domingo, 25 de janeiro de 2015

Grécia: A Vitória do Syriza será o Fim da Austeridade?

"Mantenha a Calma e Vá para o Inferno" (o amor dos gregos à Troika):
Aris Messinis/AFP/Getty Images
Há pouco, o Syriza, Coalizão de Esquerda Radical, venceu as eleições parlamentares gregas. Embora a Grécia atual esteja longe de ser uma economia relevante na Zona da Euro, sua mais recente eleição é o tipo de pequena batalha que pode fazer toda a diferença numa guerra: ela manda um recado claro para todas as outras partes do front, uma mensagem que mostra como vencer a guerra. É como a batalha de Stalingrado, quando o exército vermelho despachou as hordas nazistas: parecia impossível derrota-los até, mas só até ali.

O discurso dos vitoriosos gregos, sob o comando de Alex Tsipras, é simples: resistência absoluta contra a austeridade, isto é, as medidas que a Troika -- FMI, Banco Central Europeu e a Comissão Europeia -- impuseram restritivas aos países da periferia da Europa na presente crise.

A velha fórmula da Troika, segundo a qual as contas públicas só serão salvas pela redução de direitos sociais, arrocho salarial e desemprego, virou dogma. A realidade grega atual, portanto, não é muito diferente daquela vista no Brasil dos anos 90, ou da que, bisonhamente, começa a se desenhar de novo por aqui.

Na Europa, para além de todas as variáveis da explosão global de um sistema financeiro desregulado -- de normas democráticas, obviamente --, além de dinheiro público ter sido usado aos montes para salvar bancos privados, a sanidade das economias menores foi duramente afetada pela inviabilidade do Euro. 

Países como Grécia, Portugal e Espanha já tomavam empréstimos pesados para fecharem suas contas, uma vez que acumulavam déficits monumentais por conta de uma balança comercial desfavorável. A coisa piorou quando seus déficits públicos pioraram com os resgates e com a secura do crédito europeu. 

Com uma literal hemorragia monetária, esses países dependeram da concessão de empréstimos sob condições mefistofélicas: sua vida renovada em troca da sua alma. 

Em toda a periferia da Europa, em troca de empréstimos, direitos foram esmagados: pensões ou aposentadorias cortadas ou diminuídas, o funcionalismo e o serviço público público arrochados, política de desemprego em massa.  Uma multidão de desempregados e desamparados foi criada para pagar uma dívida infinita. 

Esse empobrecimento planejado, ao contrário do que ele prometia, não teria fim. Os gregos continuariam correndo como um cão atrás de sua cauda, sem jamais sair do lugar -- a exemplo do Brasil dos anos 1980 e 90.

Essas políticas tiveram o apoio tanto da centro-direita quanto, vejamos nós, dos partidos da centro-esquerda socialista. A degradação social europeia tinha a mão de sua "esquerda". O equilíbrio político europeu ocidental do pós-guerra teria de ser posto abaixo. 

A velha disputa mais ou menos previsível entre partidos democratas cristãos/populares, de direita moderada, e social-democratas chegava ao seu grau zero: com eles juntos para executar um sistema de exploração social, algum força deveria surgir. 

A direita moderada, que colaborou com a civilização enquanto existiu o bloco soviético, se degenerou. A esquerda social-democrata, com um horizonte de reformismo socioeconômico cada vez mais achatado se esvaiu. Assim, por óbvio, o espaço para uma nova geração de partidos surgiu.

O Syriza, a rigor montado entre dissidentes pouco ouvidos das bases das esquerdas tradicionais, incorpora um discurso renovado que incorpora a questão ambiental, os direitos civis e, sobretudo, a busca por uma alternativa à estrutura socioeconômica capitalista -- algo que a esquerda europeia, a rigor, não ousa fazer desde os anos 1980.

A exemplo dele, temos também o Podemos, favorito a vencer as eleições parlamentares espanholas que se avizinham em 2015. Não é estranho que tenham surgido onde, precisamente, as políticas da velha Europa mais foram mais cruéis nos últimos anos.

A vitória de Tsiripas, a despeito de seus inegáveis méritos, não terá um caminho fácil. Seu discurso de adequação da Europa à Grécia, com a racionalização da dívida pública, ou saída da Zona do Euro,  é forte, mas encontrará reação.

