quinta-feira, 29 de maio de 2014

O Adeus do Subcomandante Marcos: notas sobre a Imanência e Fascismo como Apatia

Esta semana, o Subcomandante Marcos anunciou seu fim. Sua despedida, sua revolta ao corpo coletivo do qual jamais transcendeu, pondo a seguir um ciclo, um movimento de re-volta e re-torno -- um desaparecimento por afirmação, Marcos será agora Galeano, companheiro morto recentemente, na imanência pela imanência. Paradoxalmente, a extrema-direita cresceu na eleições do Parlamento Europeu,  foi ao segundo turno das eleições colombianas, os neoliberais venceram na Ucrânia e os conservadores hindus chegaram ao poder na Índia poucos dias antes.

Marcos era o porta-voz mascarado, de origem enigmática e ideias firmes do Exército de Libertação Zapatista -- possivelmente, o primeiro movimento de relevo do ciclo de lutas da globalização: eram tempos agrestes quando eles surgiram, anunciava-se o Fim da História, seu México estava sendo tragado pelos EUA  e boa parte da América Latina, após conseguir se libertar das ditaduras militares, se via agora entrando no ciclo neoliberal que devorava as esperanças a respeito de suas jovens democracias. 

Quem era Marcos? Um personagem, um ser sem rosto, sem nome, sem patente: sua liderança, simbólica, estava posta sob o comando coletivo. Marcos seria o nome de um colega tombado na batalha, mas poderia ser o ajuntamento dos nomes das localidades onde primeiro se levantaram os zapatistas, no pobre estado mexicano de Chiapas. Quem seria Marcos de jure, mesmo que o governo mexicano tenha chegado a possível verdade, pouco importa. Um subcomandante. Os guerrilheiros tecnizados usavam a nascente Internet, mas se declaram índios. Estava na imanência das lutas e na imanência das lutas Marcos se desfez -- ao se refazer.

Em boa parte dos outros processos eleitorais nos quais triunfou a extrema-direita, um clima de indisfarçável apatia toma conta do cenário. O fascismo será sempre a atitude transcendente e totalizadora do Sistema se manter, a qualquer custo -- apoiado por pessoas suficientemente exauridas, física e mentalmente, para lhe servirem de anteparo.  No mundo da modernidade, o fascismo era a resolução negativa do homem do medo e da esperança; hoje, é a radicalização do desespero e do delírio paranoico securitário. A eleição do fascismo não é fruto da falta de "pragmatismo", de "prudência", de "estratégia", mas da própria apatia social e política, sobretudo entre quem poderia mudar algo.

Se o Subcomandante Marcos foi-se, como no "fim" de uma zona autônoma temporária, uma vontade de eterno [na potência] marca a complexa maquinaria da qual decorre, e se sustenta, as variadas formas de neofascismo -- o fundamentalismo hindu, o uribismo narco-bélico, o racismo dos Le Pen. A ideia de uma eternidade na potência, um imobilismo primeiro, como a máquina primordial do aristotelismo se associa com um movimento, e um jeito de garantir um certo movimento: num mundo onde o capital é plenamente livre, nenhum tipo de fluxo, nem mesmo o trabalho, pode deixar de ser represado.






domingo, 18 de maio de 2014

Água Bem Comum

A água está na ordem do dia. A água é algo tão terrivelmente natural que nos esquecemos como ela chega até nós. Ou melhor, nos esquecemos até que surjam riscos de não haver mais água potável. Ou até que inundações destruam cidades e plantações. Em um país como o Brasil, a água, ou sua falta, sempre foi algo sentido à distância, como um problema do sertão nordestino ou das longínquas periferias metropolitanas. Com a possibilidade, absolutamente anormal, de um colapso no fornecimento hídrico em São Paulo, com as enchentes anormais no Norte do país, que devastaram o Acre e as angústias em relação à Transposição do Rio São Francisco, uma nova rodada de reflexões e lutas em relação aos recursos hídricos se impõe.

"Água bem comum", ou acqua bene commune, é um bom mote e remete ao nome de um movimento que surgiu na Itália há poucos anos, na esteira da luta contra a privatização da água, espalhando-se logo mais pela Europa. E a água como bem comum é uma luta central do nosso tempo. Porque nossa luta precisar estar na luta pela distribuição comum de água, isto é, para além da administração burocrático-estatal dos recursos hídricos ou de sua paulatina conversão em mercadoria -- o que se vê quando um executivo de uma corporação do porte da Nestlé defende, sem maiores constrangimentos, a privatização da água ou, prestem atenção, quando a filial da mesma no Brasil lança uma ofensiva contra fontes de águas medicinais.

