terça-feira, 8 de setembro de 2015

Os Refugiados do Império: Entre Anjos Sacrificados e o Êxodo

A foto do anjo-refugiado, morto às portas do Paraíso, chocou o mundo. O menino Aylan Kurdi repousava de forma sublime sobre as areias de uma praia turca: ele morreu junto com o irmão e a mãe na tentativa de travessia. A foto da turca Nilufer Demir choca não apenas por capturar o sublime da dor, mas pela maneira quase onírica que se compõe: em dois instantes, o primeiro de uma estranheza com a posição do menino deitado na praia, o segundo da certeza que ele só poderia estar morto -- é o mesmo ritmo do pesadelo. 

O inferno da guerra devora a entranhas do Oriente Médio, inclusive a Síria de onde a família de Aylan vinha. No Iraque, vizinho, a situação não é nada diferente, como era de se supor que ocorreria após a desastrosa invasão americana de 2003. Ocidentais e seus aliados na região são igualmente culpados pela situação, sendo todos lenientes com organizações terroristas francamente insanas como O Estado Islâmico  -- coisa que só é rompida por poucas vozes, como a de um Robert Fisk  ou de um Patrick Cockburn.

A Europa, destino mais óbvio da multidão de refugiados, fica entre um misto de fechar as portas, e a impossibilidade de se assumir definitivamente fascista, e manter as aparências "democráticas": a morte do menino mostra que (ainda) não é possível, simplesmente, condenar à morte os refugiados que bravamente cortam o Mediterrâneo, o Mare Nostrum dos romanos. Enquanto as coisas se mantêm distantes, tudo bem, mas tão perto é impossível. 

Quando o deixar morrer se torna matar por omissão, o próprio discurso liberal-democrata entra em curto-circuito: para se livrar da acusação de matar, o neoliberalimo articula a imagem liberal-democrata, a qual, dentre outras coisas, vende a mentira que matar só é possível quando algo ou alguém fez morrer, que o deixar morrer não existe, é como se dissesse que o mal é apenas e tão somente o nazista de Hollywood, que pertence ao passado, ou os regimes inimigos pelo mundo (como Assad). 

Mas quando esse discurso corre o risco de aproximar seus profetas da pecha que criam para se defenderem, o cão termina por morder a própria calda: deixar morrer desse jeito, pouco sutil e abrupto, soa como fazer morrer. Se as mortes no Oriente Médio ou na África são diluídas no fatalismo ("lá é assim mesmo"), o mesmo não se pode dizer quando elas acontecem perto e por uma omissão dos poderes europeus.

A grande narrativa -- invisível, inodora e incolor -- pode apagar causas, relações e conexões. Tentar a História. Mas quando essas mortes batem à porta e é preciso admitir a natureza mortífera da ordem atual ou capitular, o sistema prefere disfarçar, recompor e ceder. Seu ativo mais preciso é monopólio da bondade.

Da esquerdista Grécia, que não tem dinheiro para receber os refugiados, mas tem para permanecer na Otan, à extremo-direitista Hungria -- laboratório de um futuro neofascismo, a exemplo do que foi o Chile de Pinochet para o neoliberalismo -- a obediência aos poderes europeus, com a impossibilidade ética do escândalo, é patente. 

A Hungria, depois de proibir a entrada dos refugiados, "cedeu" e abriu as fronteiras, sendo o show de entrada para o espetáculo dos poderes europeus, que, com a morte do menino, "puderam se dar conta". Nada mais cínico.

A Europa, a Grande Prússia sob o comando de Fräu Merkel, e o Reino Unido de Cameron buscam reprocessar o discurso: da negação "forte" a entrada dos imigrantes -- em nome do mito da prudência e da sensatez, um mitolegema que tem funcionado bem para quase tudo -- passou para o discurso da abertura -- acompanhado da narrativa melodramática de assimilação caridosa dos pobres coitados, com o compadrio da mídia.

O Papa Francisco, em outro gesto de inteligência política, voltou a reforçar a necessidade de recepção dos refugiados, determinou a abertura do Vaticano e exigiu que as paróquias de toda a Europa recepcionem pelo menos uma família refugiada

A teologia popular do Papa Bergoglio consegue ser na prática, mais uma vez, mais ético e "moderno" -- no sentido que se emprega usualmente o termo -- do que a moderníssima Europa: não que Francisco não seja ele também político e arguto, mas a Igreja, depois de décadas bancando o mais franco neoliberalismo, pulou do barco. Por uma razão bastante simples: o plano proselitista de João Paulo 2º, continuado por Bento 16 e seu carisma de poste, fracassou.

