segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

O Rolezinho: Ou Quando a Classe sem Nome Resolveu dar uma Volta

Exodo -- Descals

"Uma classe sem nome ascende, de modo selvagem, deixando o debate político brasileiro em chamas. E dizemos que ela é sem nome justamente por ter tantos, por haver tanta insistência no fato de que ela precisa ter um: classe c, nova classe média, subproletariado, consumitariado, proletariado endinheirado, batalhadores e tantos outros possíveis e imagináveis. Mas ela assume a todos e, assim, os recusa plenamente, pondo em sobrecarga a máquina paranoica de identificação. E dizemos que esta classe ascende de modo selvagem no sentido antagônico a civilizado em sua acepção moderna: se o moderno nos diz, à moda de Kant, que devemos agir, apenas e tão somente, reproduzindo condutas que possam ser universalizáveis na convivência, no Brasil, isto se cristalizou no seguinte mandamento: aja sabendo qual o seu lugar.

Se mesmo os universais, enquanto abstrações ideais, ganham sempre um modo prático, é precisamente este o que a materialidade das relações sociais lhe deu por aqui: saber onde fica a Senzala e a Casa Grande e ter em mente, de forma clara, a qual desses dois mundos (afinal, são apenas dimensões do mesmo), você pertence. A classe sem nome ascende, pois, pela suspensão dessa lei universal, demonstrando que o rei está nu, que a lei gira no vazio -- já que uma vez criação humana, ela pode ser suspensa pelo desejo, pela vontade de potência: ela faz tumulto, indo para espaços que não são seus por direito [mas passam a ser de fato]; se ela orkutizou o Orkut, agora, ela orkutiza a vida, os aeroportos e o próprio Facebook."
Ascensão Selvagem da Classe sem Nome, 06/09/2012.

Desde do final do ano passado, o fenômeno conhecido como Rolezinho se tornou um estouro. Trata-se de algo bastante simples: jovens pobres da periferia, por meio das redes sociais, convocam gigantescos flashmobs em shoppings. Lá, eles combinam de passear, ver as lojas, entrar num mundo que lhes é socialmente proibido -- mas cuja imagem é o próprio ápice do que o sistema oferece. De repente, o assunto se tornou caso de polícia nos maiores shoppings paulistas. Mas não há crime, apenas o fato de que os jovens "parecem querer bagunça" como admitem as próprias autoridades. No último caso, o shopping JK, inclusive, conseguiu uma decisão liminar na Justiça impedindo a entrada, sob ameaça de multa, de quem pretendesse adentrar nas suas dependências para participar do evento -- em uma decisão que, por certo, já entrou para os anais do nosso judiciário. 

Não houve crimes, convocação para crimes ou preparação para atividades criminosas, tampouco para ilícitos cíveis. Isso, ninguém nega. Como também, até que se diga o contrário, a liberdade de ir e vir ainda está entre os direitos fundamentais da Constituição -- e não, não pode ser restrita pela simples vontade de alguém baseado em fundamentos moralistas. "Não gostamos deles, queremos fora!". Essa aparente disfunção jurídica, no entanto, revela o próprio funcionamento prático do sistema. Se o liberalismo jamais criou vedações formais para os fluxos, ele tratou de não criar jamais mecanismos que pudessem dar subsídios materiais para isso poder se tornar um problema. Com o advento das políticas social-democratizantes dos últimos anos, a universalização de informação e proteínas esticou o corpo do sistema: não é que o capitalismo científico tenha triunfado, ao contrário, ele fracassou redondamente, pois a universalização geral da vida burguesa mostrou seus pés de barro, isto é, trata-se de um modo de vida que só se sustenta a partir da existência de mestes e escravos.

Em um movimento espontâneo, livre, uma geração inteira nascida sob a égide da democratização da sobrevivência à mortalidade infantil, mas exposta a uma massiva violência -- inclusive, e sobretudo, de Estado -- na juventude, se vê diante de uma paradoxal liberdade: autorizada a cruzar a terra, descobrindo novos mundos, e forte o suficiente para fazê-lo, ela se vê atacada quando extrapola a camisa de força da vida cotidiana. Não tendo feito nada de errado, nem segundo o sistema. Daí, não é estranho o choque com a face real e inglória do sistema; a reação imediata é uma perplexidade existencial dolorosa, como a do garoto Douglas, morto pela polícia, que, antes de morrer, inquiriu o algoz: por que o senhor atirou em mim? No momento em que as barreiras jurídicas e econômicas são minoradas, o Estado revela sua verdadeira face: o exercício do poder é de fato, alheio ao próprio direito.