A gestão dos recursos hídricos, ou os recursos hídricos sendo sujeitos de um regime de gestão e gerenciamento, igualmente. A passagem da superabundância de água para o regime de processamento e fornecimento enquanto "serviço público" é própria da modernidade: de repente, as fontes "naturais" diminuíram, em grande parte pelos efeitos nocivos da produção industrial e a poluição urbana, e ter acesso a fontes e  técnicas de processamento e recondicionamento de água se tornou uma questão estratégica para os Estados, das atividades mais centrais dos governos. Água bem público, isto é, produto de Estado -- e o Estado é, também e sobretudo, uma máquina hidráulica, que decide para onde água -- a vida -- pode ou não pode não ir.

É claro, a relação entre Estado -- ou proto-Estado -- e água é muito anterior ao neoliberalismo e à modernidade. A própria civilização nasceu, não por acaso, no Egito pois foi lá que o poder político passou a dominar, e assim, a desnaturalizar o uso de um Rio [o Nilo], controlando seus ciclos naturais e impondo, assim, regras sobre o que há de mais elementar para a vida humana. Hoje, uma das maneiras que permitem, e explicam, a dominação israelense sobre os palestinos é, justamente, a disputa e a consequente repartição desigual dos recursos hídricos -- como bem lembrado por Lenora Bruhn em recente evento sobre a Nakba na PUC-SP.

Com o neoliberalismo, uma nova ofensiva: água enquanto produto mercantil com o movimento que vai desde a venda onipresente de garrafinhas de água mineral até, vejamos só, a exclusão gradual de parcelas importantes dos recursos hídricos para consumo direto ou indireto -- como no caso da geração de energia --- das indústrias dentro de um modelo de produção voltado apenas ao lucro privado. 

A gestão privada de recursos hídricos, com empresas privadas, ou semi-privadas, fazendo às vezes do que os órgãos públicos já faziam, é mais consequência do que causa de problemas. A água, mesmo quando administrada por órgãos públicos, já estava contabilizada em termos econômicos, embora sua eventual falta, nesse caso, atendesse a determinações de Estado e às contingências de seu domínio. Com a privatização do fornecimento, como aconteceu, p.ex., na Argentina por determinação do FMI, o lucro imediato e, logo mais, a possibilidade de fazer renda financeira com água passa a nortear a gradação, quantidade, qualidade de seu fornecimento e de sua falta.

A geração de energia a partir da água, com imensas hidrelétricas, como vemos no Brasil e causa tanta polêmica em obras como a usina de Belo Monte -- ou a igualmente megalomaníaca usina de Três Gargantas na China -- tem por resultado a destruição de cursos originais de rios com consequências imprevisíveis. A construção de barragens na Amazônia brasileira está diretamente conectada à cheia violentíssima do Rio Madeira. Em ambos os casos, o uso do "potencial hídrico [para gerar energia]" esconde uma demanda de energia voltada à alimentação de plantas industriais ineficientes -- inclusive no caso chinês, mais ainda no caso brasileiro --, voltadas à superprodução de bens industriais.

No que diz respeito ao consumo de água, o Nordeste brasileiro é um paradigma: região historicamente afetada pela seca, jamais foi alvo de qualquer intervenção política. O monopólio das águas, na forma das barragens de represas artificiais ou dos açudes, concedia poder efetivo a velhos coronéis. O que escapava a isso, acabava sendo uma interessante fonte de pressão "natural" para expulsar enormes contingentes humanos da região, os quais se tornaram a mão-de-obra barata para a indústria em outras regiões. 

A própria política de Transposição do Rio São Francisco é uma das pedras de toque do Lulismo na sua política de investimento no Nordeste -- invertendo o sinal da política estratégica nacional do país desde muito --, mas muito embora possa ter consequências ambientais menos severas do que as usinas na Amazônia, retrata uma política de Estado e molar, o qual se sustenta no modelo da mega-obra e não, digamos, em modelos mais inteligentes e democratizantes como a construção de amplas redes de cisternas

A crise da água em São Paulo, por seu turno, é o que mais chama a atenção, sobretudo pelo seu ineditismo. O governador paulista Geraldo Alckmin inaugurou o uso do volume morto -- isto é, o volume de água que está abaixo dos mecanismos de coleta da água -- do reservatório Cantareira, protelando o racionamento de água necessário pelas circunstâncias. O volume morto, pela maneira como se acumulam detritos e sedimentos é terrivelmente perigoso. Mas em um momento digno do realismo fantástico latino-americano, o governador bandeirante o inaugurou com pompa e cerimônia. Apesar do discurso de que é uma "tragédia natural", um acaso da mãe da terra, tudo isso esconde que a situação de calamidade iminente, mais do que uma seca ocasional. 