O desafio não é só resistir à reação dos perpetradores da política de austeridade como, também, a constituição de novas saídas. Menos do que vítima de políticas pontuais, o fato é que o Euro não funciona e isto consiste em um problema sistêmico. 

Como ensinam as experiência de dolarização das economias latino-americanas -- inclusive a política de paridade com dólar, vista no Brasil dos anos 1990 --, jamais a adesão de uma economia pobre a uma moeda forte irá produzir prosperidade: ao contrário, as importações explodem, as contas se degeneram.

Por outro lado, se a união da Europa nos termos atuais é um horror, qualquer medida que a enfraqueça também tem seus riscos -- como bem o sabe Tsipras e seu partido.

Não há dúvidas de que a receita de bolo vendida para a Grécia, nos últimos tempos, não era saída, mas ao mesmo tempo é preciso pensar que ela era uma má resposta para um problema objetivo.

Ainda que a realidade não seja propriamente dialética, os processos econômicos capitalistas são sim: a objetividade da crise do Euro gera efeitos subjetivos, nos quais se incluem as políticas de austeridade, e, assim, surge uma nova problemática também com dimensão objetiva, a degeneração social.

Hoje, reinventar uma subjetividade é fundamental, pois é preciso fugir à ideia da "culpa sem fim dos gregos", aquela que justifica o sujeito suicidário da austeridade para, em seu lugar, constituir o sujeito da praça pública [e, por que não, comum]; contudo, é preciso também uma dose de objetividade -- o que vulgarmente se diz "realismo" -- nas reformas, sobretudo em uma atuação continental para a necessária reconstrução do sistema monetário europeu.

P.S.: pelas regras do sistema eleitoral grego, 250 das 300 cadeiras do parlamento se dividem proporcionalmente entre os partidos que tiveram mais de 3% dos votos, enquanto as outras 50 cadeiras são dadas ao partido vencedor. Com isso, um partido governa sozinho se tiver 40% dos votos. Nesse sentido, ainda não se o Syriza governará sozinho ou precisará de algum parceiro para governar. De todo modo, será por muito pouco.

P.S. 2: A vitória da esquerda grega manda um recado para a Europa, mas também ao Brasil e sua recente inflexão na política econômica.



terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Caso Archer: A Pena de Morte ou O Que Pode o Direito?

A Morte de Sócrates de Jacques-Louis David
O brasileiro Marco Archer foi executado há pouco, em cumprimento a uma pena de condenação à morte na distante Indonésia. Archer foi flagrado em 2003 com cocaína escondida numa asa delta e, apesar de fugir ao flagrante, acabou preso dias depois. Desde então, ele esperou onze anos no corredor da morte até ser fuzilado, apesar dos seguidos pedidos de clemência do governo brasileiro. Como todo condenado à pena capital, ele morreu um pouco a cada dia de espera pelo seu carrasco.

Eis que, de repente, pipocaram manifestações de apoio ao fuzilamento nas redes sociais brasileiras, enquanto outros tantos lamentavam a tragédia -- e mais alguns ponderavam se o Brasil, um país no qual as polícias matam tanto, não teria na prática algo pior do que uma pena de morte formal.

O caso não repercutiu à toa: trata-se do primeiro brasileiro executado em virtude de condenação à morte desde 1876. À época, a pena de morte era sanção penal comum em tempos de paz. Com a proclamação da República, a pena de morte foi abolida formalmente do ordenamento, embora ela já fosse mais aplicada desde a última execução. 

A referida pena só ressurgiu em momentos ditatoriais: primeiro com o Estado Novo (1937-1945) -- na qual constava na própria Constituição (art. 122, 13º) -- e a partir de 1969 durante a Ditadura Militar -- graças ao infame Decreto-Lei nº 898/1969 que instituiu a primeira Lei de Segurança Nacional pós AI-5. 

Tanto no Estado Novo quanto na Ditadura, a pena de morte não voltou como sanção possível para crimes comuns, mas para punir crimes políticos e crimes contra a segurança nacional. A única exceção era hipótese de punição para "homicídio cometido por motivo fútil ou com extremos de perversidade" na Constituição de 37. 

E os condenados à morte nestes momentos também tiveram sua pena comutada -- os mortos por ambas ditaduras, por sinal, foram executados em ações clandestinas de repressão social ou política das forças de segurança, não em virtude de condenação à pena de morte.

