segunda-feira, 28 de julho de 2014

Diário da Terra do Nunca: a Palestina é Aqui

Gaza sob ataque de Israel
No ano do centenário da Primeira Grande Guerra estamos, ironicamente, às voltas com um quadro agitadíssimo: cenários de guerra tomam conta da Ucrânia, Síria, Iraque e, sobretudo, a Palestina -- e o massacre de Gaza toma conta do noticiário --, as potências do mundo emergente se unem nos BRICS -- numa alternativa ao mundo americanocêntrico --, o Brasil segue agitado em sua política, depois das Jornadas de Junho, uma série de prisões políticas é empreendida -- inclusive com a pirotécnica operação que prendeu dezenas de militantes no Rio de Janeiro, os quais foram recém-libertos, muito embora continuam a responder a processo criminal.

Nada disso está desvinculado, no entanto. O Brasil potência emergente, aquele que se alinha aos demais países pobres para fazer frente ao "mundo unipolar", é o mesmo Brasil potência que partiu para a repressão política organizada -- numa operação que passa pela integração dos vários tipos de polícia de vários estados, judiciário e mídia. O Brasil de fora não contradiz o Brasil de dentro, ao contrário, eles se explicam em um sentido extra-moral: articulam o capital e o trabalho a partir de uma burocracia de Estado nação, o que, entretanto, implica em ações específicas no plano interno e no plano externo -- que podem ter, dependendo de como se veja, efeitos diversos, mas não causas dissociadas.

Esses movimentos da diplomacia brasileira, em sintonia com a vanguarda emergente, geram, em certa medida, algum grau de liberdade na política internacional, quando se opõem ao eixo americano, mas isso é colateralidade: não estamos falando de um internacionalismo, mas de uma outra arquitetura para um mesmo arranjo global. O mesmo mundo, mas articulado de um outro jeito. O que, de certa maneira, não é qualquer ameaça ao capitalismo global, muito pelo contrário: ao criar uma alternativa que não aquela de um Império Global assentado na estrutura centralizada, e decadente, dos EUA -- isto é, o santíssima trindade Hollywood-Bombas Atômicas-Dólar --, o capitalismo ganha sobrevida.

Sim, porque a pior ameaça ao capitalismo global é, ironicamente, os EUA, que de guardião militar, cultural e monetário do mundo unificado, se tornou uma superpotência desequilibrada, instável, dada a aventuras. Sua substituição não é fácil, mas é necessária. E não tem a ver com "imperialismo", "colonialismo" ou "alter-mundialismo", não há coincidência entre as demandas do capital global e da multidão insurgente, mas sim que esta pressiona de tal forma a gestão atual do Império que aquele precisa se rearticular -- e não só existe essa pressão, mas que os próprios mecanismos atuais são insuficientes.

Boa parte da crise econômica atual se deve às crises americanas internas que, no entanto, foram exportadas para o globo: o rombo das contas públicas, por uma guerra patética como a do Iraque, foram pagas pelos excedentes do mundo emergente, os ajustes nas contas públicas -- que passavam sim pelo enxutamento de suas forças armadas -- foram protelados pela emissão desenfreada -- e artificial desvalorização -- do Dólar, as suas instituições públicas e privadas de regulação financeira fracassaram clamorosamente, as guerras se voltaram mais para a satisfação de um esquema protecionista industrial -- no caso, do complexo bélico-armamentista -- do que na contenção das classes perigosas.

A aliança entre os Estados "emergentes", Brasil à frente, cada dia mais suscita uma possibilidade mais segura para o capital. Inclusive porque a Europa, com o Euro, não conseguiu se tornar a alternativa a Washington. Mas esses Estados, todos, sustentam e gerenciam, cada qual ao seu modo, o capitalismo local. É certo que, no caso de sucesso dos Brics, haja um intercâmbio cada vez maior entre os parceiros em termos de tecnologias de poder, além de políticas macroeconômicas. E tudo isso serve, a priori, para a sustentação dos capitais nacionais ou egressos do "primeiro mundo" que hoje estão radicados em seus territórios.