Semente da noção de tecnocracia que cria o Estado (moderno), a Igreja, um agente estatal e, ao mesmo tempo, multinacional -- político e religioso -- é paradoxalmente um elemento hoje contraditório não apenas na sua estrutura como, também, na sua direção à fantástica aliança entre estrutura estatal alemã, sistema financeiro internacional e tecnocracia "europeia", aquilo que damos o nome de "União Europeia" -- e é, afinal, um dos pilares do sistema global. Essa peculiar forma que o catolicismo se reinsere nas disputas globais, por sinal, merece ser alvo de futuras análises.

Mas o fenômeno atual dos refugiados não se limita à rota do Mundo Islâmico em chamas para a Europa. Evidentemente, refugiados e imigrantes  de toda sorte aportam em todas as partes do mundo, inclusive no Brasil-- que além de receber mais refugiados dessa guerra, tem recebido um enorme trânsito de africanos, sul-americanos, chineses etc.

A radicalização do movimento dos fluxos de refugiados e imigrantes pelo mundo marca o acirramento das contradições no Império Global concebido por Negri e Hardt. Eis aí um dos dogmas globais: a relação entre a hipermobilidade do capital e o controle de trânsito -- pela proibição ou regulação ostensiva -- do livre trânsito de pessoas pelo mundo; a hipermobilidade (e hipervolatilidade) do capital, do jeito mais moderno possível, exige na outra ponta a fixação da forma mais arcaica dos contingentes humanos, os quais servem de reservas fixas e previsíveis de mão de obra.

O êxodo global, ao marcar o rompimento dos cercados nacionais -- e esta talvez seja das poucas serventias que os Estados-nação ainda tenham --, põe em curto-circuito essa política de regulação dos corpos e dos corpos coletivos, criando imprevisibilidade onde não deveria haver -- mesmo ponderando que a fuga dos desesperados pela guerra não signifique um nomadismo, mas um ato praticado na necessidade extrema, isto ainda assim escapa às coordenadas sistema.

Ainda, como boa parte dos conflitos que causam esse fluxo são diretamente causados, apoiados ou permitidos pelos potentados globais, como é o caso da Síria, o sistema-mundo se vê diante de uma situação emergencial: os conflitos deflagrados passam a ter consequências que saem do script e estas vêm bater à porta, literalmente, de forma inesperada. 

Quase como o Isso freudiano, o recalcado em escala coletiva -- política e socioeconômica -- emerge de outras maneiras imprevisíveis. A incapacidade do sistema-mundo operar sínteses perfeitas, que eliminassem esses resíduos o põe num pânico momentâneo, mas já enseja seu passo posterior que é a readequação da estratégia de intervenção e exploração no Oriente Médio e Norte da África e, também, uma nova forma de processamento dos fluxos de migração para que estes sejam domesticados no destino que eles venham a se estabelecer. 

A impossibilidade de praticar a eliminação direta como no início do século 20º obriga a recuos e a tentativa de assimilação desses contingentes, o que não é uma tarefa fácil e dificilmente seria perfeitamente efetiva. Talvez se tenha em vista uma migração controlada, a exemplo das políticas dos Estado nação europeus, sobretudo os nascentes, no século 19º com os países do continente americano: exportar excedentes humanos para onde faltaria gente (ou gente branca, conforme o projeto eugenista inclusive do Brasil).

Mesmo assim, a quantidade de problemas que uma migração planejada traz, por si só, já é assombrosa -- o movimento operário anarcossindical nasce no Brasil por conta disso --, imagine o acolhimento de refugiados de guerra que vêm em massa para, não raro, países que deflagram ou foram lenientes com os conflitos que causaram a confusão.

A imagem do Livro Bíblico do Êxodo, afinal, emerge: quando um Império se vê diante de uma rebelião dos fluxos humanos que lhe dão força e vitalidade, e não consegue gerar uma nova síntese em resposta, a migração se torna inevitável; tal partida gera um novo campo de possibilidades: a itinerância, a errância,  o nomadismo, ou a busca por ser aceito em um outro Estado ou, por fim, a construção de um novo Estado (ou proto-Estado). 