Hoje, a pena só existe no Brasil em tempo de guerra. A dita inexistência de uma pena de morte, por óbvio, se refere ao fato de que nenhuma espécie de crime em tempo de paz (inclusive aqueles contra a segurança nacional) pode ser punida com a morte. E, em guerra, só são assim punidos os crimes tipificados pelo código penal militar.

De todo modo, Archer não foi morto no Brasil ou sob leis brasileiras: na Indonésia, onde um tiro de fuzil no peito lhe tirou a vida, a história é um pouco diferente: militarizado, o país adota a pena de morte contra o tráfico de drogas, dentre outras aplicações. Nada que possamos estranhar: o país é uma democracia muito questionável, cuja história no século 20º está manchada por um histórico pesadíssimo de violência de Estado. 

Aliás, a mesmo Indonésia que prende mulas do tráfico, e as fuzila caso sejam condenadas, é aquela que perdoa terroristas violentíssimos. Sem esquecer, ainda, perseguições políticas e genocídios -- como aquele que quase varreu o Timor Leste quando este lutava por sua independência. 

É curioso notar que esse Estado, conivente com o terrorismo, com o genocídio e o assassinato em massa de dissidentes políticos, acabou tomado como exemplo por não poucos brasileiros em matéria de política de drogas, direitos humanos e segurança  --  justo após a execução de um compatriota seu. 

Mais do que uma questão ética e política, o debate leva uma questão inevitável: quais os limites da norma jurídica para mudar ou conservar o mundo? Ou melhor, à moda de Spinoza, somos forçados a questionar: o que pode o Direito?

Longe de não ter legislação para combater o tráfico, o Brasil não apenas possui leis penais duras contra isso como, também, as próprias regras processuais correlatas são certamente mais severas do que as de  um processo penal qualquer. Nem por isso, o tráfico ou o consumo (que ainda é punido, embora não mais com prisão) diminuíram. 

Ocorre com a pena de morte em tempos de paz, o fenômeno inverso: a Constituição a veda expressamente, mas nem por isso deixa de haver forte apoio à medida -- embora ele tenha caído nos últimos anos -- ; de tal modo, ainda que não haja propriamente uma pena de morte, as mortes sem pena perpetradas pelas polícias ocorrem aos montes.

De um modo e de outro, a inexistência de uma pena de morte comum no Brasil e, também, a proibição ao tráfico e ao uso de drogas são normas que não conseguem prevalecer. 

Se afirmar que leis mais duras contra o tráfico e o consumo de drogas não tem tido muita eficácia, por outro lado,  os direitos e garantias constitucionais, na verdade, têm funcionado muito mal.

Ao contrário do que um leigo imagina, não basta vir uma lei, ou uma lei mais dura, para que determinado comando prevaleça -- seja ele protetivo ou punitivo, o que também não quer dizer que sua existência não produza algum efeito.

É preciso, pois, adentrar num difícil terreno, no que há de mais profundo e complexo em matéria jurídica. O fato é que, para começo de conversa, o Direito é linguagem, o qual se reporta a condutas bem concretas. Ele não produz comportamentos, na verdade, apenas os induz.

Uma norma jurídica eficaz é aquela que induz uma tendência de comportamento razoavelmente coerente na sociedade. É, sobretudo, o convencimento, uma interferência, para o bem ou para mal, no campo do desejo: mesmo quando eu transgrido, antes, eu reconheço o dever para só depois rompê-lo -- e quando acato, o faço por mim, embora afetado por força externa.

Direito, portanto, não é o mesmo que violência, ele é a maneira pela qual as comunidades humanas a substituíram da prática cotidiana da política: no lugar de pessoas reguladas apenas pela força das espadas (externamente e por outrem), a expansão e internalização do Direito resulta no sujeito que se autocensura e se autorregula, fazendo o que lhe determina sem um soldado precisar obriga-lo a tanto.

Mesmo o cumprimento de sanções precisam dessa servidão voluntária: em último grau, espera-se até mesmo que o condenado aceite o sofrimento da pena, pois sua insubmissão e consequente fuga -- ou mesmo seu suicídio no cárcere -- inviabiliza o comando. 

O próprio carrasco, aliás, não executa a pena capital porque odeia o condenado; ao contrário, ele nem o conhece e o faz porque serve voluntariamente a um comando de outrem -- se optasse por não matar, não haveria aplicação da pena, nem que o próprio condenado quisesse morrer.