A omissão populista quanto à queda dos reservatórios, a falta de investimentos em canos para evitar vazamentos e a falta de uma política para uso da água potável geraram a crise. O não investimento na exploração do potencial hídrico do Aquífero Guarani é um detalhe, não falta água, ela sobra, mas com o atual nível de desperdício, com núcleo metropolitanos demasiadamente habitados, deflagraram a crise. 

Os desdobramentos da crise paulista não são alentadores. Inclusive porque a própria distribuição habitacional faz com que os pobres morem em lugares mais distantes, altos, precários e com menor possibilidade armazenar água do que os ricos. Se isso ainda pode ser piorado, com um racionamento mais duro aqui e não ali, é evidente que existe um risco posto, que aumenta na medida em que a transparência política diminui. Pior ainda, nas áreas mais ricas, os canos são mais novos, o que impede ou diminui a contaminação em situações nas quais a pressão do fluxo de água é menor.

O modelo paulista de gestão da água em São Paulo está nas mãos da Sabesp, uma empresa de economia mista, cujo maior acionista é o governo paulista. O lucro da empresa só no ano passado chegou a quase 2 bilhões de reais, com um faturamento de 11 bilhões. A Sabesp, apesar do controle do governo estadual paulista, tem ações na bolsa como qualquer corporação. Ela se situa, pois, no terreno pantanoso entre o Estado e o Mercado, expondo que a diferença entre ambos é mais relativa do que se imagina. 

Mais ainda, a relação de seus investimentos está longe, muito longe de políticas abertas e democraticamente construídas, com muita transparência corporativa, mas baixíssima transparência social e política. A empresa serve aos seus acionistas, as empreiteiras com quem contrata e, em derradeiro lugar, às demandas sociais e ambientais. O neoliberalismo tucano certamente colocaria pouquíssimo peso na demanda social e, tanto mais, na demanda societária naquilo que lhe cabe decidir.

Dilma tem razão quando diz, indiretamente, que Alckmin falhou na política hídrica, no entanto há mais coisas entre o céu e a terra do que pode supor uma análise apressada; a política de lucro, e logo mais capitalização sobre a escassez -- que é a definição técnica de renda financeira -- que o neoliberalismo tucano admite para a água antevê sempre problemas, pois a demanda social é atendida somente quando a coincidência disso com os interesses econômicos. 

No entanto, no neodesenvolvimentismo nem tudo são flores, as apostas em obras gigantescas, criam um modelo que varia entre insustentabilidade ambiental ou a estrutura de distribuição grandiosa, que pode efetivamente funcionar, mas que não traz uma emancipação à vista -- a sustentação em um sistema cisternas e uma rede marcada pela microcaptação em vez da macro-exploração cria relações democráticas e relativamente independentes do Estado, o que não se vê nas gigantescas máquinas construídas a partir da transposição de rios, como se vê, afinal, desde a época do Faraó.

Um horizonte possível para uma luta constituinte pela água como bem comum teria em vista redes menores e melhores de água nas quais a distribuição, e o cuidado comum, com os recursos hídricos -- desde a extração, tratamento e saneamento -- sejam o foco e as faltas d'água não podem se dever a razões de Estado ou maneiras de ganho -- como, também, as superabundâncias precisam, desde o primeiro momento estar a favor da vida, o que demanda a democratização da discussão sobre a água. Do contrário, o mar virará sertão em toda parte.



sábado, 3 de maio de 2014

Putin e seu Rasputin: Notas sobre Dugin e o Olavismo.