O destino do povo hebreu, como é sabido, foi a derradeira hipótese. Como foi a dos perseguidos na península itálica do século 8º a.C. ou dos religiosos nos domínios ingleses do século 17º. Com hebreus, tanto se consolidou assim, que temos o Livro do Êxodo, o qual se chama em hebraico, não à toa, Livro dos Nomes (Shemot), pois inicia pelo clássico "estes são os filhos de Israel": trata-se da narrativa de uma história que terminou com uma refundação, o que exige, desde sempre uma nova hierarquia, uma nova ordem, novas leis, as quais sempre demandam previamente nomes.
 
O problema do refúgio e da imigração é desde sempre como uma sístole-diástole, segundo à qual o enrijecimento de uma ordem enseja a fuga, mas esta termina novamente enquadrada em um novo Estado (O Reino de Israel, Roma ou mesmo os Estados Unidos)

Isso consiste, afinal  de contas, no objeto sobre o qual Spinoza se debruça na Teologia-Política: o problema da fuga da fundação fundada acaba sendo, no espaço, o mesmo da revolução no tempo: será que toda ela não estaria destinada a forjar um novo Estado? A conclusão disso, em Spinoza, como se sabe, é de uma tragicidade sublime com a conformação irônica -- mas em aberto -- diante da nova ordem e da nova Lei.

Contudo, o problema do refúgio no Império Global, sem sombra de dúvida, é maior: com a impossibilidade de criar um espaço propriamente novo em um mundo absolutamente desbravado e colonizado, a questão é saber se é possível reordenar esses fluxos de uma nova forma -- e como --, uma vez que as pessoas fogem do mundo para o mundo; tal questão, na verdade, pode ser vista ao inverso, por sua outra ponta: como o sistema fará, em último caso, para manter a guerra se não há contra quem lutar exceto contra si mesmo e a consequência disso seja insustentável? 

[e uma guerra civil, digamos, "global", não é propriamente uma guerra, como o suicídio ou a automutilação não são homicídio ou lesão contra outrem, tanto que para os gregos antigos elas eram expressadas por palavras muito distintas, stasis e polemós, respectivamente]

Trata-se do dilema derradeiro da projeção marxista: como em uma economia globalizada e unida pelo e sob o capitalismo, será possível manter as relações capitalistas, uma vez que estas dependem do desbravamento, da colonização e da guerra? Em sendo o mundo um só, não só eticamente, mas agora socioeconomicamente, o que acontecerá quando o capitalismo se tornar impossível? 

O gasto de energia com a guerra civil global é suicida. Seja a guerra em si ou algumas de suas consequências. A única possibilidade de lidar  Mas o sistema não tem mais a opção do outro para combater, no máximo, destruir ou domesticar minorias e dissidências aqui ou acolá, mas a guerra devém impossível, ou melhor, quase impossível: é preciso notar que a guerra, hoje, ainda existe parcialmente enquanto disputa entre tecnocracias nacionais por hegemonia no sistema-mundo, que é uma estrutura fundada por uma costura entre elas.

Essa é a condição que permite dizer que não há mais a guerra própria, mas sim uma guerra civil global que, no entanto, é temperada também por guerras usuais num sentido impróprio: não mais entre Estados-nação que constituem uma ordem global, mas por uma ordem global que os utiliza parcialmente como arcaísmo necessário. E um dos efeitos dessa guerra civil é, precisamente, a possibilidade do contemporâneo refugiado: alguém cujas condições fáticas demandam que tivesse uma cidadania global, mas cuja cidadania nacional é insuficiente.

O Império Global, composto por uma rede tecnocrática e o tecido conjuntivo do mercado, se amarra por laços comerciais e, quando muito, por tratados e acordos internacionais, nunca por lei constitucional -- o que conferiria a globalização inclusive como universalização da cidadania, para além da tentativa, bem-intencionada mas voluntarista, da "pessoa humana". Eis o desafio: mesmo neste período intermediário, abolir a guerra, por sua inutilidade mesmo "utilitária", e efetivar uma noção (jurídica) de cidadania global -- sem perder de vista uma ciência do poder que não nos afaste do terrível e do horrendo: no limite, sim, a decisão do sistema-mundo diante da sua morte pode, e deverá, ser pela autodestruição, o que nos inclui diretamente.