Justamente por isso, normas jurídicas nunca são plenamente eficazes ou ineficazes, elas apenas têm graus de eficácia. Normas jurídicas só funcionam quando convencem os outros, mas isto tem sempre um limite. Aliás, em um cenário no qual houvesse a obediência máxima, ou a transgressão absoluta, qualquer norma jurídica se tornaria desnecessária.

A sanção, inclusive a pena de morte, não é nem de longe o cerne do Direito. Não por uma questão religiosa ou ética, mas porque em matéria jurídica, o que importa é essa capacidade de induzir docilmente comportamentos. 

A pena de morte, ou a prática de punições que importem em morte, exigem sempre a mais profunda postura de aceitação: mas sempre que a vida está em jogo, a força do governante, que é precisamente ter a espada na bainha e não sacada, perde-se quando o medo é zerado e não há mais nada a perder (e, mais importante, a sensação de nada a perder).

É por isso que Thomas Morus, sabiamente, já assinalava no início da Utopia a estupidez da pena de morte contra os ladrões: além de fazê-los roubar, eles se tornariam também assassinos, pois precisariam matar as maiores testemunhas de seus crimes, quais sejam, as vítimas de seus roubos.

Mesmo Maquiavel irá desenvolver -- e isto não foi à toa -- um sofisticada teoria a respeito do uso de força de letal pelo Príncipe: sempre de uma vez, não pessoalmente e, preferencialmente, usando-se de um carrasco que possa ser responsabilizado caso, vejamos nós, a revolta da multidão se instalasse em resposta à(s) morte(s).

Não é toa que a repressão mortífera, social e/ou política, se mostrou mais um caminho para a decadência dos Estados do que de sua glória: e para chegar aí, basta estudar a história dos totalitarismos e absolutismos variados. 

O fracasso da pena de morte como prática se dá, em último grau, porque ela exige que o morto aceite morrer, que a sociedade concorde com a execução. 

Enfim, é preciso que as pessoas se comportem sempre com uma resignação, na verdade, não humana -- uma ideia falsa presente no pensamento ocidental desde Sócrates e aprofundada ao longo da história, sobretudo, da modernidade e seus kantismos.

Essa avaliação, contudo, não resolve a outra ponta da questão: como, então evitar, a prática clandestina de mortes perpetradas pelo Estado? Em um primeiro momento, é evidente que quando a polícia age fora da lei, ou em suspensão dos direitos, ela o faz sem autorização real -- e sabe disso.

Ele não faz como uma postura de negação absoluta do sistema, como um revolucionário que se levanta contra uma ordem que não atribui legitimidade, mas por uma negação relativa: ele mata, mas não o faz com o desejo de universalizar aquela conduta -- o que equivale a uma infração  qualquer. 

Aquele que comete um real crime de roubo, não o faz esperando tornar comum aquela conduta (ele não espera ou quer ser roubado), tampouco um policial que tortura cidadãos numa blitz espera ser torturado um dia na mesma situação. 

É, vejamos nós, o oposto da realidade de quem luta para instituir uma nova ordem, e não reconhece a legitimidade das instituições que confronta, ou quem, em menor escala busca reformas sociais tópicas: sejam as mulheres que exigem o direito ao aborto, os escravos que lutavam contra a escravidão ou, em um exemplo próximo, daqueles que usam drogas mesmo sabendo das punições, por julga-las injustas na medida que não se vêem fazendo mal a ninguém (quando muito, apenas contra si mesmos).

Mesmo a pena de morte, que seria uma prática regular e não clandestina, implica na coletividade autorizada a, relativamente, responder com o mal contra outrem o suposto mal que lhe foi feito. Ela é uma relação universalizada na forma, mas não na matéria: sua instituição funda um dualismo entre o Estado que pode matar e a população matável.

E pior do que uma violência informal é ela formalizada: porque a persistência de violências formalizadas, além das razões acima expostas, ainda estimula as violências informais (vide a relação entre a legislação punitiva que temos, embora sem pena de morte, e as violências perpetradas pelas forças de segurança).

Ainda assim, não é a mera existência  de formas (jurídicas) protetivas que dá conta, na prática, de impedir os abusos. Para tanto, é necessário construir um complexo que redesigne tais relações, que dê vida aos direitos e garantias.

