quarta-feira, 19 de março de 2014

Crimeia e Rússia: Liberdade ou Anexação?

Conferência de Yalta: Churchill, Roosevelt e Stalin, os líderes aliados
A Crimeia é um dos centros de equilíbrio das rússias. Agora, com o referendo que a retirou do controle da Ucrânia e a tornou parte da Federação Russa, ela é destaque dos noticiários globais. Ou melhor, reapareceu no centro do jogo geopolítico mundial. Não nos esqueçamos que foi lá onde ocorreu a famosa derrota russa para as forças ocidentais, com o apoio turco, na guerra que definiu a sorte do Império tsarista em meados do século 19º: a derrota em Sebastopol, e a consequente redução do país a uma potência secundária no plano internacional, foi a pedra de toque para os eventos que culminaram na efervescência política e social que desaguou na Revolução Russa -- a submissão aos ditâmes do capitalismo industrial franco-britânico, o fim da servidão feudal para a proletarização dos ex-servos e o resto da história, bem, todos conhecemos. Ainda, na Segunda Guerra, na cidade de Yalta, localizada na península, foi realizada a famosa conferência  que contou com as maiores lideranças dos aliados: Churchill, Roosevelt e Stalin, na discussão sobre os espólios da guerra.

Conquistada pelos russos nos fins do século 18º, a península com litoral tanto para o pequeno Mar de Azov quanto para o Mar Negro, é área estratégica para a marinha russa, seja no que envolve o acesso a águas quentes ou no que diz respeito à eventual atuação no Mar Mediterrâneo. Em 1954, quando o líder sovietico Nikita Khrushchiov passou, por decreto, seu controle para a então R.S.S. da Ucrânia, não houve maiores problemas para Moscou -- até o desmembramento da União Soviética, quando o Kremlin manteve a base naval e o controle de facto de uma região que, formalmente, era ucraniana. 

A Crimeia é habitada desde tempos remotos, tendo passado pelo controle de cimérios, citas, gregos, venezianos, mongóis, turcos, tártaros, russos e tantos outros povos. O que poderia ser chamado de povo autóctone de sua pequena população de dois milhões de habitantes são tártaros da Crimeia, os quais são minoritários -- quase 60% dos locais são russos étnicos, em geral resultado de migrações planejadas no período soviético. Aliás, os tártaros locais foram acusados de colaboração com os nazistas na guerra, o que lhes valeu uma deportação interna -- a exemplo do que se passou com os chechenos por outras razões --, em um processo que só foi interrompido nos anos 1960 e, por fim, revertido com a Perestroika -- o chamado Surgun

Sob a liderança de Mustafá Dzemilev, os tártaros da Crimeia apoiaram fortemente Viktor Yanukovich nas últimas eleições presidenciais (2010). Entre os russos étnicos, nem se fala. Em uma eleição profundamente acirrada, na qual as graves divisões regionais já se faziam sentir, a Crimeia só forneceu menos votos para o ex-presidente, pró-Rússia, do que regiões como Donetsk e Lugansk: no total quase 80% dos votos da Crimeia no segundo turno, enquanto nas duas outras regiões esse número chegou à casa dos 90%. E, agora, com a derrubada do governo pró-russo em Kiev, e a realização de um referendo fortemente apoiado pela máquina de propaganda do Kremlin, não é espantoso que mais de 95% dos votos tenham sido favoráveis à "passagem" da região para a Federação Russa enquanto "República Autônoma".

2010: Quanto mais para Leste-Oeste, mais  partidário de um lado ficava o eleitor
Se nas eleições de 2010, a divisão do país expressa no mapa eleitoral já era escandalosa -- com Tymoshenko e Yanukovich tendo os votos quase absolutos de, respectivamente, Oeste e Leste --, por outro lado, ainda havia um grau mínimo de legitimidade para o governo eleito -- fosse qual fosse, certamente não haveria um consenso sólido, o que não equivalia, contudo, ao desmembramento do país. O fracasso objetivo do governo Yanukovich levou, no entanto, à erosão dessa frágil unidade nacional. E esse fracasso veio não só com os resultados sociais e econômicos insatisfatórios (a economia do país registra o terceiro ano de estagnação depois do baque de 2009), as óbvias e vergonhosas concessões feitas a Moscou, mas, sobretudo, com o resultado da repressão às manifestações favoráveis à aproximação do país com a União Europeia -- o que certamente foi mais relevante, em termos da derrubada de Yanukovich, do que a querela pró ou contra adesão à Europa.

De todo modo, se mesmo no século 19º, a velha geopolítica explicava muito mal o processo em curso, no século 21º menos ainda. Os imperialismos variados só podem ser considerados como arcaísmos, como máquinas de escrever, que se ainda existem, devem sua existência a condições específicas que demandam certa consistência. No caso, existe os interesses do bloco de poder burocrático do departamento de Estado americano de um lado, os euroburocratas no meio e o putinismo em curso. Não que o Império Global, com a profunda interconexão de fluxos de capital possa tolerar uma guerra efetiva. Quem está separado, ainda, são as pessoas comuns na Rússia, Ucrânia, Europa ou nos Estados Unidos, não suas respectivas elites políticas e, tampouco, suas elites econômicas.