Aí, aportamos novamente no Brasil. No mesmo ciclo em que ele protagonizou, na esfera internacional, alguns dos episódios mais relevantes em direção à nova ordem mundial -- ao sediar a reunião chave dos Brics e reagir diplomaticamente à ofensiva israelense em Gaza --, por outro lado, existe uma política de Estado voltada ao endurecimento com manifestantes; a democracia substituída pela razão econômica e, também, pelas razões geopolíticas. Realizar a Copa a qualquer custo é tarefa de honra. Organizar os Estados emergentes, idem. 

A tese da bondade externa do Brasil, quando vista apenas em confronto com a opacidade de Washington, prevalece, mas ela resta relativizada quando ponderada à luz de si mesma: o mesmo Brasil que critica a ação em Gaza é aquele que intercambia intensamente com Israel, inclusive no plano militar, seja na venda de armamentos leves para lá quanto na incorporação de armas e logística israelense na opressão de nossas favelas. Em outras ocasiões, como a ocupação brasileira no Haiti, temos uma outra página pouco questionada da história brasileira -- que serve também para a opressão internacional e, também, para o treinamento para a repressão social no plano interno. A política externa terceiro-mundista e alternativa importa, também, na exportação de empreiteiras brasileiras para obras questionáveis pelo mundo em desenvolvimento, sobretudo na América Latina.

A análise que Bettelheim fazia acerca da União Soviética pós-Stalin é válida, também, para o Brasil, atual: existe um mecanismo duplo de colaboração e contradição com a ordem mundial; e não há qualquer disfunção nisso, o movimento duplo é como o de qualquer sócio que disputa uma corporação com demais sócios ou, na política, de um partidário que disputa um partido com correligionários rivais. No fim, a ordem mundial ou a corporação e o partido dos exemplos restam intactos. A rivalidade e a disputa por hegemonia é, no entanto, retrabalhada ideologicamente para, gradualmente, servir à legitimação da repressão interna -- o que potencializa a gestão do trabalho pelo capital (nem que seja estatal ou sob o comando de um Partido "Comunista").

O Império global concebido por Negri e Hardt está na ordem do dia, embora precise ser repensado diante da complexidade das relações internacionais atuais: a unidade econômica foi feita, mas não tem, ainda, anteparos políticos para dar conta das contradições entre o capital global e cognitivo e a multidão produtiva e produtora. A crise americana gerou um desarranjo que expôs as vísceras da máquina, mas ela está longe de ser derrotada. Há apenas um abalo no céu. O que se passa no Brasil de hoje não está longe ou alheio a nada disso. Mais do que os velhos trotskystas, que insistiam na internacionalidade da luta, seria o caso de relembramos Rosa Luxemburgo, clamando contra os trabalhadores que se esfacelavam nas trincheiras da (centenária) Primeira Guerra. 

O antagonismo central em 2014 não é, como na Copa, uma disputa entre estados-nação, mas sim o capital contra a multidão em escala global, o que perpassa os Estados. O Estado brasileiro só interessa quando posto em função da luta global por democracia, o que importa num movimento externo e um outro interno de democratização, sem ressalvas. Nenhuma violência pode ser tolerada, ou criticada seletivamente, sob os auspícios de uma revolução socialista silenciosa vinda de alguma burocracia celeste, se é que alguém realmente acredita nisso. É tudo muito simples: Gaza e o Complexo da Maré são metrópoles do mesmo país.

P.S.: Nada disso apaga a complexidade das relações políticas internas e externas do Brasil. Nem seus defensores à esquerda negam os fatores heterogêneos que compõem a organização do Brasil Novo. Só vemos com preocupação a reviravolta dos últimos anos, que potencializaram tendências, em parte, mitigadas nos oito primeiros anos do ciclo petista. É preciso reinverter certos sentidos.  

P.S. 2: Um mundo pós-americano é interessante e necessário. Talvez, uma nova ordem mais pulverizada fosse, a priori, melhor. O que não quer dizer que seja uma saída. Uma confederação global de fundo estatal não responde à altura as demandas libertárias. 

PS. 3: Se opôs aos Estados Unidos pode sim ser uma brecha democratizante interessante, mas é preciso fazê-lo sem pretensões de tomar seu lugar -- ou construir algo que pense em fazer isso.



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