O que poderia ser no Brasil de hoje, por exemplo, uma democratização das políticas de segurança e a desmilitarização da polícia com uma redução da importância geral das polícias -- com um urbanismo para pessoas que deixasse as ruas mais cheias e, por conseguinte, mais seguras.

Mas a pior das hipóteses, como se tem visto, pode sim acontecer. Uma ordem autoritária pode sim, de maneira relativa ou absoluta, se instalar. O que não quer dizer que seus efeitos nocivos não venham a ser sentidos, é claro. O que exige a constante luta política.

Ainda assim, temos uma questão maior que é o fato do Direito, apesar de toda sua ductibilidade, esbarrar no fato de que ele não cria condutas sociais, apenas induz algumas delas -- ou alguns aspectos delas --, cabendo sobretudo a ele regular o que a sociedade o faz.

Se o Direito possui, de um lado, a capacidade mágica, ou melhor, feiticeira -- para lhe honrar as raízes na velha Roma -- de fazer as pessoas agirem para além das suas vontades mais infantis, por outro lado, ele exige uma pré-disposição para tanto.

Não adiantará nunca ao conservador, lutando contra as mudanças do mundo, protestar contra as mudanças culturais e esperar que a Lei vá manter tudo como antes. Tampouco, é possível mudar o mundo exclusivamente pelas leis: se o corpo sem exercício atrofia, tensionado em demasia, ele se rompe.

O que pode mudar essas predisposições, é claro, trata-se da política. Uma política dos desejos e dos afetos. Que sempre enfrentará o desafio de que os humanos podem sim desejar, e até lutar, contra seus próprios interesses.

Uma política como campo amplo da criação e da imaginação do novo, disposta sempre a desenvolver táticas e saberes práticos para enfrentar o poder.

O desastre da morte de um ser humano fuzilado por um pelotão -- e, pior, da insana comemoração do fato a ponto de julgarmos a Indonésia, sob o mais austero autoritarismo, um exemplo mostra o exato tamanho desse desafio. 


quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Para além do Ser ou Não Ser [Charlie] em Tempos de Boko Haram

A marcha dos líderes mundiais (apartados da multidão)
"(..) A senhora sabe que não se contam os mortos da mesma maneira em todos os lugares do mundo"
 Jacques DerridaFilosofia em Tempo de Terror, p. 101


Je Suis Charlie << Eu sou Charlie >> se tornou um dos maiores memes da história das redes sociais. Ele expressa a justa indignação com as vítimas do atentado à redação do Charlie Hebdo. E isso foi o mote da enorme manifestação ocorrida há poucos dias, em Paris, com alguns líderes mundiais conduzindo simbolicamente o cortejo.

Em resposta, veio o Je Ne Suis Pas Charlie <> que problematiza a questão, trazendo um ponto importante: sim, houve um desastre, mas nada é tão simples, seja porque há um uso suspeito da tragédia ou talvez porque o Charlie, por algum motivo, não mereça a beatificação.

O Je Ne Suis Pas Charlie foi dito por bocas diferentes, senão opostas: pelo velho senhor Le Pen,  por entender que o periódico atentava contra a moral política francesa (seja lá o que isso for para um ex-torturador da guerra da Argélia). 

Mas a negativa veio, sobretudo, à baila pelas redes de militantes islâmicos e seus defensores -- apesar de reconhecerem a tragédia, não poderiam concordar com a linha editorial do jornal e suas constantes infâmias.

A não adesão à marcha incluiu, inclusive, alguns dos sobreviventes ao ataque da redação do Charlie. Apesar de suas muitas contradições, não aderiram, eles não se deixaram usar pela marcha republicana

A dita marcha foi gigantesca, puxada simbolicamente por líderes globais -- embora isso tenha sido retratado como se eles estivessem mesmo guiando manifestação --, tomou Paris, num misto de êxtase geral, quando medidas de exceção eram encaminhadas.

Aliás, a própria ação na qual os suspeitos do atentado foram mortos, de tão desastrada, resultou na morte de muitos dos reféns -- que só não foi maior, ironicamente, pela atuação de um imigrante negro e muçulmano. Interessava mata-los, só isso.

Matar do mesmo jeito que, ironicamente, fazem os tantos líderes benevolentes no comando de suas máquinas de guerra. Muitos deles sequer têm o pudor de, nas contingências da guerra civil global, não apoiar movimentos fundamentalistas islâmicos.

