questão é o que, por excelência, há de imensurável, eterno e incapturável em 2013. Não é de realpolitik, de maioria ou minoria, que essa ida ao deserto trata, mas sim de uma surrealpolitik antropofágica pela graça de um commonismo desde já.



CAVA, Bruno. A Multidão foi ao Deserto: as manifestações no Brasil em 2013 (JUN-OUT). São Paulo: Editora Annablume, 2013, 156 páginas.