O exercício do mando no ocidente nunca foi o domínio puro e simples. O senhor, o dono, jamais abriu mão do monopólio da dádiva, da simulação da bondade, da construção de um ethos glorioso, mas, de um outro lado, sempre precisou do vilão, o próprio administrador da casa para delegar o monopólio do mal e, assim, administrar castigos. Essa dualidade entre o senhor e o capataz é do que falamos. Mas o tensionamento de certas relações força ao reconhecimento do óbvio: não há distinção entre os dois, ambos representam o mesmo teatro. Quando o sistema está em xeque, ele não vai ousar em usar de força pura e simples. E "estar em xeque" não é o mesmo que "vender pouco", ter o "patrimônio ameaçado", nada disso; é ver a ideia de exclusividade, de escassez, que possibilita a relação de fetiche da mercadoria estilhaçada: se algo se torna comum, como a área supostamente livre de um shopping de luxo, se esconjura o feitiço que permite aquelas relações, aquela falta, aquela agonia -- e a própria opressão.

Uma geração inteira de jovens -- dentre os quais, eu mesmo me incluo, embora a cor dos olhos, feliz ou infelizmente, sempre me tenha feita voar abaixo do grosso do radar da repressão -- experimenta a verdade da Coisa, da sua pior forma, mas não aceita mais ser matável, excluível ou ignorável. Não estão "alienados" pelo consumismo, apenas estão invocando o que é direito de qualquer um -- ou não é? --, não aceitam o apartheid -- social e racial -- de não poderem partilhar, mesmo como espectador, do que é valoroso, pelo menos até que se diga o contrário. Em tempos nos quais quase tudo se enuncia em inglês, algo bem tradicional do brasil se diz em grego: a lei da casa grande, a rigor, se fala agora macroeconomia. Eu não falo só do predomínio da preocupação com a índices, e indicadores, econômicos em detrimento da política, mas da própria ascensão de uma forma de organização que só concebe o homem como ser boçal e animalizado, pronto a receber o castigo do chicote: mercado, polícia e política, todos atados conceitualmente. Olhar o Brasil de hoje sem ver a dinâmica da composição de classe, e do próprio fundamento do que é uma classe ou uma sociedade, é um voo cego. 

De todo modo, sim, nós sabemos agora porque o Senhor atirou: não poderia ser diferente, sendo você o que é. À la Gombrowicz, a Classe sem Nome faz arte, satisfaz os perturbados e perturba os satisfeitos.








12 comentários:

  1. "jovens de suburbios", "não houve crime". tá tudo errado. teve cara postando em rede social todos os tênis que ele roubou nos seus "rolezinhos", teve vários relatos de pessoas que foram saqueadas. Ninguem é proibido de entrar em shopping, o jovem "de suburbio" como todo bom marxista insiste na luta de classes pode sim entrar no shopping, e muitos o fazem. Lembrando a você que o shopping é propriedade privada, portanto o "direito de ir e vir" não consta, visto que as pessoas não tem o direito de ir e vir em sua casa, outra propriedade privada. Por favor, se aprofunde no assunto e se atente aos fatos, não se trata de uma briga ideológica, tão pouco de separação em classes sociais ou de cor e raça. Se existe, é culpa do executivo por meio da PM, e eu nunca vi PM ser "elite".

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    1. O direito de ir e vir, como todo direito fundamental, só pode ser restrito se estiver em confronto com outro direito fundamental. Não é o caso. Existe, de um lado, o direito de ir e vir de uma parcela da população, uma reunião para fins lícitos -- dar volta no shopping --, mas não existe outro direito conflitando. Nem ilicitude, penal ou cível, pretendida ou anunciada. Seria o mesmo que dizer que, por ser uma propriedade privada, um bar poderia determinar que aquele tipo x ou y de cliente não entre. Sobre quem fica de fora ou dentro, olhe a cor e a classe de quem está dentro e de quem está fora: e os PM's, enquanto aparato de repressão do Estado, são, no instante em que agem, maioria social -- e, no caso em questão, uma maioria que agiu até fora da lei em dados momentos como documentado.

