sexta-feira, 13 de março de 2015

As Marchas de Março: o Brasil precisa de Liberdade, não de Salvação

Laerte
Enquanto as águas de Março fecham o Verão, estamos às portas de duas manifestações massivas: a desta sexta-feira 13, puxada pelas centrais sindicais reivindicando o fim do arrocho, e a do dia 15, uma marcha conservadora articulada pela mídia tradicional e grupos pró-impeachment de Dilma.

A primeira é uma manifestação sindical tradicional contra o arrocho; a segunda é só uma versão 2.0 das velhas marchas "cívicas" que antecederam o golpe de 64, mas desapareceram gradualmente com a desmoralização da ditadura que foi gerada em virtude daquilo. 

Ambas as marchas pertencem ao século 20º e não se comparam a Junho de 2013. Basta ver a leniência prévia do oligopólio midiático com a "mobilização popular".

Evidentemente, a marcha que se planeja para hoje é constituinte de direitos, ainda que seja questionável na forma -- e talvez por poder ser taticamente inoportuna. A de domingo 15, que já tem cobertura privilegiada da mídia, é apenas uma exploração de uma justa indignação com fins de manipula-la.

A crise, sem dúvida, é feia. O governo Dilma travou não por fatores técnico-formais, mas por sua própria engenharia subjetiva -- e projetiva: Dilma errou ao buscar criar um país de classe média, não de cidadãos. Ficou presa em um economicismo, brigou com aliados nas instituições, mas não se contrapôs a eles realmente: certamente lhe falta vocação de se voltar para a sociedade civil.

O desenvolvimentismo, na verdade, acabou sendo uma estranha e inesperada reação ao processo de ascensão social iniciada em Lula. Um jeito de "moralizar" e "racionalizar" o processo que deu certo. Na verdade, a tentativa de organizar a ascensão social é que comprometeu tudo, fazendo se perder o que realmente havia de original e singular no Lulismo.

Em meio aos impasses do desenvolvimentismo, Dilma resolveu apelar para  política de austeridade, a qual combateu na campanha eleitoral. A metáfora de que ela serrou o próprio galho, de André Singer, não poderia ser mais verdadeiro. E a fala de domingo último, sem dúvida, foi um desastre: vaiada pelas elites que, no fim das contas, se beneficiaram pelos ajustes, Dilma ficou só. 

Só que Dilma, dentre todos os principais candidatos, é a única que não poderia ter aplicado a austeridade (e é o lado colateralmente bom dela ter sido eleita: a austeridade nela aparece como traição, enquanto nos outros seria "remédio amargo").

O ajuste econômico conduzido pelo homem forte do novo ministério, Joaquim Levy, cortou direitos sociais e aumentou tributos sobre as pessoas comuns. Nada diferente do que propunham os adversários de Dilma, mas que ela, justo ela, não poderia concordar.

Não que nada não devesse ser feito, mas que antes de cortar direitos e aumentar tributos, talvez arrochar a sonegação e a evasão de tributos dos mais ricos, tal como tributa-los mais, seria um bom caminho -- só em virtude das principais ilicitudes tributárias,  o Brasil chega a perder, ironicamente, 13% do PIB em arrecadação (!), segundo avaliações internacionais.


Enfim, o impasse atual é tão grave que ele ainda acorda velhas doenças. O ato do dia 15 é uma clara manipulação, movida por setores ultraconservadores, pouco afeitos à democratização do país. Mas de tanto o governo bater de frente com manifestações espontâneas, muitas vezes as acusando de serem manipuladas, agora ele colheu uma agenda realmente fabricada.

Evidentemente, nem todas as indignações que se catalizarão dia 15 serão movidas por elitismo e autoritarismo, embora estes sejam componentes óbvios do processo e, sobretudo, sua direção; há uma sincera insatisfação, mas sinceras insatisfações de massa bem manipuladas geram cenários perigosos.

Hoje, a esquerda precisa se organizar a despeito do governo: contra o impeachment falso das elites -- e suas manifestações oportunistas --, contra os oportunistas do Congresso, mas também contra sua política econômica e sua gestão política. A disputa, contudo, passa antes pela sociedade do que pelo Governo, o qual, nas condições atuais, é irreformável por dentro.