Apesar da Crimeia, nesse contexto, parecer a vitória do Kremlin, ao contrário, ela retrata o fracasso do projeto de liderança regional elaborado por Putin, onde os membros da antiga União Soviética funcionariam, ainda, como satélites. A própria Ucrânia, mesmo antes da Revolução Laranja (2004), jamais ratificou o tratado da Comunidade dos Estados Independentes (CEI), a forma pela qual Moscou pretendia manter essa influência. Os países bálticos jamais fizeram parte do arranjo. Yeltsin ou Putin não conseguiram elaborar um sistema de poder que, de um lado, fornecesse algum bem-estar ilusório ou, mesmo, no pior sentido, criasse redes funcionais de oligarquias regionais. O Kremlin foi incompetente no bom e no mal sentido de se criar uma zona de influência.

Nesse sentido, do mesmo modo que na guerra vencida pela Rússia contra Geórgia em 2008, a vitória militar pontual não resultou na volta do ex-satélite ao controle do Kremlin, mas na criação de "repúblicas autônomas" controladas pela Federação Russa -- no caso da Geórgia, a Abkhazia e a Ossétia do Sul, no da Ucrânia, por ora, a Crimeia -- que se tornam enclaves militares. Não que o "ocidente", ou seja, a parte do arranjo imperial talvez majoritária, consiga prover, do outro lado, o bem-estar dessas populações -- vide que os líderes da Revolução Laranja, certamente um movimento "menos espontâneo" do que este, foram deixados a ver navios por Washington e Bruxelas em momentos dificílimos, sobretudo quando da eclosão da presente crise mundial -- a Ucrânia não se recuperou até hoje da queda de quase 15% do PIB em 2009, fato talvez decisivo para a ala pró-Moscou ter voltado ao poder, muito embora ela também não tenha dado um jeito na confusão.

O fato ocorrido na Crimeia, no entanto, não pode ser interpretado como "anexação" -- termo  popularizado pela máquina de propaganda nazista para, assim, justificar sua política expansionista na Europa dos anos 30 --, do mesmo modo que o levante pró-UE na Ucrânia não  foi uma conspiração gigantesca, mas antes de tudo, uma expressão de inconformismo contra uma situação econômica e social realmente ruim, além da vontade de autonomia dos ucranianos -- e ainda que haja manipulações para cá ou para lá, é fato que, antes de tudo, é preciso ter matéria-prima para tanto, isto é, muita gente insatisfeita, o que era precisamente o caso.

A solução para o caos da região pós-soviética está longe de ser alcançado. Mas ainda que uma dose de afirmação de diferenças culturais seja bom, pelo menos como antídoto, é preciso a conexão das forças democráticas de canto a canto nas rússias. Uma tarefa difícil que exige, afinal de contas, o desmonte da estrutura burocrática criada pelo stalinismo que tanto Putin quanto  seus aliados, e até adversários, na região ainda se usam -- ainda mais onde isso gera um efeito de "estabilidade" como na Bielorrússia.  Os nacionalismos de canto a canto -- e o nacionalismo ucraniano, em suas facções extremistas, restou fortalecido só no momento em que o cerco putinista se desenhou -- apenas dividem aquilo que precisa estar unido (de verdade). 








2 comentários:

  1. Vou dar dois pitacos: o forte desejo de ingressar na UE por muitos ucranianos está mais associado ao direito de residir na Alemanha e outros países da Europa Ocidental do que a uma expectativa racional de desenvolvimento do país. Mas acho que a emigração de quadros jovens e bem formados não é um plano de desenvolvimento nacional com muita perspectiva de sucesso. E os países bálticos jamais fizeram parte do "arranjo" e se mostram à vontade para se comportarem de modo profundamente antirusso porque lá atrás cometeram uma violência incrível: despojaram de cidadania um terço de sua população (de origem russa).

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    1. Mestre Patrick: da mesma maneira, a aliança com a Rússia, muito embora não tão profunda como desejaria o Kremlin, sempre ofereceu para os ucranianos a possibilidade de... emigração para a Rússia e não qualquer plano de "desenvolvimento" -- aliás, Kiev arcou durante os anos 90 com os custos das reformas fracassadas de Yeltsin. Eu tenho sérias dúvidas de que a entrada na UE, em si, traria melhoras para a Ucrânia ou mesmo se a atual UE seria capaz de integrar o país -- num sentido objetivo mesmo. Mas é uma opção, à luz da contenda atual, mais crível e até razoável do ponto de vista da democracia. Do ponto de vista ideal, eu penso que a resolução dos problemas ucranianos demandaria a reforma do espaço pós-soviético, no entanto, as pessoas trabalham com aquilo que concretamente têm e isso é praticamente impossível com o putinismo em Moscou. As atitudes antirrussas dos bálticos é questionável, como as atitudes anti-bálticas sempre foram questionadas -- isso eu frisei incansavelmente ao longo do post --, mas o ponto é que o afastamento dos bálticos de Moscou, e seu relativo sucesso, demonstra a incapacidade neo-imperialista do establihsment russo em promover uma zona de influência eficaz que fosse -- muito menos uma área de coexistência democraticamente sustentável.

      abraços

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