Dugin, simpaticíssimo, na Ossétia em 2008: Guerra Russo-georgiana
A atual crise russo-ucraniana trouxe uma novidade para o meio intelectual: de repente, a figura do pensador russo, e conselheiro de Putin, Aleksandr Dugin (pronuncia-se "Duguin") e seu  neoeurasianismo (isso mesmo: novo + Europa + Ásia) ganharam uma curiosa notoriedade. Dugin, anti-liberal, místico e barbudo parece ter se tornado o norte ideológico do claudicante regime russo, que de um neoliberalismo radical com Yeltsin ganhou mais e mais características nacionalistas e populistas com Putin -- sobretudo após os protestos massivos dos fins de 2011, quando o presidente russo viu seu nome, já em baixa, ser colocado em xeque depois de uma possível fraude eleitoral, com vistas a favorecer seu partido, nas eleições parlamentares.

Quando eu ouvi falar em Dugin, sua retórica pop e suas referências intelectuais -- uma verdadeira mistureba que vai do misticismo aos pensadores da nova direita francesa e os pensadores nazistas (sim, os nazistas!)  --, o nome do nosso Olavo de Carvalho me veio à mente -- não que Olavo seja fascista, mas pelo sua maneira, digamos, exótica de misturar ideias (no caso, astrologia e ultraliberalismo genérico) e retórica para defender uma posição reacionária qualquer. O Pior de tudo é que Dugin, que fez um longo tour pelo Brasil em 2013, com direito a palestras na USP e em outras universidades, debateu com Olavo em 2011 (!!!); por trás do debate e das visitas, uma galera ligada à "nova direita cultural" no Brasil.

Desde a revolução de outubro, e apesar do Stalinismo, do Revisionismo e do Neoliberalismo pós-soviético, costumamos associar a Rússia à esquerda -- ainda mais porque as geopolíticas de esquerda do governo Lula e da América Latina encontraram em Putin um (acidental?) aliado. Por outro lado, a direita brasileira sempre esteve associada aos Estados Unidos. Daí o fato de Olavo não ter curtido Dugin -- e, em sentido inverso, a razão (ou falta dela) que levou a política de Putin para a Ucrânia ter sido aplaudida pela esquerda progressista brasileira (que em seus blogs chegaram a dar eco a Dugin). 

É claro, o que se pode dizer de uma genuína esquerda russa, soterrada no mar de ultrapatriotismo dos últimos tempos, certamente não deve estar feliz com tal "engano". E parte da esquerda brasileira, pelo menos aquela que não foi sequestrada pelos delírios do Brasil Maior, tampouco. O próprio discurso triunfante de Putin em relação à incorporação da Crimeia acusa o golpe da influência duginiana: foi a principal fala política contrária aos levantes globais que se tem noticia, o que coloca tão ou mais à direita que Obama, que colocou no mesmo patamar, malandramente, o Tea Party e o Occupy Wall Street.

Dugin, que já esteve próximo de um certo saudosismo soviético, depois dos Nacional-Bolsheviks -- a versão "nacionalista" dos velhos bolsheviks -- até  conseguir finalmente o posto de conselheiro real -- coisa que não são poucos "intelectuais", mesmo de esquerda, que desejam.  É claro, Dugin tem mais consistência que os Olavos e quetais, mas só o fato dele ter debatido com O.C. em pessoa, já indica todo o rigor do seu pensamento ou de seus apoiadores internacionais. 

E seu neoeurasianismo é só uma teoria que serve bem a Putin e aos seus hoje na disputa entre os velhos blocos de poder nacionais. A teoria em questão, aliás, é sobretudo uma forma de destruir a União Europeia, o que construiria uma inevitável proeminência do Estado russo -- e talvez aí se explique a aliança de Putin com a extrema-direita francesa e, também, porque Washington esteja reticentes em confrontar abertamente Moscou na questão ucraniana, justamente por ver nisso um meio de enfraquecer Bruxelas. 

Enfim, isso é só um relato sobre como um mundo parece fazer cada vez menos sentido -- ou como velho poder, de olho no comando ou em formas de agenciamento com a "economia global", parece cada vez mais tributário de literatura barata (do mesmo modo que Reinaldo Azevedo influencia políticos tucanos). Se há poucos dias, o mestre Bruno Cava trouxe em seu blog um magnífico debate sobre a atualidade de Lenin, me parece que pelo menos um novo Rasputin já temos. Só para lembrar Cava, precisamos de uma *segunda via* para essa coisa que aí está -- e eu digo ao som das Pussy Riot, de preferência, por mais que elas sejam cândidas com Obama. Eis o estado da Arte, e a arte do Estado, deste grande pornô nonsense que é o Global.

Atualização de 04/05/2014 às 02:03: Bruno respondeu com um post de fôlego que dialoga com este e os dois posts anteriores sobre a temática russo-ucraniana.