Diante do salvacionismo, do messianismo e quetais, precisamos de liberdade e é isto que precisa ser oposto a todos os inimigos da sociedade. Verter a "indignação popular" em indignidade multitudinária.


sábado, 7 de março de 2015

Birdman -- e Triunfo Fracassante dos Anos 2010

Birdman (ou a Inesperada Virtude da Ignorância) do talentosíssimo diretor Alejandro González Iñarritu ganhou três estatuetas do Oscar merecendo ganhar -- e levou, inclusive, a de melhor filme. 

Além de bem escrito, Birdman é muito bem dirigido e tem excelentes atuações -- de Edward Norton mais até do que Michael Keaton, embora sem o último o filme não pudesse existir. 

Keaton faz Riggan Thomson, um ator famoso pelos filmes de super-herói da série "Birdman", da qual ele desistiu de dar continuidade não sem ficar mortalmente identificado com o personagem. Agora, ele espera realizar uma continuidade "séria" para a carreira, realizando uma peça na Broadway na qual ele também atua.

Nada disso importa para o público, seu agente, sua filha ou seus companheiros de teatro: ninguém imagina que o velho astro é um maníaco depressivo, todos o julgam a partir da imagem vitoriosa que ele construiu de si mesmo -- ou no máximo alguém o julga por não ser o que parece. 

Enquanto isso, o público só quer tirar fotos com o "Birdman" e a crítica teatral aguarda o dia da estreia da peça para destruí-la, numa ação para salvar a Broadway das celebridades que ousam brincar de atores "de verdade". 

Thomson quebra a cabeça para acertar a peça na qual apostou tudo mas que, no entanto, ruma para o fracasso. Em meio aos seus delírios, e a obsessão em realizar sua obra, Thomson ganha o reforço de Mike Shiner (Norton) para o elenco, um ator de teatro louco e brilhante que resolve a peça, mas traz mil outros problemas para a trupe.

A trama se desenrola num misto de imaginação e realidade, no qual a realização da peça passa a cruzar as fronteiras da ficção -- assim como os delírios de Keaton/Thomson.

...

Enfim, Birdman é uma conversa que está para além de "uma fábula sobre o fracasso" ou de "um confronto da arte verdadeira contra sua versão farisaica, o entretenimento de massa". É uma tragicomédia sobre uma época na qual nos convertemos em personagens públicas perfeitas, superestimadas e infalíveis -- mas não só: nós convencemos os outros dessa insanidade.

De um jeito ou de outro, nos tornamos escravos do personagem que fizemos de nós mesmos: somos odiados ou amados por conta da máscara triunfante e gloriosa, nunca por aquilo que está abaixo e além dela.

Quem supõe conhecer a verdade decadente da nossa vida privada, o faz do mesmo modo, às avessas: somos fracassados egoístas, pois descobrir que não somos perfeitos nos converte em farsantes, jamais em humanos.

É como Shiner/Norton que perde a namorada ao dizer que queria transar, de verdade, com ela no palco numa cena de sexo. Ela, que se sentia preterida por ele há meses, o rejeita sobretudo por julgar aquilo uma brincadeira jocosa dele. Se ela pudesse imaginar que ele realmente é impotente fora dos palcos...

Thomson/Keaton, que tampouco é entendido, mas não entende sua companheira atual enquanto reivindica amor e compreensão. Ou seus constantes delírios, quando ele imagina o Birdman falando na sua cabeça, ou ele próprio, com os poderes do seu ex-personagem, "fazendo as coisas acontecerem" na vida real.

Todos queremos ser amados, mas não correspondemos ninguém na medida que desejamos ser correspondidos. Seríamos calhordas se conseguíssemos ser o que aparentamos, mas estamos além e aquém disso, somos humanos.  

A figura do super-herói a qual Iñarritu recorre não é bem um super-herói. O tipo sobre o qual Birdman fala talvez seja apresentado assim para expressar o gigantismo como nosso alter-ego se perfaz hoje em dia, mas o filme, na verdade, fala de monstros: criaturas fora de qualquer métrica real que, no fim das contas, se movem pela carência; imploramos para ser amados como diz Thomson no palco (e na vida real).

O que nos resta é uma dor solitária, incomunicável, que nos deixa sozinhos com nossos demônios internos --  numa jornada rumo a uma incontornável decadência. A nossa máscara não permite que as pessoas sequer percebam o quanto vamos mal.

