quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Esquerda Caviar, Direita Fast Food

Junk Food People -- Joe Maccarone
Essa conversa de "esquerda caviar" é o cúmulo da infantilização do debate político-ideológico. E eis que agora ela voltou à cena, com o termo sendo empregado pelo douto magistrado paulista, e professor, Marcelo Matias: ocorreu, pasmem, na decisão que negou a soltura de Fábio Hideki e Rafael Lusvargh, os dois ativistas presos sob falsa acusação de porte de explosivos em uma manifestação -- falsidade que nem a Folha de São Paulo, em editorial, ousou discordar. 

Mas voltemos ao nosso pálido espectro. Embora cá no Brasil a ideia de "esquerda caviar" tenha sido, recentemente, popularizada por Rodrigo Constantino -- um jovem inseguro e "liberal", que aparece aqui neste vídeo, levando uma surra homérica num debate com Ciro Gomes --, ela tem uma origem mais antiga. Aparece, segundo se sabe, na França, saindo da boca dos detratores de 1968, os mesmos que atacariam logo mais o governo Mitterrand -- contra o qual se voltavam, sobretudo, por sua política interna pró-direitos civis e direitos humanos: mas isso vinha tanto dos direitistas fanáticos quanto da esquerda (euro)comunista, a qual não se conformava com os desvios "burgueses" e a política "mole" do líder francês. Contra a política praticamente neocolonial mantida pelos socialistas em África, nem um pio. 

O deboche da "esquerda caviar" sempre foi uma espécie de pacto Ribbentrop-Molotov das bravatas: unia fascistas e stalinistas na mesma estranha, e boçal, aliança. O termo, apesar do tom aparentemente bem humorado, esconde uma visão persecutória e criminalizadora: sempre se voltou a deslegitimar os setores da esquerda democrática, libertária e adepta da virada cultural dos anos 1960, vinculado-os ao fantasma de sua eventual origem de classe -- o que nem sempre é verdade, aliás. 

E também atentava contra algo muito presente no pós-68: o desejo de ter, o desejo de desejar, atacado pela falácia implícita na fórmula esquerda coerente = estar na/cultuar a pobreza. Esses novos esquerdistas seriam "desocupados" que abraçam causas que não lhes dizem respeito, cabendo aos trabalhadores se afastar deles para "não se meterem em problemas", "não entrarem na onda de gente louca, inconsequente e irresponsável"

Não é de se espantar que esse mesmo discurso tenha unido a direita aos stalinistas, ou equivalentes, naquele momento e ainda hoje. A ditadura do economicismo em suas faces direita e esquerda. O reaparecimento do espectro da "esquerda caviar" foi visto, recentemente, quando alguns velhos amantes do eurocomunismo no nosso país, como Mino Carta e Walter Maierovicth, se usaram dele para desqualificar os defensores da não-extradição do ativista italiano Cesare  Battisti -- extradição a qual era reclamada pelo Estado italiano, que o condenou anos antes, com poucas provas, num clima da caça às bruxas lamentável. Entre a perseguição italiana e o refúgio no Brasil, coincidência ou não, Battisti esteve abrigado por décadas na França, enquanto vigeu a doutrina Mitterrand. 

Do ponto de vista do seu uso pela direita neoliberal, temos o livro de Constantino que nem na sua grande criação conseguiu ser original: a reedição da "esquerda caviar", pronta à pretensa desqualificação pública de setores acadêmicos e médio-classistas que atacam o "pensamento único", os quais seriam contrastados com a massa "trabalhadora", "de bem" e "boa pagadora". E isso se transforma até mesmo em fundamento judicial para manter ativistas presos: ora, se são uma "esquerda caviar", não merecem perdão ou devido processo legal. O deboche -- o humor duvidoso empregado contra minorias, oprimidos e fragilizados -- surge como uma hiena cumprindo sua função punitivista.

Se houvesse alguma honestidade nessa falácia, se isso se tratasse de um auto-engano ou desconhecimento teórico, poderíamos citar Reich e sua lembrança preciosa de que libertação e opressão não são uma pontos objetivos, mas sim itens ligados à posição desejante, pois não é o fato objetivo da carência que impele nenhuma revolução: fosse assim, os trabalhadores fariam greve sempre, ou os pobres sempre  se rebelariam, e os ricos estariam todos satisfeitos. Ou que não é errado ter bens de consumo, ter ou não ter algo de sua época, é fruto de escolhas pragmáticas e não-egóicas, não uma questão moral -- inclusive porque se fosse, nenhum anticomunista poderia utilizar serviços que dependem de satélite, uma invenção socialista. Mas, volto ao ponto levantado, a história da "esquerda caviar" não é séria.

A falácia disso reside em várias coisas: se ser de esquerda é incoerente para quem não é pobre ou trabalhador, por que então fazer greves, questionar o poder ou se rebelar nunca lhes foi permitido? E como a origem de classe de parte da nova esquerda deslegitimaria, a priori, sua voz em relação a qualquer tema? E quem é pobre e deseja desejar, como fazer? E por que alguém que come caviar precisa se sentir satisfeito com a sociedade em que vive? Ou, afinal de contas, por que não podemos comer, ou desejar, caviar?

A coerência de uma esquerda não se mede pela origem de classe, hábitos em si ou trejeitos que possa ter, mas sim pela sua coragem, capacidade e força para assumir, de um bom grado, muitas dores que permeiam nossa sociedade e lutar para pôr fim a elas. Lutar pelos negros sem ser negro, lutar pelas mulheres sem ser mulher, lutar pelos estudantes apesar de ser estudante. Não, não há nenhum problema em não ser egoísta, não temos porque ser vítimas dessa má consciência primária. Lute por Hideki porque ele lutou por você -- o que é mais pura verdade.

Mas o que essa nova direita teria a nos oferecer senão, para manter aqui as referências culinárias, um grande fast food: essas pastas de gordura, pseudo-carne, sódio e açúcar prontas a serem devoradas rapidamente -- para que possamos, afinal, trabalhar --, nos fazendo a um só tempo diabéticos, hipertensos, com as veias entupidas, obesos, obedientes e ansiosos. Escravizados por uma comida cujo gosto simplório só agrada, em verdade, ao paladar infantil ou infantilizado. Combustível perfeito para nos tornar seres bovinos no comportamento e na aparência, embora sem direito à mesma dieta saudável que os bois têm nos pastos. E o que a esquerda da realpolitik tem a dizer senão que é prudente se aliar a isso?

Fiquemos com o caviar, os bons vinhos, a boa comida, a arte, a literatura, o devido processo legal, os direitos civis e os sonhos -- sabendo que tudo isso é bom, mas melhor ainda se repartido. Contra o rebaixamento dos gostos, da estética, da linguagem, enfim, esse mundinho pequeno, kitsch e desprezível no qual nos querem prender -- que no fim das contas, é a verdadeira prisão. Esquerda caviar sim, com muito orgulho: boa comida não entope artérias.



2 comentários:

  1. E desde quando a produção de desejo não está também sujeita à mais-valia?

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    1. É uma questão interessante. Eu diria que a mais-valia é sempre mais-valia de desejo, antes mesmo e para poder ser a financeira, mas nem todo fluir do desejo está sujeito à regra da mais-valia -- do contrário, as revoluções, as crises, os golpes e todas as contingências históricas seriam impossíveis.

      abraços

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