A marcha de líderes, guiando o povo, aparece como uma recriação, pós-moderna e às avessas, de um episódio narrado por Victor Hugo em Os Miseráveis: Como um General Lamarque da era das redes sociais, o Charlie também teve seu cortejo conduzido como se fosse amigo do rei, mas aqui não foi para causar a indignação dos republicanos, ao contrário, foi para satisfazê-los.

Certamente, Charlie não é um Lamarque, embora não se possa dizer isso -- na era da liberdade de expressão (unilateral)

Um novo corte: pouco antes de tudo isso, enquanto a tragédia acontecia em Paris, o Boko Haram, organização terrorista de orientação wahabita -- o islamismo saudita --, realizava o massacre de Baga, na Nigéria, matando milhares de pessoas. Nem preciso dizer, a comoção global foi pequena ou nenhuma pelos mortos. 

O pouco que Baga ressoou na mídia serviu, naturalmente, para uma condenação do islamismo em geral, seja o que significar. No presentismo da era do (macarrão e do debate) instantâneo,  pouco importam as causas, os processos históricos e as complexidades -- e não é questão de se comparar o valor de vidas, elas já foram comparadas.

Os muitos líderes globais, e a boa sociedade francesa, não têm responsabilidade alguma. Mesmo que a Arábia Saudita seja aliada do ocidente, mesmo que grupos fundamentalistas tenham sido apoiados "taticamente", mesmo que os árabes e os muçulmanos sejam marginalizados. Apontar tais detalhes, é claro, soaria como uma perigosa "relativização" do que acontecer.

Justamente por isso outra: Je Suis Passé D'Outre Chose. Entre o ser ou não ser algo [um objeto qualquer], passar a outra coisa -- ou melhor, como a língua portuguesa nos permite dizer, ao contrário da francesa, eu me permito estar de passagem para outra coisa. 

Isto é, flexionar o "passer", fazê-lo algo no sentido do "passe" -- da mágica ou das religiões afro-brasileiras. Nada melhor do que fugir a uma dicotomia e, sobretudo, afirmar outra coisa além do ser, de fazer-se identidade no sentido de algum objeto. 

Os rumos dos acontecimentos levam a isso. O grande consenso da política francesa não é digno de adesão. É o mesmo consenso que, inclusive, se alia a fundamentalistas islâmicos no oriente médio se isso for "necessário. 

O mesmo consenso que, também sequer levou os terroristas a julgamento -- preferiu executa-los sumariamente, sem sequer se preocupar efetivamente com os reféns. Porque uma outra dialética, de fundo, sustenta o terror, terror de Estado e terror [supostamente] não-Estatal. Um alimentando o outro, quando não diretamente.

Há sempre uma afirmação de que os que não aderiram são, de certo modo, ou esquerdistas demais ou, pior chegam a ter culpa [ou até dolo!] pela chacina. Uma falácia sem tamanho. Tampouco quando afirmam se tratar de "relativismo", o qual excluiria a responsabilidade dos atacantes. 

Como explicar a recente proibição dos muçulmanos rezarem em público? Ou, antes, de proibir vestes islâmicas, independentemente se as mulheres islâmicas estejam, necessariamente, obrigadas a tanto? 

A questão não é que a laicidade radical se opõe à intromissão da religião, mas que nem a tal laicidade radical é para todos -- embora eu desconheça medidas do tipo contra cristãos na França -- , tampouco ela abole a religião. 

A laicidade radical francesa institui uma religião de Estado,  capaz de estabelecer e modificar as premissas do próprio jogo -- livre, inclusive, para se contradizer. Qual deus seria mais formidável -- e real -- do que este?

A questão da marcha republicana supera o caso Charlie. Ela diz respeito à própria maneira como as resistências, hoje, enfrentam armadilhas mais poderosas do que se pode supor. O mundo é complexo e cheio de ambivalências.  

O problema, por certo, não está em se compadecer por doze seres humanos mortos de forma violentíssima, covarde e absurda, mas que a piedade que nos é permitida ter, sob o regime estético-midiático, é demasiado reduzida -- e falta tanta piedade, que os momentos piedosos terminam como, no máximo, meras catarses.