Na era das redes sociais, da necessidade de "ser" feliz, bonito e bem-sucedido, o que nos resta é um triunfo fracassante. Um glória tal que nos desertifica subjetivamente. Fingimos um força sobre-humana que só serve para impedir o nosso resgate, afinal, nós não precisamos, não é mesmo?



segunda-feira, 2 de março de 2015

Fatumbi Verger & as 300, 350 máscaras de Exú (Por Lucas Jerzy Portela)


(Legenda:  Verger, Jorge Amado e Carybé – os Três Mosqueteiros da Avant-Gard Bahiana)


É com axé, modupé e agô que se deve receber a notícia de uma exposição da obra fotografia de Pierre Verger focando o caráter homoerótico de sua lente – urgia tirar o Babalaô de Orunmilá do armário! Não que o Ifá-Tumbi alguma vez tenha sido encubado; nem era do desconhecimento geral que ele nunca casou e sempre viveu sozinho, em parte por sua vida ao mesmo tempo nômade e monástica (dedicada ao triplo credo do jogo sagrado das sementes de mafulo, da Rolleiflex e do diário de campo etnográfico), mas porque discretamente preferia rapazes.
O problema está em que uma mostra como esta, em São Paulo, reduza Verger a um “fotógrafo gay” – o que ele não era; Verger está sempre além disso, e é muitos, muitas outras coisas: tão francês quanto baiano, tão negro quanto branco, tão ateu quanto sacerdote de Exú, tão fotógrafo quanto etnólogo, tão historiador econômico quanto rapsodo poético infantil, jardineiro e cozinheiro. Homossexual sim, mas não “no sentido de vocês” (como dizia Jean Genet) – e sobretudo não apenas nem primeiro.
Como tal mostra também pode reduzir Verger a um fotógrafo de temática afro-brasileira – quando sua fase anterior, na Polinésia, já o colocaria ao lado de Nadar, Cartier-Bresson, Man Ray e Mapplethorpe.



Ou como apenas um retratista de rostos e pessoas, quando suas cenas e paisagens também são de tirar o fôlego, como na cena abaixo, do içamento de velas de saveiros da rampa do antigo Mercado Modelo em Salvador, quase um Turner de cabotagem.



Por outro lado, corre-se sempre o risco de reduzi-lo a condição de repórter fotográfico (tal qual como quando se o coloca na posição de “etnógrafo”, o braço-de-campo de Roger Bastide – “este sim, um antropólogo, teorizador!” – e esquece-se que sua grande obra em prosa é um estudo da economia política transatlântica dos anos de abolição da escravatura: Fluxo & Refluxo do Tráfico Negreiro entre O Golfo do Benin e a Baía de Todos os Santos), quando sua obra tem óbvia concepção estética, a exemplo da foto do rosto deste vaqueiro em Feira de Santana, onde o traço desenhado pela sombra do chapéu é crucial para criar um efeito erótico e cubista na disparidade do olhar de cada olho do retratado.


Verger sempre está lá onde não se espera que ele esteja, e já não está onde se o mira, na semovência sofisticada dos raros filhos de Exú-Elegbó.
Que mais esta face de Verger seja explicitada no ano em que a obra de Mario de Andrade entra em domínio público, aláfia! Mario, mais do que Oswald, foi o grande consolidador e propagador do Modernismo no Brasil; Oswald, que muito viajou para fora, foi bem mais estático do que Mario; Mario, sem nunca ter pisado fora do país, nunca deixou de vaguear nômade.
E, não da mesma forma de Verger, é preciso tirar também Mario de Andrade do armário – coisa já em parte feita por João Silvério Trevisan no seu monumental Devassos No Paraíso – não apenas no tocante a sua subjetividade privada (esta sim, ainda carola e burguesa, bastante encubada), mas também numa leitura de sua obra neste sentido. Por exemplo: poucas vezes se aponta que um dos males que o amor de Fraulein Helga visa previnir em Carlinhos é uma possível homossexualidade; reconhecendo isso, o Brasil terá feito um dos primeiros, e melhores, romances não sobre a homossexualidade, mas sobre o temor da mesma (homofobia no sentido radical do termo que nada tem a ver com a bradação da militância que eu chamo de Viadagem Institucional).

Fazer Mário de Andrade voltar a ser, de fato, como Verger, 300, 350.