      Aquele abraço

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    2. Utilizo seu próprio argumento em defesa dos shoppings, e ressalto que não se trata de uma luta de classes portanto não faz sentido falar em "direita liberal". Os rolezinhos como prática específica em alguns shoppings de são paulo fere o direito de outras pessoas de ir e vir, visto vários vídeos que mostram confusão e correria mesmo naqueles onde não existiu ação policial. Com tanta gente imatura (por imatura lê-se de pouca idade, favor não dar uma de marxista e achar que me refiro à classe ou raça) em um pequeno espaço, qualquer incidente pode ocasionar em graves consequências. Imaginemos que ocorre uma briga entre os adolescentes, acontece um corre corre, uma correria, típica de multidão. Alguem pode se machucar ou pior. Não se trata de uma discussão ideológica, é questão de segurança. Por outro lado é fato que a polícia agiu de maneira lamentável, mas tenho certeza que as mesmas pessoas que participariam do rolezinho podem, hoje, ir tranquilamente ao shopping. Quanto ao fato de estarem inertes em um ambiente do qual elas não estão familiarizadas ou estão incluídas, é um problema econômico que vem progredindo de maneira lenta e que foge ao assunto principal do tópico: a proibição por parte da justiça de eventos que estavam colocando a segurança de terceiros e de lojistas em risco.

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    3. Querido Anônimo, ferir direito de ir e vir seria se os jovens impedissem alguém, ou quisessem impedir, a entrada/saída de algum usuário do shopping. Isso não aconteceu. O shopping, qualquer um deles, está sempre cheio de jovens, de cães, de...gente...e se eles começarem a brigar? E se os poodles das madames resolvessem arrancar a cabeça das crianças? É evidente que isso seria um absurdo. Tanto que jamais foi discutido. Mas o que sempre foi considerado "lotação" só se tornou um problema, uma turbação, agora. Por quê? Porque esses jovens não pertencem, ou melhor, não devem pertencer ao público frequentador. E porque, além de tudo, fazem um movimento coordenado. Dizer que eles, fora da situação de um rolezinho, não são impedidos de entrar é óbvio: nenhum escravo jamais foi impedido de entrar na Casa Grande, desde que soubesse andar de cabeça baixa. A propriedade de ninguém foi ameaçada, mas a hierarquia social invisível e evidente sim. Como na anedota de uma senhora distinta, à beira da piscina de um hotel, que pergunta ao garçom sobre o porquê de uma família de negros estar lá também; eis que o garçom responde que aquela família estava lá porque pagaram a estadia e, afinal de contas, tinha direito de usar a piscina; na tréplica, a madame arremata de primeira: mundo cruel, agora o dinheiro compra tudo.

      abraços

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  2. E tem outra, o apartheid era POLÍTICA SEGREGATIVA DO ESTADO POR RAÇA, não estava especificado que os jovens da raça "x" não poderiam entrar no shopping. Não ouse comparar essa baboseira com um evento da magnitude do apartheid, você é um moleque e não tem noção do que foi o apartheid e busca reconhecimento por palavras vagas com "ar de intelectualidade" em um blog. É um tremendo desrespeito com toda a comunidade negra que busca igualdade ter um evento tão importante como o apartheid sendo comparado com essa falta de respeito que é o "rolezinho"

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    1. O apartheid é uma política de exclusão racial e de supremacia branca. A única diferença entre o sul-africano e o nosso, é que lá eles mediante a Lei posta, enquanto aqui é pelas omissões face à Lei e pela atuação da administração e, até, do Judiciário. O que importa é a exclusão prática, pouco importa se é pelo fazer morrer (nacionalista/sul-africano) ou pelo deixar morrer (liberal/brasileiro).

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    2. Cara, que anônimo burro! E ainda parte pro ad hominem, meus parabéns....

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  3. "Direito de ir e vir". Tudo bem, dê o direito de ir e vir a 700 pessoas que você não conhece dentro de TUA casa, que é tua propriedade. O shopping não é um lugar público, é uma propriedade privada que os donos de lojas pagam, e caro, para terem seu lugar para poderem vender. E é sério que todos vocês tão comparando algo tão complexo como foi o apartheid, com essa merdinha que tá acontecendo aqui? Meus pêsames, vocês, de cérebro, não são beneficiados.

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    1. Então, o shopping não pode, sob critérios arbitrários, excluir clientes. Precisa demonstrar que objetivamente está ameaçado. Fosse uma manifestação política e até seria possível dizer algo do tipo, mas não sobre um simples passeio de jovens.

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    2. Meus pêsames, vocês, de cérebro, que comparam uma casa com um shopping.

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  4. Você é muito paciente.

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  5. O pior disto tudo é ver que algumas pessoas tentam pegar carona na diversão dos jovens fazendo um sequestro político da situação. Basta ver que a motivação deles é apenas uma curtição (paquerar, conhecer novas pessoas, ...). Não existe nenhuma pauta de reivindicação política e muito menos mencionam qualquer tipo de preconceito racial ou social. Muito provavelmente o encontro foi marcado usando celulares, tablets ou computadores adquiridos justamente nos shoppings onde supostamente são excluídos.

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