E é um problema porque as nossas emoções, sensações e afetos são manipuladas a ponto de terminarem anestesiadas na maior parte do tempo, vindo à tona só quando, e na direção, que o sistema precisa. 

Os momentos de inflexão, na sua aparente potência, acabam se perdendo. Disso, no máximo acabamos nas mãos do indignismo momentâneo, sendo usados ao sabor de catarses, que vistas em si, são mesmo legítimas.

A situação não é simples. O poder não vai, nem precisa, criar uma nova grande narrativa quando pode criar um regime estético, baseado nos afetos, na manipulação das emoções e criação de sensações que assujeite o mundo. 

É como Rancière, crítico tão arguto do republicanismo francês, nos mostra ao longo de sua obra. Diante do Estado de Guerra Civil global, não podemos capitular diante do óbvio, do hype e permitir que a política seja reduzida a um mero flashmob armado [nos dois sentidos do adjetivo].




sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

A Chacina do Charlie Hebdo e os Ecos de Camus

A redação do jornal satírico francês Charlie Hebdo foi chacinada. Dois atiradores fortemente armados ceifaram a vida de uma dúzia de pessoas, ferindo outras tantas outras. Os assassinos seriam muçulmanos se vingando do Charlie pela publicação das polêmicas charges de Maomé em 2011. Como o atentado, o mundo entrou em choque, os franceses saíram às ruas, os líderes mundiais condenaram o atentado com veemência e, para completar a praxe, tags de solidariedade invadiram as redes sociais. Enfim, um péssimo cartão de visitas para 2015. 

Obviamente, matar pessoas dessa maneira é um absurdo total e completo, mas é fundamental observar os desdobramentos disso à luz de um contexto no mínimo delicado: a crise econômica persiste e, por tabela, o espectro do neonazismo, e outras formas de fascismo histórico, voltam a mostrar suas garras. A exemplo dos anos 1930, eles também têm uma cortina de fumaça central na forma de inimigo público:  para os novos fascistas não é mais a "ameaça judaica", mas sim os muçulmanos, os imigrantes e o Islã. Agora, eles têm o seu factóide como os nazistas tiveram o incêndio do Parlamento.

A nova extrema-direita vende a ideia de que ela, e somente ela, tem a solução para a desgraça da Europa -- a qual, de fato, esta afundada no neoliberalismo torpe mantido pelas forças de centro-direita e centro-esquerda, em consenso. Seu objetivo, contudo, é salvar o capitalismo dele mesmo, não importa como. E para salva-lo, é preciso apagar o antagonismo real -- a exploração da multidão de precários pelo sistema financeiro -- pela via da construção de um antagonismo falso, no qual os problema é, na verdade, um confronto de culturas: em vez de capital vs. trabalho, temos uma ópera bufa na qual lá estão os franceses contra os imigrantes/não-cristãos/não-franceses étnicos.

O episódio em questão seria, pois, a prova cabal que o Front National, e seus congêneres de extrema-direita na Europa, teriam pois "razão" quanto ao seu discurso. Agora, sua líder Marine Le Pen sugere um plebiscito para reintroduzir a pena de morte na França, além de propor fechar as fronteiras do país e outras asneiras autoritárias.

Assim, mesmo sem uma investigação sólida, o crime já tinha um culpado: qualquer muçulmano (que possivelmente é também árabe e "imigrante").  Pouco importa quem, de qual organização e o por qual motivo: os culpados já foram achados (e condenados!), são milhões de pessoas, quase um décimo da população da França! Triste ironia, quis o destino que um policial morto ao tentar deter os terroristas fosse, ironicamente, muçulmano. 

Não custa lembrar que no famoso massacre na ilha norueguesa de Utoya, na qual dezenas de membros da juventude socialista local foram mortos por um atirador, logo se desconfiou de que o culpado fosse um radical islâmico, o que não se confirmou: o assassino era Anders Breveik,  um norueguês étnico, cristão e de extrema-direita. Ele foi julgado na forma da lei,  terminou condenado por um tribunal legítimo, sendo condenado para uma pena já prevista. Nem o cristianismo, tampouco a extrema-direita foram estigmatizados (embora a última merecesse). 

A Noruega deu um exemplo para mundo na forma como lidou com o assunto, mas frise-se que a Europa não cobrou nenhuma medida de exceção assim que se conheceu a identidade, e as motivações, do terrorista.  Fosse ele um muçulmano, teria sido igual?

Longe de haver um mundo preto-e-branco, na França, o atual governo "socialista" de François Hollande apoiou fundamentalistas islâmicos na Síria para, em aliança com Estados Unidos e Reino Unido, derrubar o regime local. Nem é questão de dizer que a França, ecoando o velho colonialismo que a fez cometer crimes contra humanidade aos borbotões, provoque indiretamente o extremismo entre muçulmanos, mas que ela, num jogo de poder absolutamente cínico, chega a diretamente cria-los, sustenta-los e apoia-los.

No jogo pela hegemonia do Império, elites burocráticas dos velhos Estados nação se aliam e fazem o que for necessário para manter ou alcançar o poder. O Ocidente, apesar do seu discurso maniqueísta de se arrogar como arauto das liberdades é quem, contraditoriamente, mais apoia o fundamentalismo islâmico -- e teocracias como a Arábia Saudita.

Quando os americanos justificam, agora com a França lhes sendo absolutamente subserviente, sua política de intervenção e domínio pela desculpa do confronto entre civilização (o Ocidente) e a barbárie (o Islã), ela mente copiosamente: existe uma aliança entre as elites ocidentais e parte das elites islâmicas (como há entre a China e a Rússia com a outra parte das oligarquias do Oriente Médio e Mundo Islâmico), e ela é necessariamente contra a multidão de pobres e oprimidos que, embora não saiba, têm o mesmo interesse seja na península arábica ou na Europa.

Enxergar esse caso como uma disputa entre liberdade de expressão e fundamentalismo ou, pior, como um choque cultural -- no qual explícita ou implicitamente se afirme a superioridade dos valores "iluministas ocidentais" face às outras culturas -- é fazer o jogo da extrema-direita que, à base do preconceito, está a à espreita na esquina para tomar o poder -- ou, no mínimo, para evitar que a nova esquerda vença as eleições. 

Não custa lembrar de O Estrangeiro, clássico de Albert Camus, no qual o personagem principal foi condenado à morte (!) por não ter chorado no enterro da mãe, mas não por ter matado um árabe na então colônia francesa da Argélia. Camus não foi um visionário apenas por profetizar o agravamento da situação na Argélia, e as causas tanto disso quanto da futura derrota francesa, nem por antever um futuro como um colonialismo interno (dentro da própria França e contra os imigrantes) , mas por ter entendido o que fundamentou tudo isso: uma indiferença radical como forma de eliminar aquilo que não se enquadra à universalidade do republicanismo francês.

Esses imigrantes, e os tantos cidadãos franceses (muçulmanos ou árabes) cuja cidadania é negada por "uma falta de identidade étnica", vivem no limbo de um estatuto jurídico -- e ontológico -- causado por essa indiferença: se os valores do humanismo caracterizam a boa república, há aqueles que são humanos piores (ou nem isso), os quais jamais serão cidadãos reais (mesmo que o sejam), condenados a trabalhar muito e reclamar pouco.

Foi talvez por essa indiferença que o Charlie não percebeu a gravidade do que fez quanto às charges de Maomé. Sim, aquelas charges reforçaram sim a islamofobia na França -- e a islamofobia é a melhor e maior fábrica para gerar terroristas. E não há que dizer que o satírico era assim para todos: há poucos anos, ele demitiu, com toda razão, um cartunista que cometeu ofensas semelhantes contra o judaísmo. Os muçulmanos, e em menor grau árabes e africanos cristãos, são menos cidadãos, menos humanos naquele país.

Enfim, o atentado não muda o fato de que o Charlie errou, e errou feio, na ocasião das charges de Maomé, mas, também, não torna agora as vítimas menos vítimas. Isso não é um debate sobre culpa, mas a análise de um processo histórico bem complexo. Do ponto de vista político, é questão da França fazer uma reflexão profunda sobre si mesma. Basta ver as retaliações contra a comunidade islâmica, que já começaram a acontecer.

Não resta dúvida que os assassinos devem, na forma da lei e na medida de sua culpabilidade, pagar individualmente pelos seus crimes, mas isso não pode ser vendido jamais como uma questão cultural, como "fascismo islâmico" ou outras superstições, que só alimentam a real ameaça: o maior avanço da extrema-direita desde os anos 1930. E se algo realmente ameaçou a Europa, e a existência de uma cultura europeia, foi um fascismo bem europeu.